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30 de setembro de 2004

Cartéis 

Por Maria M. Leitão Marques

«Na prática e de um ponto de vista ético, não há uma grande diferença entre um cartel para fixar preços e um roubo». (Richard Wish, Competition Law, 2001)

A hipótese de criminalização dos cartéis, à maneira anglo-saxónica, que o presidente da Autoridade da Concorrência veio colocar no terreno, constitui, para já, uma forma de chamar a atenção para a gravidade desta prática anti-concorrencial. Muito provavelmente, não terá sido por acaso que Abel Mateus o fez na mesma semana em que se mostrou favorável à abertura do mercado das gasolineiras a novos operadores, no sentido de favorecer a concorrência e dificultar uma eventual cartelização de preços.
Aliás, a possibilidade de virem a ser aplicadas penas de prisão aos administradores de empresas que participem em cartéis ou de eles serem impedidos de exercer as suas funções por alguns anos está na agenda europeia da política da concorrência.
Cartéis são acordos ou práticas concertadas entre empresas independentes com o objectivo de limitar a concorrência através da fixação de preços, quotas de produção, repartição de mercados ou manipulação de propostas no âmbito de concursos. Eliminando a concorrência, deles não resultam quaisquer vantagens para a economia ou para os consumidores e, por isso, são quase sempre proibidos.
Está provado que a globalização da economia tem constituído um ambiente favorável à cartelização. Daí que o número de cartéis detectados tenha crescido significativamente em todo o mundo industrializado a partir da década de noventa, como se prova na investigação que tem sido feita pela OCDE.
Assim, ao mesmo tempo que se verifica uma crescente boa vontade das autoridades da concorrência relativamente a outras formas de cooperação entre empresas concorrentes ? através de acordos de investigação e desenvolvimento, ou de outros acordos de cooperação empresarial, como aquele que foi realizado entre a Ford e a Volkswagen e que deu origem à Auto-Europa ?, reforçam-se os meios que permitem detectar e penalizar os cartéis e diminuir as dificuldades em recolher os indispensáveis meios de prova.
Na Europa, a investigação dos cartéis foi facilitada desde que, em 1996, a Comissão criou incentivos para que as próprias empresas denunciem as infracções mais graves às regras da concorrência. Esses incentivos foram ampliados em 2002. Assim, goza hoje de total imunidade em matéria de coimas a primeira empresa que apresente elementos de prova da existência de um cartel de que a Comissão não tenha conhecimento ou em relação ao qual não possua elementos comprovativos.
Esta mudança, a par da criação de uma unidade especializada em cartéis, permitiu que o número de decisões sobre cartéis adoptadas entre 2001 e 2002 (19) represente quase um terço de todas as decisões que foram tomadas sobre esta prática desde a criação da Comunidade Europeia. Em 2001 foi também aplicado um montante global de coimas superior à totalidade das sanções pecuniárias impostas em todo o período precedente. Embora um estudo sobre os cartéis a nível mundial mostre que eles são mais frequentes na indústria alimentar (incluindo os alimentos para animais e os aditivos para alimentos), na Europa outros sectores têm sido apanhados nas malhas da investigação. Entre outros, encontram-se as vitaminas, os transportes marítimos, o papel auto-duplicativo, o fosfato de zinco ou as empresas de leilões (Sotheby?s/Christies), para além das cervejeiras, do açúcar e do ácido cítrico.
Ainda recentemente a Comissão Europeia aplicou uma coima no montante de 222,3 milhões de euros a um cartel de empresas de canalizações de cobre que durava há 12 anos. Provou-se que as empresas em causa se reuniam clandestinamente em salas de espera de aeroportos para fixar volumes de produção e quotas de mercado e estabelecer preços-alvo e aumentos de preço.
Em Portugal, onde vários sectores viveram durante muitos anos em regime de preços administrativamente fixados (para já não falar das restrições à entrada no mercado), o que os afastou de uma cultura de concorrência, é natural que a cartelização possa ainda parecer quase natural para alguns operadores económicos. Por isso, uma atitude pedagógica ou de pré-aviso por parte da Autoridade da Concorrência até pode ser louvável desde que, obviamente, não se fique apenas por aí.

(Diário Económico, 5ª feira, 30 de Setembro de 2004)

28 de setembro de 2004

O Princípio de Sócrates 

Por Vital Moreira

Antes de mais, independentemente do seu vencedor, as eleições para secretário-geral do PS constituíram um enorme triunfo para o próprio partido. Mobilizar dezenas de milhares de militantes para umas eleições internas; manter uma disputa entre três candidaturas, que, apesar de algumas picardias pessoais entre apoiantes, se manteve em geral dentro de parâmetros civilizados; projectar o processo para o exterior, incluindo debates nos 'media', interessando a opinião pública em geral -, eis os factores que tornaram estas eleições um fenómeno porventura irrepetível noutro partido e que mostraram um partido democrático, plural e transparente, que é uma mais-valia na relação de confiança política com os cidadãos. Em tempos de generalizada desafeição em relação à política, eis aqui uma invejável prova de vitalidade política!
Em segundo lugar, a eleição directa do líder do partido, sobretudo quando disputada, como agora, tem um evidente impacto na configuração do poder interno no partido. Faz prevalecer o factor pessoal e comunicacional dos candidatos em prejuízo das moções políticas em confronto; favorece uma espécie de regime presidencialista, que reforça a legitimidade própria do líder e a sua posição perante os órgãos colegiais representativos; e por último tende a transformar as eleições partidárias numas eleições primárias do candidato ao cargo de primeiro-ministro. Surpreendentemente, tendo em conta a tradição organizatória dos partidos socialistas, o PS é entre nós o partido que mais se apropria do modelo norte-americano de acção política, explorando a personalização da luta política, mediatizando as eleições internas e interessando nelas os cidadãos em geral e finalmente fazendo depender a selecção do líder partidário das suas capacidades para disputar a chefia do governo.
Por último, no caso concreto a grande vitória alcançada pelo vencedor dá-lhe excepcionais condições para conduzir uma forte oposição ao Governo (cujo primeiro-ministro não passou por eleições internas nem externas...), para construir uma alternativa política e para travar com êxito as batalhas eleitorais que vão ocorrer nos próximos dois anos, culminando com as eleições parlamentares de 2006 (se o actual governo aguentar até lá...). Primeiro, a sua autoridade no partido não podia ser mais robusta, sem margem para contestação dos seus opositores nestas eleições (mesmo que os não possa nem deva ignorar nem marginalizar); segundo, ele vai sair do Congresso com um esmagador apoio nos órgãos colegiais, dispondo de mão livre quanto à sua composição; terceiro, é de admitir que o apoio que Sócrates obteve dentro do partido possa ser replicado na esfera dos simpatizantes e dos votantes do PS (embora podendo não contar com os independentes mais à esquerda...).
Parece incontestável que o triunfo de Sócrates representa a vitória de uma visão mais moderada (ou mais "centrista"), menos ideológica (ou mais "pragmática") e mais liberal (em termos económicos) do PS e uma derrota de uma concepção mais fiel aos valores tradicionais da esquerda socialista, que Manuel Alegre tão bem representou, centrada sobre a igualdade, os direitos dos trabalhadores, as políticas sociais e o papel do Estado, bem como sobre uma solidariedade de fundo com os demais partidos da esquerda. Neste aspecto estas eleições, pelo desequilíbrio dos resultados apurados, marcam o início de uma nova era do PS, em que o partido vai provavelmente demarcar-se também à sua esquerda, assumindo-se deliberadamente como partido "responsável" e "moderado" (e não "radical"), como partido de alternativa de governo (e menos de contestação), enfim como partido de poder (e menos de contrapoder). Correspondentemente, o PS vai apresentar-se crescentemente como partido "de toda a gente" - a começar pelas famosas "classes médias" -, abandonando em geral a autocaracterização sociológica tradicional como partido das "classes trabalhadoras" ou das "classes populares".
Isto não quer dizer que o partido vá abandonar os objectivos e valores tradicionais do socialismo europeu, desde os direitos sociais à igualdade de sexos, havendo aliás vários aspectos em Sócrates está à esquerda de Guterres (por exemplo, a laicidade do Estado). Mas é evidente que, a par desses, serão privilegiadas políticas sociologicamente transversais ou mesmo "universais" (como o ambiente, os direitos dos consumidores ou a qualidade de vida urbana) e que, mesmo em relação às políticas tradicionais, as prioridades e os meios podem ser diferentes. A despenalização do aborto terá de passar por um novo referendo; os serviços públicos, incluindo o SNS, podem ser objecto de reformas visando maior eficiência e sustentabilidade financeira; as políticas sociais dependerão de uma política económica de crescimento e de criação de emprego; será dada maior ênfase à competência na gestão pública, ao bom governo da economia e ao rigor das finanças públicas, três aspectos em que os governos socialistas em geral e o último deles em especial não deixaram boas recordações, e que são essenciais para credibilizar o PS como alternativa de governo.
A amplíssima vitória de Sócrates revelou um PS mais sensível às questões de poder do que às de natureza ideológica. Assim, terá pesado mais a prefiguração de um forte candidato a primeiro-ministro (papel no qual nem Soares nem Alegre eram alternativa) do que a rejeição do discurso ideologicamente mais elaborado e mais comprometido de Manuel Alegre. Do mesmo modo, não se pode desvalorizar a sugestão insinuada pelo novo líder de que com ele o PS pode ter em Guterres um candidato vencedor das eleições presidenciais, uma questão crucial para a qual os outros candidatos não ofereceram resposta. E por último, não foi menos importante a insistência quase obsessiva no objectivo de uma maioria absoluta, que finalmente proporcione ao PS a possibilidade de governar sem ter de optar entre a fragilidade dos governos minoritários e uma aliança contrafeita com o PCP e/ou o BE (supondo excluída à partida uma coligação de "bloco central").
Por isso, paradoxalmente, a ostensiva recusa de responder à questão das alianças de governo funcionou a favor de Sócrates. Independentemente do sentimento do PS em relação aos partidos à sua esquerda (marcado pelo menos pela desconfiança), ele está farto de ter de governar na "corda bamba" e julga ter o direito de, por uma vez, governar sozinho. Um dos pontos fortes do vencedor foi justamente explorar o sentimento difuso de que a admissão antecipada de coligações à esquerda enfraquecia a aposta na maioria absoluta, sendo portanto uma "liability" e não um "asset" político. O princípio de Sócrates é que as eleições se ganham ao centro e que aí não se morre de amores por coligações de esquerda...

