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26 de maio de 2006

A constituição de Coimbra, revisitada 

Por Vital Moreira

A realização do II Congresso da Cidade, em Coimbra, no fim-de-semana passado, veio revalidar e emprestar novo fôlego à experiência de participação política que vem tendo lugar desde há vários anos naquela cidade. Trata-se de uma boa oportunidade para reflectir sobre as virtualidades e limitações dos mecanismos espontâneos de intervenção cívica que, sobretudo a nível local, têm sido utilizados para aprofundar e enriquecer a democracia representativa.
Em 2001, o primeiro Congresso da Cidade veio estabelecer um novo patamar na reflexão colectiva e na intervenção cívica na vida da cidade e do município de Coimbra. A aprovação nesse congresso da Carta Constitucional da cidade introduziu um elemento inovador na concepção e organização das formas de "democracia participativa" a nível local. A criação de um "conselho da cidade", um organismo permanente constituído por membros eleitos no Congresso e por representantes das organizações sociais aderentes, proporcionou não só visibilidade pública à iniciativa mas também os meios para ela se poder concretizar.
O caso de Coimbra sobressai entre as diversas experiências de participação política a nível local que têm aparecido entre nós nos últimos anos, que representam um evidente eco, se bem que em versões muito "light", do movimento em prol da democracia participativa a nível local por esse mundo fora. É fácil ver que, embora sem ter podido corresponder às grandes ambições iniciais (como quase sempre...), a experiência coimbrã representou, ainda assim, uma iniciativa assaz positiva, mostrando que é possível organizar, com carácter continuado, a intervenção de cidadãos e organizações sociais na reflexão e na fiscalização do governo local.
A participação directa das pessoas e das organizações na gestão pública local, tanto na discussão sobre o governo municipal como na apreciação dos principais instrumentos da gestão urbana (PDM, plano de actividades e orçamento, etc.) e das políticas públicas locais em geral, não constitui somente um meio de aperfeiçoamento da democracia municipal, mediante o envolvimento cívico e a fiscalização e responsabilização política dos órgãos oficiais do poder local. É também um meio privilegiado de construção da identidade colectiva e de coesão social e territorial das comunidades locais, através do debate e da deliberação sobre os problemas da cidade, do desenvolvimento local e do governo municipal.
O desenvolvimento de formas específicas de participação cívica no governo local surge como um dos principais meios de resposta às insuficiências tradicionais da democracia representativa e à "crise de representação" por que ela vem passando, traduzida no crescimento da abstenção, da indiferença e da desconfiança política. Oriundo do Brasil, sobretudo através do processo do "orçamento participativo" de Porto Alegre, este movimento de "democratização da democracia" (como já foi certeiramente qualificado) tem-se estendido por outros continentes, incluindo a Europa.
Com efeito, a democracia não se esgota na democracia representativa, que tem a sua essência nos mecanismos eleitorais e na representação política. Para além desse 1.º pilar fundamental, há mais duas dimensões na organização democrática moderna. O 2.º pilar é constituído pelos dispositivos da democracia directa, pelos quais os cidadãos são chamados a pronunciar-se directamente sobre questões políticas ou a intervir na aprovação das leis e das decisões políticas. Os seus instrumentos principais são o referendo, a revogação popular de mandatos electivos (figura não existente entre nós) e a iniciativa legislativa popular. O 3.º pilar é o da democracia participativa, que consiste essencialmente na intervenção de organizações sociais na formulação das políticas públicas, seja mediante a participação directa nos órgãos decisórios (por exemplo, representação dos sindicatos e organizações de empregadores nos órgãos de governo da Segurança Social ou de "concertação social") seja mediante a criação de órgãos específicos de participação consultiva e propositiva, como sucede em vários países, entre os quais Portugal, com os conselhos económicos e sociais junto dos parlamentos.
A Constituição de 1976, na sua versão originária, se era ostensivamente hostil à democracia directa, nomeadamente aos referendos, era porém particularmente amistosa em relação à democracia participativa, sendo mesmo caracterizada por uma verdadeira inflação de formas de participação dos interessados nas instituições públicas, desde a Segurança Social às escolas, desde a legislação do trabalho ao ordenamento territorial. No plano local, a Constituição dava guarida, embora em termos muito limitados, às formas de participação popular geradas no período revolucionário, designadamente as comissões de moradores, a par da criação de conselhos económico-sociais, de representação das organizações de interesses na área económica, social, cultural, etc.
Contudo, à medida que o tempo foi passando, as referidas expressões da participação "externa" no governo local foram definhando, acabando por desaparecer, umas de direito (os conselhos económico-sociais), outras de facto (as comissões de moradores, que continuam inscritas na Constituição, apesar de se terem desvanecido quase por toda a parte). Enquanto isso sucedia, as instituições do governo local iam sendo caracterizadas crescentemente pelos fenómenos da partidarização e do presidencialismo, ambos contribuindo para o estreitamento da vida política local.
O "poder local democrático", que durante muito tempo constituiu um dos motivos de orgulho da novel democracia portuguesa, foi perdendo algum do seu fulgor originário. Não teve nenhuma serventia o reconhecimento do referendo local, logo em 1982, visto que, passado quase um quarto de século, o número de referendos locais realizados é quase nulo. Os órgãos do poder local não morrem de amores pelo referendo e faltam as estruturas locais alternativas que possam dinamizar a reclamação de consultas populares.
De lema democrático, o poder local tornou-se um crescente problema democrático, traduzido no crescimento da abstenção eleitoral, no alheamento cívico em relação ao governo local, no défice de renovação política (o fenómeno dos "dinossáurios" autárquicos), na vulnerabilidade ao populismo e ao clientelismo, no esgotamento do modelo de desenvolvimento local assente nas infra-estruturas e nos equipamentos físicos, no crescimento urbanístico sem rei nem roque. O arrastamento do processo de reforma do sistema de governo local só faz ressaltar o impasse a que se chegou.
Compreende-se por isso o nascimento de um novo movimento favorável à reactivação de mecanismos de democracia participativa, de forma a mobilizar os interesses dos cidadãos pela vida política local, a aumentar o escrutínio público do governo municipal, a promover a participação popular nas políticas públicas, incluindo de sectores populacionais normalmente afastados dos procedimentos da democracia representativa. Como se viu acima, esta "nova geração" de formas de democracia participativa, decididamente apoiadas por organizações internacionais como a OCDE ou o Conselho da Europa, resulta da convergência das experiências pioneiras de participação popular local nascidas em contextos de processos de democratização (como o "orçamento participativo" Brasil) com a "crise da representação" nas democracias representativas tradicionais.
Não existe, é bem sabido, alternativa global à democracia representativa. Mas uma democracia "multimodal" pode ser bem mais fecunda do que uma democracia "monista".

