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30 de abril de 2005

Trinta anos depois 

Por Vital Moreira

Ninguém que tenha vivido a jornada de 25 de Abril de 1975 jamais esquecerá a excitação do acontecimento. Um ano depois da acção do Movimento das Forças Armadas, e no cumprimento do seu principal compromisso desde a origem, realizavam-se as eleições para a Assembleia Constituinte, que aliás se contavam desde sempre entre os objectivos fundamentais da oposição antifascista. Era, por um lado, a confirmação popular da revolução; era por outro lado, o início da construção do novo edifício constitucional democrático.
Tinha sido um ano repleto de vicissitudes e de conflitos políticos, como é próprio dos períodos revolucionários, mas sem paralelo na nossa história política: o desmantelamento do aparelho político e repressivo da ditadura, o aparecimentos dos partidos políticos e dos movimentos sociais, a agitação social e política, as sucessivas atribulações políticas provocadas pelo primeiro Presidente da República (o golfe palaciano de Palma Carlos de Julho de 1974, a convocação da manifestação da "maioria silenciosa" de 28 de Setembro do mesmo ano e a aventura militar de 11 de Março), a multiplicação de governos promissórios (quatro em menos de um ano), o fim da guerra colonial e a independência das colónias, a polémica da "unicidade sindical" (preanunciando o duradouro conflito entre o PCP e o PS), a institucionalização do MFA e a criação do Conselho da Revolução, as nacionalizações a seguir ao 11 de Março, a celebração do Pacto MFA-partidos para enquadrar transitoriamente alguns aspectos da futura arquitectura constitucional.
Mas nada disso retirara importância nem expectativa às eleições para a Assembleia Constituinte, pelo contrário. Por um lado, tratava-se de apurar finalmente a verdadeira representatividade das diversas forças políticas, para além da sua capacidade de mobilização social ou sindical; por outro lado, tratava-se de dar expressão à legitimidade democrático-eleitoral, para além da legitimidade revolucionária que o MFA justamente reivindicava. E embora a Assembleia Constituinte a eleger estivesse limitada à função constituinte, continuando a funcionar paralelamente as instituições governativas estabelecidas nas leis constitucionais provisórias, a verdade é que era inevitável que o resultado das eleições e a composição da Constituinte não poderia deixar de condicionar a governação e a evolução política subsequente. Aliás, a tentativa de ignorar isso não constituiu um dos menores factores dos equívocos do "Verão quente" de 1975 e do desenlace de 25 de Novembro do mesmo ano.
Nunca tinha havido umas eleições assim em Portugal. Não era certamente a primeira vez que era eleita uma assembleia constituinte. Era mesmo a quarta vez que isso ocorria desde o início da era constitucional entre nós, depois das que elaboraram a Constituição de 1822, a seguir à revolução liberal de 1820, a Constituição de 1838, depois da revolução setembrista de 1836, e a Constituição de 1911, depois da revolução republicana de 1910. Mas nenhumas eram comparáveis com estas. Pela primeira vez, havia eleições por genuíno sufrágio universal, sem distinções de rendimento ou de riqueza, de instrução ou de sexo. Doutores e analfabetos, ricos e pobres, homens e mulheres puderam pela primeira vez participar numas eleições, sem as limitações que mesmo nos períodos do constitucionalismo liberal e republicano tinham restringido fortemente o sufrágio eleitoral e a representação democrática. Depois, após quatro décadas de regime autoritário e de eleições fictícias e manipuladas, eram estas as primeiras eleições genuinamente livres, pluripartidárias, no quando da liberdade de opinião e de propagandas política e eleitoral. Pela primeira vez na sua história os portugueses, como um todo, tinham a oportunidade de exprimir livremente a sua vontade política. A maciça participação eleitoral testemunhou esse momento singular da história política nacional. E os seus resultados influenciaram decisivamente não somente o conteúdo da Constituição mas também o futuro político da III República cujas instituições ela enformou.
Também nunca tinha existido em Portugal uma assembleia como a que resultou das eleições de 25 de Abril de 1975, no que respeita tanto à sua pluralidade político-partidária (da direita à extrema-esquerda) como à sua representatividade social (desde uma forte representação universitária aos proletários rurais). Só num aspecto a Constituinte reproduzia um dos traços mais atávicos da nossa cultura política, ou seja, no que respeita à escassa representação feminina. Com esse importante senão, nunca uma assembleia política fora tão representativa, no sentido amplo do termo, como a Assembleia Constituinte.
Para essa imagem da Assembleia Constituinte contou decisivamente uma decisão político-legislativa que muitas vezes se subestima (enquanto se sobrestima deliberadamente o Pacto MFA-Partidos, apesar do carácter parcelar e transitório deste), mas que se haveria de revelar determinante na configuração da Constituinte e do próprio regime constitucional que dela saiu. Trata-se da lei eleitoral para as respectivas eleições, elaborada com base no trabalho de uma comissão interpartidária ainda durante o ano de 1974, e que não mereceu a discussão pública que a sua importância mereceria.
De facto, qualquer manual de transição democrática mostra que entre as decisões mais importantes que um novo regime democrático tem de assumir consta à cabeça o regime eleitoral. Para haver uma assembleia constituinte, há que definir previamente o respectivo sistema eleitoral. A Assembleia Constituinte é de certo modo preconstituída pela lei eleitoral que preside à sua eleição. Na verdade, ao adoptar um sistema proporcional baseado em círculos eleitorais distritais e assente no monopólio partidário das candidaturas, a lei eleitoral foi determinante na formação política da Constituinte e da própria Constituição. Em primeiro lugar, tornou-a representativa exclusivamente dos partidos políticos; em segundo lugar, dificultou à partida a obtenção de uma maioria absoluta por um único partido; em terceiro lugar, porém, favoreceu relativamente os partidos mais votados, ao mesmo tempo que excluía a maior parte dos pequenos partidos, nomeadamente das forças políticas mais extremistas.
Não admira por isso que no final nenhum partido tivesse sozinho uma maioria de deputados, tornando obrigatórios compromissos interpartidários para aprovar todas as soluções constitucionais; que a maioria dos partidos políticos que pulularam depois do 25 de Abril, entre eles alguns dos mais activos na agitação revolucionária, tivessem ficado pura e simplesmente excluídos da representação em São Bento ou tivessem obtido uma representação tendencialmente marginal. Não é ousado dizer que, tivesse sido outra a lei eleitoral, e outra poderia ter sido a sua composição e diversa poderia ter sido a própria Constituição. Acresce ainda que, ao serem depois acolhidas na própria Lei Fundamental as principais opções da lei eleitoral para a Assembleia Constituinte (sistema proposicional, distritos eleitorais, monopólio partidário de candidaturas, etc.), esta prefigurou um dos principais fundamentos do novo regime constitucional.
Conto-me entre os que participaram activamente nas eleições de 25 de Abril de 1975 e que, no seguimento delas, partilharam dessa aventura que foi a elaboração, a um tempo exaltante e atribulada, da Constituição de 1976. Revisitando o passado, não é seguramente por não me rever em todas as posições que nessa altura defendi que deixo de sentir um enorme orgulho e até alguma emoção pela honra que tive em ter sido um dos constituintes de 1975-76. São momentos singulares esses em que a nossa história pessoal compartilha momentos conformadores da história política nacional.