(Público, Terça-feira, 28 de Setembro de 2004)

23 de setembro de 2004

A Europa e o Iraque ("O Mundo merece melhor do que a testosterona americana") 

Por Ana Gomes

O Parlamento Europeu conseguiu, no passado dia 16, aprovar uma resolução sobre o Iraque, apesar das divergências que subsistem.
Näo faltaram pretextos a quem quis a guerra no Iraque: encontrar armas de destruição maçiça, que afinal não existiam; contribuir para a solução do conflito israelo-árabe, que afinal se agravou; combater o terrorismo, que afinal a guerra só atraiu ao Iraque e à região, desviando recursos do Afeganistão (onde a situação se agrava também). Falhou-lhes a guerra preventiva e o unilateralismo. E falhou-lhes a paz também, por grosseiros erros adicionais de planeamento e de execução.
Existisse reconhecimento dos erros e dos falhanços por parte dos responsáveis, e mais fácil seria hoje congregar esforços internacionais para ajudar a estabilizar o Iraque. Mas como pretender sequer estimular apoio à reconstrução, quando os responsáveis pela destruição subsequente à invasão nem sequer querem reconhecer que erraram? O Comissário Chris Patten (se todos os conservadores fossem como ele, o mundo estaria bem melhor...), em discurso de despedida diante do Parlamento Europeu, no dia 15, notou que o descalabro e a necessidade voltam a pôr subitamente na moda em Washington o multilateralismo, comentando que, de facto, «o Mundo merece melhor do que a testosterona americana»

A presença dos EUA no Iraque atrai hoje terrorismo e insegurança. As tropas americanas são vistas pelos iraquianos como forças de ocupação. O governo do PM Allawi desgasta-se pela colagem aos EUA, além da incapacidade na manutenção da ordem e dos métodos repressivos. Mesmo pondo de lado divergências sobre o desencadear da guerra, é forçoso admitir que a presença americana no Iraque é parte do problema, e não da solução.
A mais de um ano e meio do fim oficial da guerra, todos os dias a bestialidade terrorista ataca no Iraque. E a saga dos reféns não tem fim. Alguns são europeus: um problema novo para a UE, que tem de accionar instituições e canais diplomáticos próprios em defesa dos seus cidadãos, como apela o PE. Os raptos dos jornalistas franceses e das cooperantes italianas foram o cimento que fez unir os deputados.
A importância de as eleições, previstas para Janeiro de 2005, serem justas e livres foi sublinhada pelo PE. Mas eleições, como e quando, perguntava Madeleine Albright há dias na CNN, notando que a ONU ainda não está no Iraque e precisa pelo menos de 8 meses para as preparar? E Koffi Anan veio entretanto reforçar a dúvida. Porque eleições supõem liberdade e condições de segurança mínimas. Que não se vislumbram no Iraque nos tempos mais próximos, mesmo que a NATO começasse amanhã a treinar forças iraquianas (e até o "modus faciendi" ainda está em discussão no QG de Bruxelas). Chris Patten disse que a Comissão, atenta a segurança, não tenciona propor uma Missão de Observação Eleitoral da UE. Nos corredores da Casa Branca já se fala na inevitabilidade de adiar o processo eleitoral, tal como se admite uma guerra civil generalizada no Iraque.

Sobre como encarrilar o processo, mantêm-se as clivagens entre os grupos políticos no PE. Para mim e para a maioria dos socialistas europeus, o processo só poderá ainda (?) encarrilar se houver um regresso da ONU ao Iraque a liderar uma força de manutenção da paz, com mandato do Conselho de Segurança. Seria bom que pudesse ter o apoio da NATO, mas para ser aceite pelos iraquianos terá de integrar sobretudo tropas de países que não os que participaram na coligação invasora e ocupante. E de incorporar forças árabes. Para, precisamente, marcar a diferença e ser vista como legítima pelos iraquianos.
Nesse cenário longínquo, Portugal tenderá a ficar fora. Esta é mais uma razão para retirar a GNR do Iraque quanto antes (antes também de eventual ataque que obrigue a retirar às pressas, pois cada vez mais a GNR - desde o início desajustada e não equipada para acções de guerra - constitui alvo apetecível para terroristas empenhados numa escalada violenta daqui até às eleições americanas; e depois...). Porque, caso contrário, forças militares ou policiais portuguesas poderão ficar definitivamente arredadas de uma verdadeira Missão de Paz no Iraque.

(Visão, 5ª feira, 23 de Setembro de 2004)

21 de setembro de 2004

Transparência e Imparcialidade Eleitoral 

Por Vital Morira

Na sequência de mais um furioso ataque de Alberto João Jardim à Comissão Nacional de Eleições (CNE), por causa das eleições regionais da Madeira, o líder parlamentar do PSD na Assembleia da República (AR), Guilherme Silva, veio defender a inutilidade de tal organismo, preconizando nada menos do que a sua extinção. Essa posição já não é inédita, mas a insistência nela, nas condições em que tem lugar, não deve ser desvalorizada como mais uma "jardinice" entre outras.

Não se sabe se o deputado da Madeira falou em nome do seu chefe regional ou em nome do grupo parlamentar do PSD nacional e se as suas palavras vão ter alguma sequência numa iniciativa legislativa, ou se se trata somente de uma peça na guerra de pressão do líder regional contra a CNE neste período eleitoral. Seja como for, estamos perante uma enorme irresponsabilidade política e uma prova lamentável da ligeireza com que se tratam as questões institucionais entre nós, mesmo quando estão em causa mecanismos reguladores das eleições, que são o cerne da democracia representativa.

A CNE existe entre nós desde a fundação do regime democrático, tendo sido criada logo em 1974, com vista às eleições da Assembleia Constituinte, realizadas em 1975, sendo posteriormente estabelecida como órgão permanente do sistema eleitoral português, cabendo-lhe disciplinar e fiscalizar todos os actos de recenseamento e operações eleitorais para órgãos electivos de soberania, das regiões autónomas e do poder local e para o Parlamento Europeu, bem como no âmbito dos referendos. A CNE é um órgão independente e funciona junto da AR, sublinhando assim a sua autonomia em relação à administração comum, dependente do Governo.