(Público, Terça-feira, 23 de Maio de 2006)

22 de maio de 2006

O "partido dos negócios" 

Por Vital Moreira

A lentidão da saída da depressão económica herdada do antecedente e as más perspectivas sobre o ritmo do crescimento económico nos próximos anos são o principal espectro que ameaça o sucesso do Governo de José Sócrates. Um fraco desempenho da economia pode comprometer todos os meritórios esforços no respeitante à disciplina das finanças públicas, à reforma da Segurança Social e da administração pública, etc. Daí a compreensível preocupação com o lançamento de grandes investimentos públicos (por último, a antecipação da realização do plano rodoviário nacional) e de cativação e estímulo de investimentos privados. Importa cuidar, porém, que a obsessão do crescimento económico não favoreça o triunfo do "partido dos negócios".
A prioridade ao crescimento económico é justíssima. Sem ele não haverá paragem no desemprego, muito menos a sua diminuição, nem aumento do rendimento pessoal e do nível de vida. A própria equação das finanças públicas será muito mais difícil, em consequência da estagnação das receitas fiscais e das contribuições sociais e do maior crescimento das despesas sociais (subsídios de desemprego, sobretudo). A continuação da divergência do desenvolvimento do país em relação à média comunitária é psicologicamente desanimadora, alimentando o sentimento do declínio a que estamos colectivamente propensos.
Infelizmente, há razões para preocupação. O défice de competitividade da economia nacional está para durar, visto que, na impossibilidade de uma diminuição dos custos do trabalho, só o aumento da produtividade pode fazer aumentar a competitividade. O alargamento da UE ao Leste, com economias mais competitivas, e a entrada em força da China e da Índia nos mercados internacionais constituem poderosos factores de agravamento da crise das nossas indústrias tradicionais, levando à perda de mercados externos e ao desvio de investimentos estrangeiros, por deslocalização de empresas instaladas em Portugal. Para complicar ainda mais a situação, a enorme subida dos preços do petróleo e do gás, combinada com a nossa extrema dependência energética, só vem tornar ainda mais problemático o ritmo da retoma e do crescimento económico entre nós.
Não ficam por aí os factores negativos. Primeiro, várias actividades económicas tradicionais (têxteis, vestuário, calçado, etc.) podem estar definitivamente condenadas pela concorrência internacional - com a agravante de serem actividades de utilização intensiva de mão-de-obra -, sendo provável que o principal impacto da reconversão económica ainda esteja para vir, com os custos sociais inerentes, sobretudo em termos de desemprego. Segundo, as nossas carências em matéria educacional, de qualificação profissional e de capacidade tecnológica colocam-nos em má posição para desenvolver rapidamente as actividades económicas alternativas de maior valor acrescentado. Por último, as grandes exigências do reequilíbrio das contas públicas não permitem grande folga em termos de alívio da carga fiscal e de investimento público na qualificação de recursos humanos e em projectos económicos dinamizadores.
Compreende-se por isso a preocupação do Governo em aproveitar todas as oportunidades para anunciar novos projectos de investimento público e privado e em estimular um clima de confiança e uma dinâmica favoráveis ao crescimento. Mas o frenesi pode ser mau conselheiro, levando a precipitações malfazejas ou a cedências desproporcionadas, se não humilhantes, em relação ao mundo dos negócios. Mesmo em tempo de "dura necessidade" há que manter a supremacia do interesse público sobre os interesses privados e a separação entre o poder político e o poder económico.