(Público, 3ª feira, 26 de Abril de 2005)

29 de abril de 2005

Só peca por tardia 

Por Vital Moreira

A limitação do número de mandatos dos titulares de cargos políticos é uma exigência republicana e democrática. Republicana, porque consubstancia o princípio da renovação no exercício do poder e impede a sua perpetuação. Democrática, porque fomenta a competição e a alternância política e amplia o poder de escolha dos eleitores. Pode discutir-se a amplitude dos cargos abrangidos e o número de mandatos admitidos, mas o princípio em si mesmo só merece aplausos e as opções tomadas pelo Governo na sua proposta, mesmo podendo ser diferentes, fazem todo o sentido.
A ideia da limitação temporal do exercício de cargos políticos provém da Constituição norte-americana, onde a restrição dos dois mandatos presidenciais (8 anos) foi incorporada por uma revisão constitucional posterior à longa presidência de Roosevelt. Tendo-se tornado uma medida comum nos regimes presidencialistas, ela foi acolhida também entre nós na Constituição de 1976, apesar da natureza não presidencialista do nosso sistema de governo. A limitação da duração do cargo de presidente da República a dois mandatos de 5 anos tornou-se um dos elementos pacíficos do nosso sistema constitucional, de tal modo que quando, no final do segundo mandato de Mário Soares (1995), alguém sugeriu uma alteração da Constituição para permitir um terceiro mandato, essa sugestão não obteve o menor apoio, pelo contrário.
Ninguém pode ter sérias dúvidas de que, caso não houvesse a proibição, nenhum dos três presidentes da República (Eanes, Soares e Sampaio) deixaria de ser reeleito no termo do seu segundo mandato. Então por que é que se justifica essa limitação ao direito de cadidatura? As razões são fundamentalmente duas, a saber: por um lado, impedir a permanência indefinida da mesma pessoa no mesmo cargo, obrigando a uma renovação periódica dos seus titulares; por outro lado, fomentar a competição política e a possibilidade de alternância, visto que os ocupantes de cargos políticos têm vantagens à partida na disputa eleitoral, por causa da sua maior visibilidade mediática e do apoio dos interesses que possam ter favorecido no exercício do cargo. Numa democracia republicana, a renovação, o rejuvenescimento, a competição e a alternância política são valores em si mesmos.
Adicionalmente a limitação de mandatos pode contribuir para a renovação e maior abertura dos próprios partidos políticos, dado que frequentemente os detentores do poder autárquico, regional e nacional acumulam a direcção partidária no respectivo nível territorial. No caso português parece indesmentível que os "dinossauros" do poder local e regional -- a nível nacional a longevidade política é bastante menor -- duplicam essa função com o comando das estruturas partidárias, muitas vezes à custa do seu anquilosamento. Quando a tendência para a personalização dos cargos políticos se tende a agravar, em prejuízo dos partidos e das doutrinas e opções políticas, a renovação dos titulares de cargos políticos pode ser um instrumento indispensável para melhorar a atracção da política e para travar o alheamento da vida política e das pugnas eleitorais.
Ao contrário do que alguns erradamente pressupõem, a limitação de mandatos não tem como objectivo principal nem específico a luta contra a corrupção. Mas mesmo nesse plano, parece evidente que a renovação dos titulares de cargos políticos pode dar uma ajuda através da periódica revisão de procedimentos estabelecidos e interesses instalados, bem como no escrutínio dos mandatos transcorridos, tanto mais que a renovação obrigatória pode provocar uma maior alternância política no poder, pondo fim a verdadeiras situações inexpugnáveis, seja ou não em virtude de situações de autoritarismo e de "défice democrático", como ocorre desde há muito tempo na Madeira. Nesse sentido, a renovação obrigatória de mandatos constitui um factor favorável a uma maior "accountability" democrática do poder.