A sua composição conta com um juiz do Supremo Tribunal de Justiça, a designar pelo Conselho Superior de Magistratura, que será o presidente; vários membros a designar pela Assembleia da República, sob proposta de cada grupo parlamentar; e vários técnicos designados pelos departamentos governamentais que têm mais a ver com o processo eleitoral. A composição da CNE é renovada com o início de cada legislatura, pelo que o seu mandato tem duração variável, mas não superior a quatro anos.

Entre as suas competências, contam-se designadamente: promover o esclarecimento dos cidadãos acerca dos actos eleitorais; assegurar a igualdade de tratamento dos cidadãos, bem como a igualdade de oportunidades de acção e propaganda das candidaturas durante as campanhas eleitorais; registar a posição dos órgãos de comunicação perante as campanhas eleitorais; proceder à distribuição dos tempos de antena na rádio e na televisão; decidir os recursos interpostos das decisões das entidades competentes relativas à utilização das salas de espectáculos e dos recintos públicos; apreciar a regularidade das receitas e despesas eleitorais; elaborar o mapa dos resultados nacionais das eleições.

Os poderes da CNE revestem uma natureza variada. Por um lado, ela tem poderes de autoridade vinculativos, quer na prática de actos próprios (por exemplo, distribuição de tempos de antena), quer na decisão de recursos das autoridades administrativas com funções de administração eleitoral (como os governadores civis). Por outro lado, a CNE dispõe de poderes não vinculantes, que assumem a forma de recomendações, pareceres ou informações.

A CNE está longe de ser uma instituição exclusiva de Portugal. Existem comissões nacionais eleitorais, como funções semelhantes ou próximas, em muitos países, de vários continentes, dos Estados Unidos à Nigéria, do Reino Unido à Índia, da Polónia à Malásia. Por exemplo, a Federal Election Commission dos Estados Unidos, criada em 1975, por isso contemporânea da nossa, é uma "comissão reguladora independente", tendo por função essencial a implementação da lei sobre os financiamentos das campanhas eleitorais federais. É composta por seis membros, designados pelo Presidente e confirmados pelo Senado, com um mandato de seis anos, sendo inamovíveis durante o mandato. A comissão é renovada cada dois anos em relação a dois dos seus membros. A presidência é rotativa, anualmente.

A existência de uma comissão eleitoral nacional independente da administração governamental é de considerar como uma garantia fundamental da transparência e da igualdade dos processos eleitorais e equiparados. Se existe algum domínio onde se justifica e existência de "entidades administrativas independentes" - figura expressamente prevista na nossa Constituição -, esse é seguramente o das questões eleitorais, de modo a fomentar a confiança dos cidadãos na imparcialidade da administração eleitoral. Já se imaginou, por exemplo, o potencial de desconfiança e de conflito, se a repartição dos tempos de antena entre as diversas candidaturas fosse efectuado por um membro do Governo ou por um director-geral ou pela administração dos órgãos de comunicação obrigados a tempo de antena?

Nem se diga que as funções da CNE poderiam ser desempenhadas pelos tribunais, nomeadamente pelo Tribunal Constitucional. A CNE é um órgão administrativo, sendo administrativas, e não judiciais, as suas atribuições, mesmo quando decide recursos de outras entidades administrativas. Não teria sentido judicializar essas funções, desde as de esclarecimentos eleitorais até às de administração efectiva. É evidente que as decisões administrativas da CNE são judicialmente recorríveis, como é próprio de um Estado de direito (e é exigência constitucional). Entre nós, esse controlo judicial da administração eleitoral, incluindo das decisões administrativas da CNE, cabe ao Tribunal Constitucional, que é tribunal superior não somente da justiça constitucional mas também da justiça eleitoral.

Defender a existência da CNE não significa porém defender todo o seu actual regime. No que respeita, por exemplo, à sua composição, se parece razoável a presidência por um magistrado e a representação parlamentar dos partidos políticos, já é menos defensável a indicação governamental dos elementos técnicos, podendo haver o risco de enviesamento político da composição da Comissão. O que não tem sentido, em todo o caso, é a necessidade de renovação da composição no seguimento de cada eleição legislativa. Salvo os membros indicados pelos partidos - que dependem da composição parlamentar -, os demais deveriam ter um mandato de duração fixa e mais longa (por exemplo, seis anos), para manter a estabilidade e continuidade (e proporcionar maior independência) da CNE. Do mesmo modo, conviria estabelecer as incompatibilidades necessárias para reforçar a independência dos membros.

Em vez de extinção, a CNE deve portanto ser preservada como instituição fundamental do nosso sistema eleitoral. Seria mesmo de pensar em constitucionalizar a sua existência, sendo inconsistente prever na Constituição, e bem, a entidade reguladora independente para a comunicação social e não fazer o mesmo para a comissão nacional de eleições.

(Público, Terça-feira, 21 de Setembro de 2004)

17 de setembro de 2004

Para que servirá Matosinhos?  

Por Vicente Jorge Silva

Conheci Narciso Miranda e Manuel Seabra há mais de dez anos. Tinham-me convidado para jantar na casa de chá desenhada por Siza Vieira em Leça da Palmeira e que é, para mim, uma das obras mais luminosas do arquitecto portuense.

Tempos antes, Seabra, então responsável pelo pelouro da Cultura da Câmara de Matosinhos, desafiara-me para uma palestra na sede do concelho, integrada numa série de conferências promovidas pelo município. O meu tema seria, obviamente, a comunicação social. Um amigo comum fizera-me uma apresentação extremamente lisonjeira de Manuel Seabra e, durante o jantar, tive ocasião de confirmá-la: tratava-se de um homem informado, sensível e culto, cuja imagem contrastava com a que, já então, era colada a Narciso Miranda, paradigma do cacique nortenho por excelência.

A verdade, porém, é que nesse primeiro encontro senti-me tentado a ver Narciso por um prisma mais amável: não só se me revelou aí um excelente conversador, arguto e inteligente na argumentação, contrariando algumas advertências que me haviam feito acerca da sua vulgaridade, como me pareceu evidente e genuína a cumplicidade que existia entre ele e Manuel Seabra. Tudo indicava que eram dois homens que representavam papeis distintos e complementares e que os assumiam com gosto, sem uma sombra de deslealdade e conflito: Narciso como o presidente pragmático e populista que fazia andar as coisas do dia-a-dia e Seabra como o intelectual que se encarregava de dar um "suplemento de alma" cultural às actividades da câmara (recordo-me, além das tais "conferências de Matosinhos", de concertos de jazz com periodicidade regular).

Após esta agradável surpresa inicial, aconteceu outra: foi quando, depois do jantar na casa de chá de Siza, entrei pela primeira vez no edifício da Câmara onde iria fazer a minha palestra. Após um deslumbramento arquitectónico, seguiu-se outro: nunca tinha visto - e não voltei a ver depois - um exemplo tão belo e inspirado de arquitectura moderna na nova sede de um município português. Era uma marca patrimonial que deveria funcionar como padrão de qualidade e cultura a seguir no resto do país, uma referência para Matosinhos e para toda a região nortenha, onde já nessa altura cresciam como uma maldição os mais aberrantes atentados arquitectónicos e urbanísticos. Muito justamente, o arquitecto Alcino Soutinho, autor do projecto, foi galardoado com o Prémio Pessoa por um júri a que tive a felicidade de pertencer.

Conto esta história porque me marcou pessoalmente - e porque, à distância dos anos e em face daquilo que hoje sabemos, ela ganhou para mim, retrospectivamente, uma dimensão de pesadelo sobre a natureza precária e ilusória das coisas e dos homens. Por causa dessa noite em Matosinhos, relativizei durante largo tempo as acusações de caciquismo de que, repetidamente, era alvo Narciso Miranda. Um homem que tinha associado o seu nome a uma obra tão excepcional de arquitectura contemporânea - e tão singular nos edifícios públicos nacionais - justificava sem dúvida alguma complacência.

Não escapei, é certo, ao sarcasmo de alguns amigos mais familiarizados com os meandros políticos nortenhos. Mas confesso que, apesar de tudo o que desde então escrevi acerca dos casos de caciquismo autárquico em que Narciso aparecia como uma das personagens incontornáveis, sempre condescendi em atribuir-lhe algum benefício da dúvida. Pelo menos dera carta branca a Alcino Soutinho para desenhar a mais bonita Câmara moderna do país, enquanto outros como ele só edificavam horrores à sua pífia posteridade. E, pelo menos também, tinha um colaborador próximo com a qualidade e cultura de Manuel Seabra, com o qual parecia manter então uma frutuosa relação de cumplicidade.

Se algum vidente predestinasse, nessa noite já longínqua de Matosinhos, o que iria acontecer mais de uma década depois envolvendo estas duas personagens, talvez eu tivesse lançado uma gargalhada de incredulidade. Sim, claro, seria capaz de admitir que Narciso, instalado na sua condição de dinossauro autárquico e barão do PS portuense, mutiplicaria as mais variadas tropelias para sustentar o seu poder (esse poder que aos meus olhos poderia afigurar-se provinciano e mesquinho, mas que aos olhos dele representava o espaço possível da afirmação da sua própria importância pessoal como pequenino rei de Matosinhos e candidato a vice-rei do Norte).

Em contrapartida, o que eu não imaginava de todo era que um homem como Manuel Seabra, que me parecia ter outra visão - diria: mais cosmopolita, incomparavelmente mais aberta ao mundo para além das estreitas fronteiras de Matosinhos e da politiquice local - acabasse por revelar-se como uma espécie de criatura de Frankenstein, finalmente revoltado contra o seu presumível criador. Mais: atendendo às minhas expectativas acerca de uma e outra personagem, o que fiquei a saber de Seabra depois do caso que precedeu a morte de Sousa Franco, inspirou-me um misto de estupefacção, indignação e náusea.

Como é que um homem com a formação intelectual e cultural de Seabra - dando por adquirido que eu não fora vítima de um erro de análise próximo da alucinação quando o conheci - reduz o seu horizonte de vida a uma repugnante disputa caceteira pelo poder em Matosinhos? E como foi possível, após os incidentes na lota no dia em que Sousa Franco a visitou, que nem Narciso Miranda nem sobretudo Manuel Seabra manifestassem o menor sobressalto de consciência que se exige a qualquer ser humano minimamente civilizado quando se confronta com as consequências irreparáveis e trágicas do seu comportamento?
Que é que arrastou dois homens, aparentemente amigos, cúmplices e complementares há apenas uma década, para um ódio tão cego, implacável e irracional por causa de uma notoriedade concelhia - ódio que, muito presumivelmente, custou a vida a um cidadão inocente que se empenhara numa luta política nobre mas mortalmente quixotesca? Que homens são estes que não hesitaram colocar em pé de guerra as suas tropas de choque por causa de risíveis rivalidades locais, manipulando os instintos mais baixos da populaça a soldo, e que, depois de tudo, ainda têm a desfaçatez de se considerarem injustiçados?
É suposto conhecermos alguns motivos que estiveram na origem desse ódio desenfreado entre Narciso e Seabra: o primeiro, depois de uma passagem efémera e frustrante por um cargo menor num Governo de Guterres, decidiu retomar a presidência de Matosinhos que o segundo, entretanto, ocupara. Mas é precisamente a insignificância do que estava em causa, esse horizonte do poder confinado a Matosinhos, que torna esta história insuportavelmente exemplar. Não que o poder com P grande, o poder com dimensão shakespeareana, produza situações moralmente mais aceitáveis. Só que esse tem, pelo menos, uma escala onde se plasmam grandes tragédias. Aqui, o trágico é o ridículo da pequenez provinciana e sórdida que conduz os homens à miséria moral mais chã, a de um caciquismo mortífero e eventualmente assassino.

Quando agora recordo o episódio de há dez anos em Matosinhos, interrogo-me como é possível que os dois homens com quem então convivi se tenham transformado em personagens paradigmáticas do que a vida política e partidária tem de mais doentio e irracional em Portugal, essa mancha que cobre de vergonha o regime democrático. Não basta, por isso, que Narciso Miranda e Manuel Seabra tenham sido justamente impedidos de voltar a candidatar-se a cargos autárquicos pelo partido de que são militantes. Não chega extirpar um cancro se as condições propícias à multiplicação das metástases não forem sistematicamente prevenidas e combatidas. Enquanto a irresponsabilidade, a impunidade e a selvajaria da luta pelo poder estiverem deixadas à rédea solta, sem draconianos impedimentos legais ao exercício dos mandatos políticos que pervertam a normalidade democrática, o exemplo de Matosinhos terá servido para quase nada.

(Diário Económico, 6ª feira, 17 de Setembro de 2004)

16 de setembro de 2004

Utilizador-pagador  

Por Vital Moreira

A regra do utilizador-pagador vigora desde sempre como princípio de financiamento dos serviços públicos que se traduzem em prestações individuais, quer nas tradicionais "utilities" -- como a água, a electricidade, as telecomunicações, os transportes públicos, os serviços postais --, quer noutros serviços, como a justiça e os serviços notariais, entre outros.

No entanto, essa regra não tem aplicação universal, havendo razões substanciais para isentar de pagamento pelos utentes vários serviços públicos, bastando referir os de natureza obrigatória, como o ensino básico (que a própria Constituição determina que seja gratuito), bem como os casos em que o sistema de cobrança seria impossível ou muito dispendioso (por exemplo, o uso das ruas ou da generalidade das estradas).

Por isso, além de haver muitos serviços públicos pagos pelos utentes no acto de uso ou consumo (ainda que com isenções ou reduções parciais, de acordo com a capacidade financeira dos utentes), há os que são financiados por seguros obrigatórios ou contribuições especiais (segurança social, por exemplo) ou pelos impostos gerais, sendo gratuito o seu consumo ou uso individual (caso da saúde, até agora) e ainda outros que obedecem a um "mix", sendo em parte suportados pelo orçamento e noutra pagos pelos interessados (caso do ensino superior, entre outros).

Não existe portanto nenhuma regra absoluta nesta matéria, dependendo as soluções de muitos factores, entre eles o facto de muitos serviços públicos produzirem não somente benefícios individuais para os utentes mas também "externalidades positivas" para a sociedade (caso da educação, da saúde, etc.), as quais devem ser compensadas por via dos impostos de todos e não pelos utentes individuais. Não se justifica, por isso, meter no mesmo saco por exemplo as auto-estradas e os cuidados de saúde, como neste momento ocorre entre nós. Trata-se de situações completamente distintas, mesmo deixando de lado a diferença de tratamento constitucional, visto que a Lei Fundamental garante o SNS como serviço público "tendencialmente gratuito", enquanto que em relação às auto-estradas se trata de uma questão puramente política, que qualquer governo é livre de solucionar como quiser.

No caso das auto-estradas SCUT, elas são desde logo uma excepção em relação à generalidade das auto-estradas entre nós, que são portajadas; depois, elas constituem uma mais-valia adicional facultativa para quem as usa, pois existe sempre uma alternativa rodoviária em todos os itinerários; terceiro, elas estão longe de beneficiar todos, desde logo porque existe muita gente sem automóvel, que portanto nunca as usa e que as paga pelos impostos, se elas não forem pagas pelos utentes (o que se afigura de todo injusto); por último, a par do seu contributo para o desenvolvimento económico, as auto-estradas têm também enormes ?externalidades negativas?, sobretudo em termos ambientais. Aqui faz todo o sentido aplicar em toda a linha o princípio do utilizador-pagador, até porque é relativamente pouco dispendioso instalar um sistema de cobrança.

Nada disso sucede no caso dos cuidados de saúde. Eles visam satisfazer o direito universal à saúde, pelo que não devem depender da capacidade económica para os pagar, sob pena de negá-lo aos que o não podem fazer; o seu "consumo" não depende de uma decisão livre dos beneficiários; não têm alternativa; geram enormes "externalidades positivas" (em termos de bem-estar económico e social colectivo); além disso, estando obviamente excluído o pagamento "à cabeça", seria muito dispendioso montar um sistema eficaz de cobrança (como mostra, aliás, o caso das próprias taxas moderadoras), sobretudo tendo de diferenciar as taxas de acordo com os níveis de rendimento dos utentes. É por isso que os cuidados de saúde são assaz inapropriados para a aplicação do princípio utilizador-pagador, sendo socialmente mais justo o seu financiamento pelos impostos.