Há quem critique o âmbito dos cargos abrangidos na proposta governamental, que compreendem os presidentes de todos os órgãos políticos executivos, desde os presidentes das juntas de freguesia ao primeiro-ministro. Mas ninguém pode acusar a propostas de incoerência, como seria por exemplo excluir o chefe do governo. De duas uma: ou se optava somente pelos presidentes que são de algum modo directamente eleitos (caso dos presidentes dos órgãos executivos locais), o que seria uma versão minimalista da limitação de mandatos, ou tinha de se abranger todos os chefes de órgãos executivos. Também há os que defendem que se deveria ir muito mais longe, abrangendo todos os membros dos órgãos executivos, desde os membros das juntas de freguesia aos ministros; e não falta mesmo quem entenda que se deveriam incluir os próprios membros das assembleias representativas, desde as assembleias de freguesia aos deputados da AR. Para além de se tratar em geral de propostas não sérias, destinadas somente a contestar por absurdo toda e qualquer mudança, é indiscutível que a lógica da renovação de mandatos não se aplica com a mesma razão e intensidade a essas categorias de agentes políticos, tão diferentes na sua visibilidade, no seu poder e influência e nas suas funções. Mesmo que, numa visão radical, também fosse defensável essa extensão, isso não apaga as diferenças de importância e mesmo de urgência em relação aos presidentes dos órgãos executivos.
Menos relevante é a controvérsia sobre o máximo de mandatos e de tempo admitidos, respectivamente três mandatos e 12 anos. Poder-se-ia ser mais ambicioso, mas a alternativa seria dois mandatos e 8 anos, o que pode ser uma limitação excessiva. Basta lembrar que no caso do Presidente da República o limite é de 10 anos (dois mandatos de 5 anos), não havendo razão forte para estabelecer um limite mais exigente para os demais titulares de cargos políticos que até agora têm estado sem limitação. Quando até agora se permitiam décadas pode ser excessivo reduzir para 8 anos.
Deve considerar-se positiva a mudança que o Governo fez na primeira versão do diploma, que não dava nenhum relevo ao número de mandatos já desempenhados. A contagem do tempo só contava a partir de agora, mesmo no caso de pessoas com mais de 12 anos no mesmo cargo, como sucede com muitos presidentes de câmara municipal e de junta de freguesia e com o presidente do governo regional da Madeira. A solução agora apresentada, permitindo nesses casos a acumulação de mais um mandato suplementar, além do mandato em curso, é perfeitamente razoável e proporcionada, mesmo em termos constitucionais. Não faria sentido permitir que quem já tem por exemplo 20 anos de exercício do mesmo cargo ainda pudesse acumular mais 12 anos, como se nunca lá tivesse estado.
A limitação de mandatos agora proposta -- resultado de uma reivindicação que vem de há muito tempo, vencendo resistências de toda a ordem -- deve considerar-se uma das mais meritórias peças da reforma do sistema político. Para os distraídos, torna-se aliás conveniente lembrar que essa ideia, estabelecida desde a origem em relação ao Presidente da República, tem entretanto feito o seu caminho progressivamente em relação a muitos outros cargos, nomeadamente os reitores das universidades, as entidades reguladoras independentes, os dirigentes dos institutos públicos, etc. Em certo sentidos ela está em vias de se transformar em princípio geral da nossa organização política e administrativa. Tal como a promoção da igualdade de género, fomentando uma crescente participação das mulheres no exercício de cargos políticos, a limitação de mandados é um elemento imprescindível de renovação, rejuvenescimento e maior alternância e participação na vida política e partidária.

(Público, 3ª feira, 19 de Abril de 2005)

28 de abril de 2005

A aldeia de Asterix 

Na pacatez do nosso canto, sempre considerámos as atitudes euro-cépticas de alguns países do norte da Europa como manifestações de identidade e orgulho nacional. Os suecos e os dinamarqueses desconfiam da União porque receiam que os seus avançados sistemas de protecção social sejam postos em causa. Os ingleses porque, na verdade, não se crêem europeus e têm mais confiança na libra esterlina do que em notas decoradas com monumentos imaginários. Alguns, como os suíços, os noruegueses e os islandeses, preferem mesmo ficar de fora. Mas a França, trave-mestra da construção europeia, pátria de Jean Monet e Jacques Delors, o que a move na mais que provável recusa da constituição comum? O que se passa com os gauleses?