As vantagens apontadas ao princípio do utilizador-pagador são evidentes (alívio da pressão fiscal, racionalização do consumo dos serviços, possibilidade de empresarialização e concessão a entidades privadas, etc.). Mas, além de que hoje existem técnicas que permitem empresarializar e concessionar serviços públicos sem pagamento pelos utentes (os hospitais SA e as próprias SCUT são disso exemplo), há também exigências de equidade social, de garantia de acesso universal e mesmo de eficácia (dado o avultado custo da montagem dos sistemas de cobrança) que só podem ser satisfeitas mediante a sua gratuitidade e o seu financiamento por via do orçamento do Estado.

(Diário Económico, 16 de Setembro de 2004)

O triunfo da utipag 

1 "Arnaldo anda apoquentado com o peso. Não por razões de ordem estética, mas económica. É que cada quilo-minuto de utilização de partes comuns do seu prédio custa 0,075 euros. Desde que o princípio do utilizador-pagador se generalizou, muitos condomínios instalaram mecanismos inteligentes para detecção da frequência e da carga de uso, por habitante, dos elevadores, das escadas, das garagens, das arrecadações e outras áreas comuns. O minuto e o quilograma por centímetro quadrado foram as unidades de medida identificadas como relevantes por uma empresa de consultoria especializada em gestão eficiente e democrática de condomínios. O sistema não admite falhas nem excepções porque é suportado como um add-on pelo cartão do cidadão-utilizador (vulgo CCU), de porte obrigatório.

Ao princípio, Arnaldo e a maioria dos seus vizinhos eram fervorosos entusiastas da corrente utipag (como veio a ser popularizada), essa nova vaga libertadora das velhas contradições. A sua aplicação às questões do condomínio tinha sido decidida, há uns anos atrás, em plena onda de entusiasmo doutrinário. Alguns haviam mesmo defendido a sua extensão às questões do ruído e da produção de lixos domésticos, mas a tecnologia disponível à época não permitia ainda uma quantificação rigorosa e a ideia acabou por cair. Hoje, só os mais fundamentalistas parecem dispostos a recuperá-la.

Na rua, o uso da calçada é pago, nuns casos à câmara, noutros a entidades concessionárias de espaços públicos, ao quilo-minuto. O mesmo princípio se aplica à malha viária, com um amplo leque de escolhas ao dispor do cliente-cidadão. As tecnologias wireless e o CCU resolveram todos os problemas de identificação, medição e débito em conta pela utilização individual do território. O CCU revelou-se, aliás, um caso de sucesso mundial. Inspirado na velha ideia dos pré-pagos do tempo da telefonia GSM e na boa memória da Via Verde, o seu criador introduziu-lhe uma vasta gama de produtos, serviços e modalidades de pagamento. É possível carregar duzentos, quinhentos ou mil euros de serviços públicos fixos no CCU e vê-los consumirem-se, de modo transparente, em cada milímetro de espaço percorrido.

Os serviços públicos móveis - educação, saúde, justiça, segurança e outros - também se suportam no CCU, embora o algoritmo de cálculo dos consumos e os critérios de facturação sejam diferentes. Por exemplo, o uso de polícias é facturado ao minuto, com diferentes modalidades de serviço por patente e corporação. Um sargento da PSP é mais caro do que um tenente da GNR, um fiscal da câmara de Lisboa é mais caro do que um outro de Mirandela, e assim por diante. Na educação e na saúde, todos os serviços se tornaram tendencialmente pagos, tal era o desígnio da utipag. Hoje, não há penso rápido ou pedaço de giz que escape à facturação democrática. Os tempos em que os ricos gozavam gratuitamente da excelência dos serviços públicos acabaram-se e, assim, os pobres voltaram a encontrar lugares disponíveis nas escolas C+S, nas listas de espera e nas camas dos hospitais públicos. A máquina burocrática do Estado, essa, está reduzida ao super-ministério da Facturação e Controlo, onde se concentra meio milhão de funcionários em tarefas que abrangem toda a cadeia de valor da utipag, incluindo a investigação e a engenharia de produto."

2 A história de Arnaldo é a de um mundo onde nos arriscaríamos a viver se a utipag não passasse de uma moda. E porque de moda se trata, o nosso primeiro-ministro adere, de peito aberto e sem fitas, à ideia do utilizador-pagador. Fácil e pop. Começa a ser um hábito preocupante, o de Santana Lopes tratar os assuntos do Estado com a mesma ligeireza com que se acostumou a tratar dos dossiês municipais. A propósito da intenção de cobrar os serviços de saúde por níveis de rendimentos, afirmou sem pestanejar: "se quem pagasse impostos não fossem principalmente aqueles que vivem do seu trabalho, aí teríamos as desigualdades corrigidas; mas como o nosso sistema não é perfeito, temos de introduzir estas correcções para corrigir as desigualdades". O absurdo do juízo dispensa comentários. Numa perspectiva lúdica, é preferível deitarmo-nos a adivinhar o que quer o primeiro-ministro dizer com cenários de "competição suspensiva" a propósito das negociações salariais com a função pública.

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 16 de Setembro de 2004

14 de setembro de 2004

O Fim da Gratuitidade do SNS?  

Por Vital Moreira

O projecto de aumento diferenciado das "taxas moderadoras" no serviço nacional de saúde (SNS), em função dos níveis de rendimento dos utentes, anunciado pelo próprio primeiro-ministro, estava naturalmente destinado a levantar a tempestade que imediatamente desencadeou.
O caso não é para menos. Por um lado, porque a gratuitidade do SNS (e o seu consequente financiamento pelo Orçamento do Estado) faz parte, por assim dizer, do seu código genético entre nós, desde a sua criação em 1978, depois de garantido na Constituição de 1976, sendo mesmo um dos mais conhecidos ícones constitucionais. Por outro lado, os cuidados de saúde não são um serviço público como outro qualquer, pois eles não dependem em geral de uma decisão livre dos utentes nem se traduzem numa mais-valia ou acréscimo patrimonial para eles, consistindo antes no tratamento de doenças ou de lesões que afectam a sua saúde e que podem implicar perigo para a própria vida. A ideia básica é a de que o direito à protecção da saúde não deve depender das condições económicas de cada um.
À primeira vista, a ideia de tornar onerosos os cuidados de saúde para quem os pode pagar até pode parecer boa, mesmo em termos de justiça social, além de diminuir os encargos do SNS por via do Orçamento do Estado. Tudo consistiria, afinal, em reservar o financiamento orçamental sobretudo para os que não podem ou podem menos. O resultado seria naturalmente uma menor dependência do SNS em relação aos impostos, permitindo-lhe dispor também de maior autonomia financeira, bem como, eventualmente, de recursos financeiros adicionais para melhorar os cuidados prestados a todos.
Mas há boas razões para pensar que se trata de uma falsa boa ideia, sem bases sustentáveis. Para além de questões de filosofia do SNS, essa proposta defronta pelo menos duas dificuldades sérias: (i) primeiro, ela não parece ser compatível com a Constituição, que estipula que o SNS é "tendencialmente gratuito", o que não deixa grande margem para contrapartidas financeiramente significativas; (ii) segundo, com a opacidade e iniquidade do sistema fiscal que temos, dada a enorme evasão fiscal existente, a pretensa justiça social poderia redundar em enormes injustiças relativas, susceptíveis de gerar um elevado contencioso social e de descredibilizar rapidamente a solução.
É certo que a absoluta gratuitidade inicial do SNS já tinha sido atenuada com a criação das "taxas moderadoras", nos anos 80, que o Tribunal Constitucional não considerou ilegítimas (numa decisão aliás pouco pacífica) e que foram posteriormente "ratificadas" na revisão constitucional de 1989, que introduziu a expressão acima referida ("tendencialmente gratuito"). Mas, como indica o seu próprio nome, a função das taxas moderadoras não é propriamente financiar o SNS (esse é quando muito um efeito colateral, aliás pouco relevante quantitativamente), mas sim desincentivar a procura redundante de cuidados de saúde. Do que se trata é de poupar meios e prevenir gastos supérfluos, mais do que fazer pagar uma parte das respectivas despesas. Ora, a proposta agora feita obedece a outra racionalidade fundamentalmente distinta, colocando a cargo dos utentes o pagamento de uma parte dos custos dos cuidados recebidos. Por isso não se afigura que uma tal alteração possa ser feita sem prévia mudança constitucional.
Nem se invoque o caso das propinas do ensino superior, recentemente aumentadas. Por um lado, as propinas sempre foram entendidas como um pagamento parcial do serviço recebido pelos beneficiários, e não como taxa dissuasora de consumos redundantes; por outro lado, a situação de partida é totalmente distinta, porquanto no caso das propinas se tratou de actualização do seu valor inicial (pré-constitucional), sem aumento em termos reais (de outro modo seriam inconstitucionais), enquanto as novas taxas do SNS implicarão obviamente aumentos reais, porventura substanciais (sem o que seria negligenciável a sua contribuição para o seu financiamento).
Se a criação de verdadeiras taxas de retribuição dos cuidados de saúde enfrenta, à partida, um sério obstáculo constitucional, a sua indexação de acordo com os rendimentos dos utentes depara com a incontornável falta de critério fiável para a sua determinação. A declaração do IRS, que deveria ser um retrato fiel do nível de rendimentos de cada pessoa (ou de cada família), torna-se imprestável como critério diferenciador minimamente credível, dados os conhecidos níveis de isenção ou de evasão fiscal na tributação dos rendimentos de capital, dos empresários e profissionais liberais. Tudo indica que o resultado seria altamente injusto em termos de equidade, fazendo pagar mais aos titulares de rendimentos médios ou elevados por conta de outrem, que já são quem paga proporcionalmente mais impostos. Além de uma revisão constitucional, seria necessária portanto também uma revolução fiscal.
Mas o argumento porventura mais poderoso contra o pagamento individual, ainda que parcial, dos cuidados de saúde por quem deles necessita tem a ver com a aleatoriedade dos factores que os tornam necessários (doenças e acidentes) e com a insegurança e a desigualdade que a onerosidade instalaria nas pessoas e na sociedade em geral. As pessoas saudáveis e que não fossem vítimas de acidentes ficariam isentas; as pessoas doentes ou acidentadas, além dos custos pessoais dessa condição, ver-se-iam ainda forçadas a consumir em cuidados de saúde uma parte considerável do seu rendimento, podendo por isso ter de prescindir deles para não ter de os pagar. É por isso que a alternativa ao sistema de financiamento dos serviços públicos de saúde por via dos impostos e do Orçamento do Estado (em que se integra o SNS nacional) é o sistema do seguro de saúde geral e obrigatório, que tem de comum com aquele a eliminação do pagamento individual dos cuidados de saúde por cada prestação recebida e a solidariedade colectiva de todos pelos cuidados de saúde prestados aos que deles necessitam, afastando por isso os referidos factores de risco e de desigualdade.
Se se quer mudar o sistema de financiamento do SNS, criando uma fonte de receitas "endógena", em alternativa aos impostos gerais e ao Orçamento do Estado, então mais vale ter a coragem de assumir expressamente uma mudança de paradigma em toda a linha. Seria mais transparente, mais coerente e, se calhar, menos problemático.

Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)

1. A polémica surda gerada pela realização de exéquias fúnebres do falecido presidente no Tribunal Constitucional na Basílica da Estrela (aparentemente transformada em "basílica do Estado"), quando era conhecida a sua filiação maçónica, põe em relevo mais uma vez a falta entre nós de espaços civis condignos para esse efeito. Se as exéquias religiosas fazem parte da liberdade religiosa dos crentes, em contrapartida os não crentes têm direito a exéquias não religiosas em espaços civis. O exemplo francês, onde existem serviços públicos funerários a cargo dos municípios, ilustra um exemplo de civilidade laica, onde os não crentes não têm de recorrer forçadamente às capelas funerárias das igrejas e à liberal generosidade da Igreja Católica (aliás, louvável), como sucede entre nós.

2. Quem julgou que a excepção legalmente estabelecida para os "touros de morte" de Barrancos acabaria com essa questão em Portugal enganou-se redondamente (como era de esperar, infelizmente). Agora foi a vez de Monsaraz, de novo invocando uma "tradição popular". Só é de esperar que o precedente de Barrancos não se repita: primeiro, a impunidade para os infractores; depois, a reiteração da cena nos próximos anos; e finalmente a intervenção do Presidente da República a sugerir o alargamento da excepção. De excepção em excepção, não tardaria a legalização geral da barbárie do touricídio público para gáudio da plebe. Dá vontade de fugir!

(Publico, Terça-feira, 14 de Setembro de 2004)

9 de setembro de 2004

A derrota do interesse público 

Contrariamente ao que se supõe, os portugueses adoram consensos. Se fosse por nós, escolheríamos sempre governos corajosos e populares, indiferentes aos jogos de interesses alheios e seguros de uma vontade colectiva onde todos os bons sentimentos se reconheceriam. Seria fácil pormo-nos todos de acordo quanto a uma agenda de medidas governamentais ou a um caderno político de encargos. Todos sentimos os males da nação e os seus efeitos funestos, partilhamos as mesmas frustrações, as mesmas perplexidades e até as mesmas astúcias. Conhecemos o sistema por dentro e por fora, sabemos das suas lacunas e imperfeições e temos ideias. Então o que nos tolhe os movimentos? O cansaço, os interesses instalados, as restrições financeiras, um vírus desconhecido, a tentação pelo abismo?

Certos agentes perniciosos são facilmente identificáveis, embora difíceis de exterminar. Por exemplo, o desperdício de trezentos milhões de contos na compra de submarinos só pode ter uma explicação - o vírus intermediário. Nenhum português, inclusive do meio castrense, consegue alinhar duas razões inteligíveis em favor desta incrível operação subaquática. O resultado final será mais uma vitória do vírus e da unidade de submarinos da nossa marinha de guerra sobre a sensatez e o interesse público.

O fenómeno boticário é outro dos que não exigem um grande trabalho de pesquisa na detecção dos agentes de bloqueio. O absurdo e imoral condicionamento do número de farmácias e a proibição da venda livre de medicamentos que não careçam de receita médica são verdadeiros atentados aos interesses dos consumidores, unicamente explicáveis pelos meios de pressão desde sempre utilizados sobre os governos pela poderosa associação dos farmacêuticos (a ANF). É que, sem a sua prestimosa colaboração, as contas da saúde não aguentam?O resultado é o sabido: vitória clara da ANF e dos boticários sobre o interesse público.

No ordenamento e qualificação do território, é a conjugação dos interesses financeiros das autarquias com a máquina trituradora do betão e os seus lucros fáceis que continua a levar de vencida o direito dos portugueses a viverem melhor. O interesse colectivo está no planeamento urbanístico cuidado, na preservação da qualidade ambiental e arquitectónica, na elevação dos níveis de bem-estar, não nos bolsos dos empreiteiros. Para inverter a situação, seria necessária uma dose de cavalo de coragem e clarividência, cerceando as tentativas de revisão de PDM movidas pelo simples jogo da bisca imobiliária e impedindo novos licenciamentos nas orlas costeiras e noutras áreas protegidas. Ao mesmo tempo, impõem-se novas regras para o financiamento das autarquias, baseadas em critérios cristalinos de serviço aos cidadãos e aos agentes económicos sérios, em vez de no metro cúbico de cimento. Até lá, os actores do imobiliário continuarão a ser os donos da bola, dos estádios e das secretarias. Baterão o interesse público por cinco a zero (um golo por cada partido com representação parlamentar) em todos os jogos, ano após ano.

A reforma da administração pública é porventura o melhor exemplo de consensualidade cristã do nosso rectângulo. Todos convergem na causa, todos divergem na aproximação. Não é caso para menos. Setecentos mil funcionários públicos são um número suficientemente esmagador para fazer vacilar o mais sério dos políticos. Depois, há a complexidade da sua gestão, os três milhares e meio de organismos públicos, a sua máquina dispendiosa e perra, os seus recursos simultaneamente escassos e excessivos, em contraponto com a gritante necessidade de modernização dos serviços e de diminuição drástica dos seus custos. Esta será certamente a mais dura das batalhas a travar pelos dirigentes políticos que prezem a causa pública.
Da saúde à educação, da administração da justiça à gestão do território, os combates do futuro passarão seguramente pela visão estratégica, pela competência e pela hierarquização consistente de prioridades. Quero pensar que a retórica oca e inconsequente pouco contará nos destinos colectivos e que os eleitorados não se deixarão ludibriar pelas propostas fáceis e imediatas. Quero pensar que as atitudes patrióticas e solidárias não se ficarão pelo acessório e ousarão enfrentar o essencial. Quero pensar que as gerações futuras terão orgulho em sentir-se portuguesas.