Dos países do sul e do leste europeu não se esperam surpresas. O Club Med é um aliado firme de Bruxelas. Durante muitos anos, Portugal, Espanha e Grécia (além da Itália, em menor medida) mantiveram-se à margem do progresso político e económico das velhas democracias do norte e agora, regressados à família europeia, sentem-se bem. Vêem mais oportunidades do que ameaças no espaço comum, porque têm menos a defender e mais a esperar dos fundos de coesão, pelo menos por enquanto. O receio da concorrência dos novos irmãos do leste, esse já foi largamente descontado pelos agentes económicos meridionais. Já todos perceberam que, afinal, não são os rivais da Baratónia que vão impedir a caminhada galopante do investimento estrangeiro para o Império do Meio.

Pela mesma ordem de razões, os países do ex-bloco soviético não deixarão de exprimir a sua adesão ao projecto europeu, ratificando tranquilamente o texto constitucional. Os motivos de preocupação vêm das três grandes potências europeias - a Alemanha, o Reino Unido e a França. Os alemães parecem ter resolvido o problema furtando-se ao referendo popular (tal como os suecos), mas os britânicos e os franceses não abdicam da consulta popular. Como não se imagina os súbditos de Sua Majestade a sufragarem o sim, ocorra o referendo quando ocorrer, nem se vislumbra uma mudança repentina da opinião dos franceses, o futuro da constituição europeia fica seriamente ameaçado.

Ora, se a fatalidade do não britânico ainda poderia ser acomodada durante algum tempo sem fazer perigar o trilho da integração europeia, já a recusa gaulesa representa um sério revés para a União. Por paradoxal que pareça, são os gauleses mais pobres e mais idosos os que maioritariamente se opõem à Europa. O velho anseio de um continente próspero e pacífico parece ter sido vencido pelo receio de uma uniformização dos costumes, das práticas sociais e dos mecanismos crescentemente liberais da economia.

Alguns sectores da intelectualidade francesa hostis à constituição europeia brandem outro tipo de argumentos. Descontados o habitual folclore trotsquista e o oportunismo político de Laurent Fabius, muitos são os que se opõem ao texto por razões artístico-filosóficas. Num recente editorial, o director do Courier International, Philippe Thureau-Dangin, lamentava-se da pobreza literária da prosa constitucional e da sua manifesta falta de panache. De facto, o termo de comparação é arrasador: "O Povo francês proclama solenemente a sua adesão aos direitos do homem e aos princípios da soberania nacional definidos pela declaração de 1789 (...)", assim reza o vigoroso preâmbulo da lei fundamental dos franceses. Alguém imagina que um texto iniciado por "Sua Majestade, o Rei dos Belgas", repleto de considerandos inúteis e de atropelos à língua de Molière possa vir a merecer a simpatia popular? O argumento de Thureau-Dangin é interessante, tanto mais que provém de um defensor do sim, mas denota a irresistível queda gaulesa pela primazia da forma.

Suspeito, porém, que os motivos da rejeição popular são mais do foro digestivo do que do literário. O francês comum orgulha-se de só engolir o que quer e não o que lhe impingem. Recusa-se obstinadamente a ceder a modos, línguas e culturas estrangeiras. Não troca um kir por um shot, uma andouille por um hot dog, ou um Lelouch por um Spielberg. Duvida da supremacia americana, faz chacota com os costumes dos ingleses, despreza os hábitos rudes dos alemães e outros bárbaros, ridiculariza os belgas e demais francófonos, inveja os italianos e ignora o resto do mundo. Não será desta que a irredutível aldeia gaulesa abre brechas, por Toutatis!

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 28 de Abril de 2005

Constituição europeia e religião 

Por Vital Moreira

Entre os argumentos produzidos em França contra o tratado constitucional europeu está o de alguns círculos laicistas, que denunciam nele uma ameaça para o princípio laico da Constituição francesa. Como essa questão tem, ou vai ter, alguma repercussão em Portugal, embora provavelmente com menos visibilidade, importa analisar a questão.
Como se sabe, um dos grandes pontos contenciosos da "convenção europeia" que elaborou o projecto de Constituição e da conferência intergovernamental que a aprovou, teve a ver com uma proposta de inserir no preâmbulo da Constituição uma referência à "herança cristã" da União europeia. Essa proposta foi fortemente patrocinada pelos governos de direita de alguns países de tradição católica (nomeadamente a Polónia, a Itália, a Espanha, Portugal, entre outros), incluindo uma insistente pressão do Vaticano e do próprio Papa. À frente dos opositores intransigentes dessa referência esteve desde sempre a França, a quem se deve o seu afastamento. Essa ausência constitui um dos argumentos invocados pelos círculos nacionalistas tradicionais contra a Constituição. Ironia maior é, porém, o facto de ser justamente em França que o argumento religioso é mais utilizado contra o tratado constitucional, mas por forças e razões assaz diversas, ou seja, pelas correntes laicistas, a pretexto de que há nele demasiada religião.
De facto, a religião aparece algumas vezes no tratado constitucional, mas com sentido e alcance diversos. A primeira referência surge logo no Preâmbulo, onde é invocado o «património cultural, religioso e humanista da Europa, de que emanaram os valores universais que são os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana, bem como a liberdade, a democracia, a igualdade e o Estado de Direito». É bom de ver que a invocação dessa "herança religiosa" da Europa (a tradução portuguesa usa "património" em vez de "herança") não privilegia nenhuma religião ou corrente, como sucederia com a pretendida referência à "herança cristã", abarcando tanto as religiões cristãs, nas suas diversas vertentes, como o judaísmo ou o Islão, este com uma presença crescente na Europa. É certo que dar conta da herança religiosa europeia limita-se a constatar o óbvio, mas a sua associação com os direitos humanos, a liberdade, a democracia, a igualdade e o Estado de Direito é mais do que controversa, tanto no caso da tradição católica, durante muitos séculos hostil a todos esses valores, como no caso do Islão ainda hoje (isto para não falar das perseguições e guerras religiosas que a Europa conheceu durante séculos). Trata-se portanto de uma afirmação retórica sem fundamento histórico, que mesmo num preâmbulo, desprovido de força jurídica, bem poderia ter sido evitada. Mas não é seguramente por aí que a laicidade da UE sai vulnerada.
Analisando agora os preceitos da Constituição, um dos mais atacados pelo laicismo radical francês é o art. 52º, relativo ao «estatuto das igrejas e das organizações não confessionais» Esse preceito estabelece dois princípios: (i) a não interferência da UE no estatuto de que gozam no direito interno dos Estados-membros tanto as igrejas e comunidades religiosas como as organizações filosóficas e não confessionais; (ii) o estabelecimento pela União de um «diálogo aberto, transparente e regular com as referidas igrejas e organizações». Na opinião dos críticos, este preceito valida as situações nacionais em que não existe separação entre a igreja e o Estado, reconhece expressamente as igrejas como interlocutores oficiais das instituições europeias e obriga estas a dialogar com elas, abrindo assim a via para a sua interferência nas políticas da UE.
Considero infundada esta crítica. É evidente que a UE tinha de respeitar as diferenças e idiossincrasias nacionais nas relações dos Estados-membros com as igrejas, desde a estrita separação francesa até ao quase confessionalismo oficial da Grécia, da Irlanda, da Polónia ou da Grã-Bretanha. O que o preceito diz é que essa matéria constitui um assunto nacional --, o que só pode ser motivo de aplauso, e não de crítica. A UE como tal mantém-se incompetente e indiferente sob o ponto de vista religioso. Também não me parece objectável o previsto "diálogo aberto, transparente e regular" com todas as igrejas, num quadro de consulta com todas as forças sociais, que é aliás condição da democracia participativa, que a Constituição Europeia visa promover, tal como sucede aliás com a nossa Constituição (que até reconhece expressamente um direito de antena das confissões religiosas na televisão e na rádio pública).
De resto, o reconhecimento e o diálogo não estão previstos somente para as igrejas e comunidades religiosas, mas também, em pé de igualdade, para as "organizações filosóficas e não confessionais" ? onde se podem contar por exemplo as organizações maçónicas, laicistas, etc. ?, ponto este que os adversários da Constituição Europeia convenientemente esquecem. Ora, se é verdade que Durão Barroso não precisa de nenhuma Constituição para ouvir o Vaticano ou as grandes igrejas protestantes, é de duvidar que se disponha a dialogar com as tais ?organizações filosóficas e não confessionais? se a tal não estiver constitucionalmente obrigado. Por isso a oposição laicista a este artigo do tratado constitucional afigura-se-me um verdadeiro "tiro no pé".
Outro ponto muito atacado pelo laicismo francês é o preceito da Carta de Direitos Fundamentais que garante a liberdade de religião, incluindo a «liberdade de manifestar a sua religião, individual ou colectivamente, em público ou em privado, através do culto, do ensino, das práticas e da celebração de ritos». No entender dos opositores do tratado constitucional, esse preceito poderia ameaçar a proibição legal francesa de uso de símbolos e vestuário de identificação religiosa (por exemplo, o lenço-de-cabeça islâmico) nas escolas públicas francesas.
Este argumento também não tem nenhum fundamento. Primeiro, o referido preceito limita-se a reproduzir um artigo da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 1950, que a França há muito subscreveu; segundo, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos já considerou conforme à Convenção a proibição do uso de vestuário com significado religioso em escolas públicas; terceiro, a própria Carta de Direitos Fundamentais da UE declara expressamente que os seus preceitos, quando correspondem aos da Convenção Europeia, têm o mesmo sentido que têm nesta, tal como interpretada pelo Tribunal de Estrasburgo, o que inclui obviamente as suas restrições admissíveis; quarto, a Carta de Direitos Fundamentais da UE só vale para as relações entre os cidadãos europeus e as instituições da União e não para as situações domésticas dos Estados-membros (salvo quando estes implementam direito da União no âmbito de atribuições desta, o que não é o caso); quinto, o Conselho Constitucional francês, ao analisar a conformidade da Constituição Europeia com a Constituição Francesa, ocupou-se directamente desta questão, tendo concluído sem dificuldade que não existe nenhum perigo para o laicismo constitucional francês.
No caso português há um argumento adicional para que este argumento não faça nenhum sentido. É que em Portugal não existe nada de parecido com a recente proibição francesa do lenço-de-cabeça islâmico nas escolas públicas; nem poderia aliás existir, pelo menos nesses termos, visto que muito provavelmente tal proibição haveria de ser considerada incompatível com a CRP, mesmo que não seja considerada contrária à Convenção Europeia de 1950 ou à Carta de Direitos Fundamentais da UE. De facto, não vejo em que é que o princípio laico exige uma tal restrição à liberdade religiosa das pessoas.
Há um célebre dito anarquista espanhol (ou mexicano?) que reza assim: «Hay gobierno? Entonces, soy contra!» Alguns laicistas imitam agora este dito deste modo: «A Constituição fala em igrejas e em religião? Então sou contra». Infelizmente, o fundamentalismo não é monopólio das religiões. Mas nunca é bom conselheiro.