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 9 de Setembro de 2004

7 de setembro de 2004

Transparência e Justiça Fiscal 

por Vital Moreira

Entre as "sete medidas para um programa de esquerda" propostas por Luís Campos e Cunha aqui no PÚBLICO há dias consta a de pôr termo ao sigilo fiscal, nomeadamente no que diz respeito às declarações de rendimentos, a exemplo do que sucede em alguns países escandinavos, solução que o autor considera preferível à extinção do sigilo bancário para efeitos fiscais, que pode ter efeitos colaterais negativos sobre a confiança no sistema bancário.
Aqui há uns anos, uma escola superior de Lisboa publicou a lista dos beneficiários de bolsas de estudo acompanhada da capitação do rendimento dos contemplados, que tinha justificado a regalia. O facto desencadeou iradas reacções por parte dos interessados, com protestos de violação da vida privada e outros direitos humanos. Ora, o que suscita perplexidade é que seja possível beneficiar de isenções fiscais, com base em insuficiência de rendimentos, sem ser obrigado a disponibilizar publicamente as respectivas declarações fiscais. Isso devia valer para as isenções de propinas, para as regalias tributárias e para os subsídios públicos de qualquer espécie, especialmente quando estejam condicionados à situação económica dos beneficiários.
Nada há de pior para a credibilidade e sustentabilidade de um sistema fiscal do que a sensação generalizada da sua injustiça relativa, sobrecarregando indevidamente os titulares de rendimentos do trabalho dependente em relação aos rendimentos do capital e das profissões liberais. A periódica divulgação da média do IRS pago pelas profissões liberais e pelos empresários não faz mais do que confirmar as mais fortes sspeições de generalizada evasão fiscal por quem mais deveria pagar. E nem tudo deriva do regime especialmente generoso que a própria lei confere aos titulares desses rendimentos, sobretudo em matéria de despesas deduzíveis ao rendimento colectável, onde pode entrar tudo e mais alguma coisa. Um módico de transparência fiscal poderia ser decisivo na diminuição dessa flagrante iniquidade fiscal.
Uma interpretação extremista da norma constitucional sobre o "rendimento real" no que respeita à tributação das empresas - esquecendo que a letra da Constituição usa o advérbio "fundamentalmente" (e não "exclusivamente") e que o rendimento real não tem de coincidir sobre o rendimento declarado pelos interessados - conduziu à escandalosa situação do IRC, em que a esmagadora maioria das empresas declara sistematicamente prejuízos durante anos consecutivos, sem que nada lhes suceda, continuando mesmo muitas delas a beneficiar de subsídios e apoios públicos, como se fossem zelosas cumpridoras dos seus deveres tributários (e não estivessem também a distorcer a concorrência).
A principal função do sistema fiscal - a própria Constituição o diz - é a satisfação das necessidades financeiras do Estado e das demais entidades públicas. Ora uma das consequências das doutrinas neoliberais, no sentido da redução do papel do Estado, nomeadamente no que respeita às políticas sociais, tem sido a de forçar a diminuição das receitas fiscais, para desse modo justificar a baixa das despesas sociais, por falta de capacidade orçamental. Trata-se de uma tendência geral, mas se fosse necessário apontar um exemplo flagrante, bastaria mencionar a política fiscal do Governo de Bush nos Estados Unidos, caracterizada por maciças baixas de impostos para os mais ricos, seguidas de enormes cortes nos programas sociais. Um conhecido crítico desta política, Paul Krugman, professor em Princeton e cronista do "New York Times", já lhe chamou a política "dooh nibor", ou seja, Robin Hood (Robin dos Bosques) ao contrário, tirando aos pobres para dar aos ricos. Em vez de determinar a carga fiscal em conformidade com os encargos resultantes das funções do Estado, democraticamente definidas, os governos invertem as coisas, reduzindo primeiro a carga fiscal, sempre fácil de "vender" politicamente, para depois invocar a falta de receitas para cortar no financiamento das tarefas públicas. A política da redução de impostos tornou-se um dos pontos principais da agenda política das camadas mais abastadas contra o modelo do "Estado social".
Para além das políticas de redução de impostos, outra das razões para a perda de eficácia do sistema fiscal está no abuso dos instrumentos fiscais para a promoção das mais diversas políticas, umas plenamente justificáveis, como a protecção do ambiente ("fiscalidade verde"), outras porém carecidas de suficiente racionalidade e mesmo de eficácia, quando comparada a perda de receita com os resultados obtidos. Como foi posto em relevo recentemente por um dos nossos mais credenciados fiscalistas, o prof. José Xavier de Basto, o sistema fiscal encontra-se demasiado sobrecarregado por excepções e regimes especiais, que o tornam excessivamente complexo, comprometendo a sua eficácia, até por dificultarem a fiscalização e facilitarem a evasão fiscal. Nalguns casos, essas regalias fiscais servem para alimentar uma verdadeira "indústria das deduções fiscais", como sucede entre nós com os programas de apoio à poupança, que beneficiam essencialmente as instituições financeiras, sem contribuição assinalável para os objectivos de incentivo à poupança pretendidos. Outra característica desses programas, altamente onerosos em termos de "despesa fiscal", está na sua regressividade, visto que eles beneficiam maioritariamente segmentos sociais titulares de médios e altos rendimentos, contrariando, se não anulando mesmo, o princípio da progressividade do imposto sobre o rendimento pessoal.
Numa perspectiva de esquerda, torna-se evidente a falta de uma visão consistente da questão fiscal. Perante o abalo sofrido pelo modelo social-democrata tradicional, caracterizado, entre outras coisas, pela centralidade do imposto de rendimento pessoal, com taxas altamente progressivas, pela desconfiança em relação aos impostos indirectos, considerados socialmente regressivos (dada a maior proporção de rendimento consumido nos titulares de baixos rendimentos) e pela tendência para pôr a cargo do sistema fiscal numerosos objectivos extrafiscais, tem sido notória a sua incapacidade para uma resposta coerente à ofensiva neoliberal no sentido da tendencial eliminação do "Estado fiscal", especialmente no que diz respeito aos impostos directos. Por vezes, causa surpresa ver a facilidade com que se junta à agenda neoliberal, como sucedeu recentemente entre nós com a pacífica eliminação do imposto sobre sucessões e doações.
Sem um sistema fiscal eficaz e equitativo, não há políticas sociais que resistam. Seria bom que no actual debate doutrinário e político que se desenrola no PS este tema tivesse a atenção que merece.

Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)
1. Há personalidades cujo desaparecimento deixa um vazio impreenchível muito para além do círculo dos seus amigos e admiradores. É o caso de Luís Nunes de Almeida, juiz do Tribunal Constitucional desde a sua criação em 1982 e seu presidente desde o ano passado. Em certo sentido ele representa a história da justiça constitucional entre nós, sob a égide da Constituição de 1976, pois integrou a Comissão Constitucional (1976-83), foi protagonista da revisão constitucional de 1982, que criou o TC, e contribuiu decisivamente para a afirmação deste como órgão supremo da justiça constitucional. São pessoas deste gabarito que fazem a história das instituições. Tendo compartilhado com ele alguns desses passos, é com enorme pesar que o vejo partir tão prematuramente.

2. Passados quase sete anos sobre a revisão constitucional de 1997, que extinguiu os tribunais militares fora de situações de guerra, vai finalmente entrar em vigor a lei que procede à sua efectiva extinção. Embora tardio, trata-se de um passo decisivo no sentido da extinção dos foros especiais e da plenitude da jurisdição civil. Um passo em frente na civilização democrática.

(Público, Terça-feira, 07 de Setembro de 2004)

2 de setembro de 2004

O betão, o 10 de Junho e a gestão autárquica 

Se prestarmos atenção, verificaremos que as autarquias se confrontam com escolhas tendencialmente mais importantes para a vida dos cidadãos do que os governos centrais. Enquanto estes, em perda progressiva de terreno, exercitam a pouca margem de manobra que lhes resta em acrobacias fiscais e na gestão dos sistemas pesados, as regiões e os municípios vêem as suas competências progressivamente alargadas, passando a influir cada vez mais no quotidiano dos cidadãos e na sua qualidade de vida. Para o bem e para o mal, detêm hoje amplos poderes na gestão da coisa pública, administrando o território e prestando serviços de interesse geral. Por isso, devemos ser especialmente exigentes para com a administração local, confrontando-a com as suas múltiplas insuficiências, erros e omissões (venalidades à parte). É que algo tem de mudar na gestão autárquica em Portugal, sob pena de as gerações futuras nos virem acusar, a justo título, de termos assistido impávidos à transformação do país num rectângulo inabitável.