(Público, 3ª feira, 12 de Abril de 2005)

27 de abril de 2005

A teimosa confusão 

Por Vital Moreira

No "Expresso" de sábado passado o ex-primeiro-ministro Santana Lopes defende esta tese: «Um dos grandes equívocos da Constituição ainda lá está: é a dualidade no seio do mesmo poder, o poder executivo, resultante da eleição por sufrágio universal e directo quer do primeiro-ministro quer do Presidente da República.»
Perante um texto destes ficamos a perceber não somente que Santana Lopes insiste em não entender por que foi varrido do poder mas também que persiste em confundir totalmente a natureza do sistema de governo constitucionalmente estabelecido entre nós. No momento em que se inicia um novo ciclo governativo caracterizado por mais uma, rara, maioria parlamentar monopartidária absoluta e pela próxima mudança de presidente da República, importa revisitar o tema.
Comecemos pela segunda parte da tese acima exposta. Não é simplesmente verdade que entre nós o primeiro-ministro seja eleito por sufrágio universal e directo, como o presidente da República. Não é assim constitucionalmente; não é assim politicamente, por mais que as eleições parlamentares se tenham vindo a personalizar crescentemente à volta dos "candidatos a primeiro-ministro". Como é próprio dos sistemas parlamentares, o chefe do governo é nomeado pelo chefe do Estado de acordo com os resultados eleitorais para o parlamento, ou melhor, de acordo com a composição parlamentar. Mas não tem que ser o líder do partido mais votado, se este não quiser ou não tiver condições para formar governo.
Aliás, se o primeiro-ministro fosse eleito directamente, como é que Santana Lopes tinha sido primeiro-ministro, ele que nem sequer se tinha submetido a eleições parlamentares? E como é que ele poderia ter defendido, como defendeu nas últimas eleições, que, no caso de o PS ganhar sem maioria absoluta e sem ter mais deputados do que a soma da coligação PSD-CDS, o Presidente da República deveria convidar o líder do PSD a formar governo, e não o líder do partido vencedor? Estranhamente, Santana Lopes vem afinal alinhar contraditoriamente com os que, principalmente à esquerda, defenderam no Verão passado que ele não deveria ser nomeado para chefe do Governo por não ter sido eleito para o cargo. O Presidente da República não se deixou impressionar com esse argumento; e mesmo que tivesse optado por convocar eleições nessa altura, não teria sido seguramente com base nele. Triunfou então a lógica genuinamente parlamentar do sistema de governo.
Não é menos abstrusa a primeira parte da tese do ex-primeiro-ministro, segunda a qual existe uma "dualidade no poder executivo", personificado cumulativamente pelo Presidente da República e pelo primeiro-ministro. Isto não passa de uma versão primária da tese semipresidencialista gaulesa, como se Portugal não passasse de uma reedição da V República Francesa. Nada mais longe da realidade, porém. Mesmo os que, entre nós, persistem em usar equivocamente a designação de "semipresidencialismo" têm o cuidado de apontar imediatamente as consideráveis diferenças do nosso sistema de governo em relação ao francês, que passam justamente pela missão e poderes do Presidente da República e pela sua relação com o Governo.
A diferença essencial reside em que em França o Presidente da República compartilha efectivamente do poder executivo com o Governo, havendo portanto uma bicefalia do executivo, que pode revestir versões divergentes, conforme haja ou não coincidência entre a maioria presidencial e a maioria parlamentar-governamental. O Presidente da República assume-se como líder da maioria política, estabelece as linhas de orientação do executivo, preside ao conselho de ministros, superintende ele mesmo nos assuntos de defesa e das relações externas. Não é por acaso que é ele quem participa nas reuniões do Conselho Europeu. Em caso de "coabitação" de maiorias divergentes, o Presidente vê comprometidas as suas funções de direcção política e reduzidas as demais, mas a lógica do sistema não se altera.
No caso português tudo é diferente. O Presidente da República não integra o poder executivo, que pertence exclusivamente ao Governo; não preside ao conselho de ministros; não lhe compete definir as grandes orientações do Governo; não tem competências privativas na área da defesa e das relações externas (ainda que os seus poderes institucionais sejam mais intensos nessas áreas). A noção de "maioria presidencial" é estranha à nossa conceptologia política, e não por acaso. O Presidente da República não é simultaneamente chefe do Estado e chefe de uma maioria partidária. Não existe portanto dualidade no poder executivo, nem o conceito francês de "coabitação" pode ser transposto para a nossa realidade político-constitucional, justamente por isso.
Um dos campos em que a diferença é notória tem a ver com a dissolução parlamentar. Em França a dissolução é um poder instrumental do PR para conseguir uma maioria parlamentar-governamental que lhe seja afecta, ou então para renovar ou reforçar a sua própria maioria parlamentar. Daí a frequência da dissolução imediatamente a seguir às eleições presidenciais, quando a maioria parlamentar existente seja divergente da nova maioria presidencial. A coabitação é considerada uma situação anómala, que deve ser eliminada sempre que possível. Entre nós nada disso sucede. Nenhum Presidente se considera autorizado a dissolver a AR só porque a maioria parlamentar é de outra área político-partidária. A dissolução parlamentar, ainda que constitucionalmente discricionária, só deve ser utilizada para superar crises políticas ou situações de grave degradação política e institucional, como sucedeu justamente na sua última edição.
O ex-primeiro-ministro perfilha a tese de que no seu segundo mandato os presidentes da República tudo fazem para favorecer o seu próprio campo político e para fazer a vida negra aos governos de cor diferente, incluindo a interrupção da legislatura e a convocação de eleições antecipadas. Ele próprio teria sido vítima desta insidiosa vocação por parte de Sampaio. Todavia, isto releva da pura cegueira política. Parece evidente para todos que não teria havido eleições antecipadas se Durão Barroso tivesse permanecido como primeiro-ministro ou se o próprio Santana Lopes não tivesse transformado o governo numa "nave de loucos" descomandada. Ele só foi vítima de si próprio, da sua patente incompetência e irresponsabilidade como primeiro-ministro. Para comprovar retroactivamente a sua tese do "desvio de poder" na dissolução parlamentar, ele vai ao ponto de apontar como exemplo a dissolução de 1985, pelo Presidente Eanes, que abriu caminho ao protagonismo (aliás efémero) do PRD. Mas trata-se de uma inaceitável mistificação. Houve dissolução não para pôr fim ao governo do bloco central, mas sim porque este foi derrubado pelo PSD de Cavaco Silva, aliás com a prestimosa ajuda de Santana Lopes, não deixando outra saída que não a antecipação de eleições. Haja memória, e já agora pudor...
Sempre fui avesso à leitura do nosso sistema de governo em chave semipresidencialista, que considero responsável pelos maiores equívocos. Se o nosso sistema de governo não é um típico sistema parlamentar -- embora o seja essencialmente --, as distorções não resultam de nenhuma mistura do modelo presidencialista, mas sim do papel do Presidente da República enquanto titular de um "quarto poder", a par dos três poderes clássicos, que evoca irresistivelmente o velho "poder moderador" de Benjamin Constant. Aquilo que no nosso sistema de governo não enquadra numa explicação puramente parlamentar tem menos a ver com a Constituição francesa (e ainda menos com a Constituição norte-americana) do que com a nossa Carta Constitucional de 1826 e com a própria Constituição de 1933, que aliás teve por fonte a primeira no que respeita ao desenho da função presidencial.
Ao fim de quase 30 anos de vigência -- uma já invejável estabilidade constitucional -- é tempo de deixar de olhar para Paris para compreender o sistema político da CRP de 1976.

(Publico, 3ª feira, 5 de Abril de 2005)

15 de abril de 2005

Os espanhóis e outros medos 

São os nossos fantasmas preferidos. Não adianta tentarem-nos com modelos chineses, indianos ou eslovacos. É dos espanhóis que a gente gosta. Habituámo-nos a eles desde pequeninos, com os manuais escolares, o hóquei em patins, os caramelos de Badajoz e o Julio Iglesias. Aprendemos a viver pacificamente na mesma casa ibérica. Nunca cultivámos grandes familiaridades, mas também não nos incomodávamos uns aos outros. Eles, verdade se diga, pouco fizeram para nos assombrar em nove séculos de convivência. Uma aparição aqui, outra ali, mas nada de muito organizado. De repente, em pouco mais de dez anos, surgiram em força no nosso canto peninsular. Em esquadrilha, assombram-nos diariamente com sucessivos raids intimidatórios, de consequências imprevisíveis sobre a nossa saúde mental. Alguns já se instalaram mesmo entre nós. Pior, já os assimilámos e os tratamos por tu.

No fundo, essa é uma das nossas grandes virtudes - sabermos receber. Turistas, investidores, imigrantes e fantasmas, todos são bem acolhidos em Portugal. A maioria já sente a Zara, o Corte Inglês ou o Santander como insígnias tão familiares quanto o azeite Gallo ou o leite Vigor. Suspeito que muitos chegam a pensar que Horta Osório é o chairman de todo o banco Santander e que Vaz Guedes caminha a passos largos para se tornar presidente da Sacyr. É o poder anestésico - ou de sedução - dos fantasmas espanhóis a funcionar.

Ora, a táctica castelhana parece estar a dar certo. Visivelmente, as questões da nacionalidade do capital deixaram de interessar o comum dos portugueses (se é que alguma vez interessaram). Só as elites se inquietam. Conscientes do desequilíbrio competitivo entre os dois países, da falta de agressividade das nossas empresas e do acentuado proteccionismo administrativo de Madrid, os meios pensantes portugueses receiam que o embate do mercado livre ibérico só venha a favorecer os interesses dos fantasmas.

Nem de propósito, no mesmo dia em que o primeiro-ministro português se encontrava em visita oficial a Espanha, o ministro da indústria de José Luís Zapatero anunciava o lançamento de um concurso para três novas licenças GSM. Além de pretender alargar a cobertura territorial da rede móvel, o governo espanhol quer "aumentar a concorrência, melhorar a qualidade e reduzir os preços das comunicações celulares" (Jornal de Negócios, 13 de Abril). Tudo boas intenções. Mas, na prática, os constrangimentos a que um novo operador ficaria sujeito acabam por tornar suicidária qualquer tentativa oriunda de fora do actual sistema de três operadores incumbentes. À boa maneira espanhola, respeita-se a forma e trabalha-se o normativo. Veremos se me engano.