Um dos primeiros males a erradicar é a cultura e prática do betão. Bem sei que estávamos carentes de infra-estruturas - e ainda estamos, não se devendo regatear esforços no alargamento e consolidação das redes viárias - e que o sector da construção civil tem sido um amigo fiel dos governantes e dos autarcas, contribuindo em tempos difíceis para a manutenção dos níveis de emprego e para o equilíbrio dos cofres partidários. Condecore-se então a classe no 10 de Junho, distribuam-se tantas ordens de mérito industrial quantos os empreiteiros deste país e dê-se-lhes por um dia o prazer do reconhecimento social que tão avidamente procuram. Finda a festa, juízo. Portugal já é um case study em matéria de construção civil. Somos, em toda a Europa, quem mais constrói prédios e menos mantém os existentes. Estamos no top ten mundial em posse de habitação própria e para lá caminhamos alegremente no que respeita às casas de fim-de-semana. Temos os melhores estádios do mundo, resorts turísticos de seis estrelas, condomínios de luxo pelos quatro cantos. Temos planos de ocupação da orla costeira que, a prosseguirem, deixarão o Oeste, o Alentejo e o Algarve completamente irreconhecíveis. Enquanto as nossas cidades batem todos os recordes de casas devolutas, o betão progride, imparável, à conquista de território livre de encargos.

Será que os poderes municipais não estão conscientes dos perigos do cimento e da descaracterização urbanística e territorial que acarretam? Suponho que sim, pelo menos os que ainda se preocupam minimamente com a qualidade de vida dos cidadãos. Só que a tentação é demasiado grande - quanto mais metros quadrados de construção, maiores as receitas municipais. É este jogo orçamental perverso (além de outros jogos inconfessáveis) que corrompe a boa política e destrói os esforços de qualificação urbanística e ambiental, vergando-os aos interesses da fileira imobiliária. Não possuo a fórmula milagreira, mas sei que o actual sistema é pernicioso e que é necessário encontrar um melhor.

Portugal não é, aliás, um caso virgem nesta matéria, bem pelo contrário. São muitos os países do hemisfério norte que se debatem com problemas do mesmo tipo, a começar pelos Estados Unidos, onde as contradições entre o novo e o "velho", o público e o privado, o rural e o urbano, têm vindo ultimamente a atingir proporções dificilmente imagináveis. O aperto orçamental a que os estados da União e os municípios estão sujeitos tem-nos levado ao uso e abuso da figura do domínio administrativo ("eminent domain"), que permite às autarquias tomarem posse legal, mediante indemnização, de qualquer espaço privado desde que aleguem estar a agir no sentido da valorização do património e, assim, no do interesse público (!). Um bairro residencial do tipo Campo de Ourique ou Restelo pode ser declarado ultrapassado ("blighted") pelo mayor de uma cidade, arrasado em três tempos e substituído por um luxuoso condomínio em altura previamente atribuído a um promotor imobiliário. Tudo isto às claras (como é bonita a transparência...), em nome da eficiência e das receitas municipais.

Estou convicto de que um dos principais combates da cidadania se travará no terreno do ordenamento territorial e do meio ambiente. A luta pela nova moeda de troca, o metro quadrado, não é do interesse público. Se é certo que os planos directores municipais necessitam de acertos e, em muitos casos, de revisões profundas, o sentido da mudança não deverá ser o da famigerada alteração do uso de solos para fins especulativos. O que faz falta são mais e melhores espaços públicos, mais zonas verdes e de lazer, melhor recuperação urbana, melhor arquitectura. Não é pedir muito. No fundo, só queremos que os nossos impostos e taxas municipais se traduzam em melhor qualidade de vida.

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 2 de Setembro de 2004

O Estado regulador no PS que aí vem 

Com o Governo de férias, a discussão das propostas dos três candidatos à liderança do Partido Socialista tornou-se no acontecimento político mais importante das últimas semanas.
Procurei nas três "moções" apresentadas as respostas para questões relevantes em matéria de regulação económica, como a natureza do Estado regulador, a opção pela regulação independente ou a importância dos direitos dos utentes em matéria de serviços públicos.
Tendo em conta algumas reformas que ocorreram durante o último governo do PS, poderia imaginar-se que estas seriam questões pacíficas nas diferentes propostas. Mas quem tem acompanhado alguns debates promovidos pelo partido na oposição não estranhará as diferenças nas respostas oferecidas, que serão até mais profundas do que aquilo que parecem.
Por vezes, à esquerda, a própria noção de Estado regulador é vista como sinónimo de um Estado fraco, que desistiu de intervir na economia, sendo assim associado a posições de tendência neo-liberal, o que está longe de corresponder à realidade. O Estado regulador moderno deve ser forte nas suas opções regulatórias, fiel aos seus princípios e eficiente nas suas políticas. Também nem sempre é compreendida a regulação independente, nem a sua lógica própria de funcionamento, o que conduz a uma certa desconfiança sobre as suas vantagens e a uma incompreensão sobre os seus riscos e custos.
E se a liberalização económica, as privatizações e as parcerias público-privadas, iniciadas nos anos 90, seguiram o seu curso no governo PS, importa agora discutir se o Estado português tem capacidade reguladora suficiente para garantir o interesse geral e assegurar os direitos dos utentes, resistindo à mera lógica de criação de novas áreas de mercado, que numa economia aberta e pequena como é a nossa poderão ser ocupadas sobretudo por alianças estratégicas multinacionais (como na distribuição de água ou no saneamento).
A moção de José Sócrates é aquela que mais explicitamente aborda algumas destas questões. Nela se defende que «ao Estado cabe acorrer às falhas de mercado, bem como garantir a efectiva prestação de adequados serviços públicos e prestações sociais», o que não faz dele necessariamente o prestador, admitindo-se «que ganhos de produtividade na prestação de serviços públicos podem ser conseguidos através da sua prestação por entidades privadas». Mas não se ignora que os «serviços públicos constituem hoje grandes oportunidades de negócio, pelo que a sua prestação privada nem sempre se funda na busca desinteressada das soluções que melhor servem o interesse geral». O reforço da participação dos utentes nas entidades reguladoras consta também dos objectivos enunciados, embora esta possa ser uma maneira demasiado clássica e não suficiente para activar o papel do utente do serviço. Mais imaginação é necessária neste domínio.
A moção de Manuel Alegre é bastante menos precisa quanto ao papel do Estado regulador e aos serviços públicos. Embora possa ser estimulante a ideia do «Estado estratega», a sua concretização não permite descortinar com clareza uma posição quanto às novas formas de organização desses serviços, à respectiva regulação e ao modo de a operar. Apenas num ponto ela se torna mais concreta: a ideia de que um Estado regulador precisa «de manter nas suas mãos instrumentos eficazes, como, por exemplo, a Caixa Geral de Depósitos», de onde se deduz que o Estado estratega, além de regulador, deve manter uma vertente de Estado produtor, mesmo fora da área dos serviços públicos, em concorrência com os privados.
Por sua vez, João Soares limita-se a acentuar genericamente a indispensabilidade da regulação no domínio dos serviços económicos e sociais essenciais.
É quanto aos serviços de saúde que as três moções se posicionam com mais pormenor. Enquanto a de Sócrates não ignora algumas das reformas iniciadas pelo PS quando foi Governo, como a da empresarialização dos hospitais, a de Alegre contém uma visão mais conservadora do modelo de gestão tradicional, rejeitando explicitamente o modelo dos "hospitais SA". Todas elas se preocupam com a avaliação dos resultados das reformas.
Enfim, se as posições adoptadas sobre os serviços públicos e a regulação económica podem ficar ainda aquém do desejado, sobretudo pela sua generalidade, sem dúvida que algumas portas foram abertas para permitir pequenas-grandes respostas para questões que não podem ser por mais tempo ignoradas ou tratadas como se vivêssemos nos gloriosos anos sessenta.

Maria Manuel Leitão Marques, Diario Económico, 5ª feira, 2 de Setembro de 2004

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