Do que podemos todos estar certos é que os fantasmas e os interesses espanhóis não mais nos largarão. A integração das economias ibéricas - a basca, a catalã, a castelhana e a galaico-portuguesa - prosseguirá inexoravelmente, umas vezes de modo amigável, outras de modo hostil. Daqui não resultará fatalmente uma perda de sangue azul no tecido económico lusitano nem uma deterioração dos seus níveis de competitividade, desde que os empresários saibam entender o desafio espanhol como uma oportunidade e não como uma fatalidade. Ousando empreender, lutando pelo que é seu e não cedendo às tentações dos fracos. Com regras iguais e transparentes, não há que recear o teste dos mercados.

Mantenhamos, porém, uma dose elevada de vigilância revolucionária. Os fantasmas espanhóis até são divertidos e voluntaristas, mas têm uma propensão irresistível para a traquinice quando encontram espíritos distraídos e para a soberba diante dos medrosos. E se tratássemos de organizar uma boa esquadrilha de avejões lusitanos?

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 14 de Abril de 2005

7 de abril de 2005

Encruzilhada 

Se alguém imagina que o único remédio para evitar a fuga da indústria para oriente é a emulação das suas práticas sociais predatórias, dedique um pouco de tempo a analisar a mais recente medida laboral da Autoeuropa. A exemplo da casa-mãe, na Saxónia, a empresa criou uma unidade de prestação de serviços de outsourcing e insourcing, cujo quadro de pessoal é inteiramente composto por técnicos transferidos da Autoeuropa. A nova firma adoptou o nome da sua congénere alemã (Autovision) e vai brevemente iniciar a actividade com a produção do novo modelo descapotável da Volkswagen. A sua carteira de serviços, dentro e fora do universo Autoeuropa, passa pela selecção e recrutamento de pessoal temporário, logística e desenvolvimento de novos processos de trabalho. Será que esta virtuosa união de interesses entre o capital e o trabalho vai resistir às tentações mundanas? Por quanto tempo?

Aparentemente, a fórmula Autovision tem tudo (ou quase) para fazer os seus agentes felizes. A Volkswagen, porque reduz os encargos fixos com pessoal, passando a contar com um depósito de mão-de-obra e serviços à la carte. Os trabalhadores, porque não perdem o emprego (até ver). Os sindicatos, porque mantêm a sua influência (até ver). O Estado, porque não incorre em despesas sociais (até ver). Os analistas, porque vêem neste tipo de uniões de facto o moderno equilíbrio entre eficiência industrial, emprego e imprevisibilidade dos factores.

É, assim, sob uma aura de aprovação e aplauso pela inteligência do exercício, que as afirmações do director de recursos humanos da Autoeuropa - relatadas no Jornal de Negócios da passada segunda-feira - dão que pensar. Com alguma ingenuidade à mistura, Jaroslav Holecek considerou a criação da Autovision #uma verdadeira inovação no mercado português, onde não há flexibilidade". Descodifiquemos esta declaração. A interpretação mais linear, a mais maldosa, é que a pobre Volkswagen teve de consumir tempo e recursos para engendrar um mecanismo que contornasse a ausência de uma legislação laboral globalizante. De facto, se houvesse "flexibilidade" para quê toda esta maçada? Provavelmente, no país de origem do senhor Holecek a legislação é muito mais moderna e muito menos arreliadora para as entidades patronais - o trabalho é para comprar, usar e deitar fora como uma vulgar chiclete.

Há uma segunda interpretação, mais bondosa, para as palavras do dirigente da Autoeuropa. Suponhamos que as proferiu com um sorriso, ou mesmo piscando ironicamente o olho para a plateia. O que, na verdade, ele pretendia dizer é que a empresa deseja ser tão inovadora e respeitadora dos direitos sociais em Portugal como na Alemanha. E que essa história da rigidez do mercado de trabalho não passa de um mito - veja-se como, com imaginação e vontade, se fazem convergir interesses contraditórios e se encontram soluções com um mínimo de sustentabilidade.

Suspeito, porém, que a verdadeira mensagem da Autoeuropa está algures no meio destas duas leituras extremas. Enquanto o modelo social europeu se for aguentando, especialmente na Alemanha, ainda a Volkswagen se esforçará por manter as suas melhores unidades produtivas da Europa ocidental, desde que sejam encontradas soluções do tipo Autovision. Mas, se a discrepância entre os factores laborais a oeste e a leste se mantiver ou aumentar, dificilmente a marca alemã se deixará um dia comover com sentimentos de perda ou com novas benesses nas portagens da Brisa.

Ao certo, fica a desagradável sensação de nos encontrarmos numa encruzilhada. Prosseguir no caminho da "flexibilização" laboral significa o sacrifício de direitos adquiridos, perda de poder de compra e de qualidade de vida. Ora, mesmo que a maioria da população portuguesa esteja preparada para tempos difíceis, poucos terão a percepção de quão baixo teríamos de descer para nos igualarmos aos tigres leste-europeus e asiáticos. A esperança nos amanhãs mais competitivos tem limites que a globalização desconhece.

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 7 de Abril de 2005

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