Há muitas vezes a tentação do tratamento privilegiado na atracção pública de grandes investimentos privados, quer na forma de ajudas de Estado (subsídios, isenções de impostos, isenção de taxas sociais), quer em cedências no campo ambiental e em outras condicionantes. Todavia, há sempre uma ponderação objectiva a fazer entre os custos e os benefícios, prevenindo o risco de sobreavaliar os benefícios e de subestimar os custos, bem como de trocar vantagens imediatas, muitas vezes efémeras, por elevados custos futuros. No caso do frustrado projecto da refinaria de Sines, por exemplo, para além da equação financeira, havia desde logo a dúvida sobre se os custos da emissão de gases com efeito de estufa valiam o investimento; e já antes também se pode duvidar sobre se era necessário transigir numa eucaliptização adicional do país para apoiar o grande investimento de uma empresa de celulose.
A necessária separação entre o Governo e o mundo dos negócios requer também a redução das parcerias empresariais em que o Estado coabita com os grandes grupos privados e o aumento da sua transparência. O controlo que a manutenção de participações accionistas em antigas empresas públicas dá ao Estado é muitas vezes neutralizado ou até pervertido pelo alinhamento público com estratégias dos accionistas privados. Não é preciso andar muito informado sobre a gestão de algumas das grandes empresas nacionais onde o Estado mantém participações accionistas para verificar que o interesse público nem sempre é compatível com os interesses do BES ou do BCP.
Numa moderna economia de mercado a função do Estado, para além da planificação e lançamento das grandes infra-estruturas físicas (portos, aeroportos, rede rodoviária e ferroviária, etc.) e da manutenção de algumas posições económicas estratégicas (como sucede entre nós com a CGD, a AdP, etc.), deve centrar-se essencialmente no seu papel de regulação eficaz, de garantia da concorrência e de responsável por um enquadramento favorável à actividade empresarial - em termos administrativos, fiscais, de legislação laboral, etc. - e por um ambiente político de confiança no investimento. Os incentivos ad hoc devem ser excepcionais.
Hoje em dia, um governo do Partido Socialista não tem de ter inibições doutrinárias quanto a uma política amiga do mercado e das empresas, mas não pode ceder, nem dar a impressão de ceder, ao "partido dos negócios". Tendo recaído sobre si a responsabilidade de reformas imprescindíveis que afectam sobretudo a sua base social de apoio (Segurança Social, administração pública, saúde, etc.), que está a levar a cabo com notável convicção, o mínimo que agora se lhe exige é assegurar que os sacrifícios revertam em benefício geral e não em proveito privativo de uma elite dos negócios, pronta a aproveitar-se das dificuldades de todos os poderes em todas as circunstâncias.

(Publico, Terça-feira, 16 de Maio de 2006)

13 de maio de 2006

CONGO : teste à Europa 

Congo: teste à Europa

A República Democrática do Congo (RDC) coloca desafios tremendos à comunidade internacional. Do tamanho da Europa Ocidental e partilhando fronteiras com nove países, entre eles Angola, Sudão e Ruanda, a RDC foi palco de uma guerra pan-africana entre 1998 e 2002 que envolveu vários vizinhos - a mais sangrenta desde a II Guerra Mundial, com quatro milhões de mortos, sobretudo civis. As Nações Unidas têm na RDC a MONUC, a maior missão de manutenção da paz da história, com 17 000 efectivos. Mas o poder central continua inexistente em províncias inteiras, onde incontáveis milícias continuam a pilhar e a matar.

A ONU pediu à União Europeia que enviasse para a RDC uma força militar para reforçar a MONUC, durante as eleições que terão lugar em Junho ou Julho. O Conselho de Segurança já determinou o mandato.

São eleições essenciais para viabilizar a transição de um país "governado" por senhores da guerra para uma ordem constitucional. Do sucesso desta transição depende a estabilidade de toda a África Central.

O que a ONU e o processo de transição na RDC exigem é uma missão que dissuada quaisquer forças políticas que, saindo derrotadas do processo eleitoral, tenham a tentação de mergulhar a RDC numa nova guerra civil.

E é aqui que começa um novo teste à Europa.

O conceito operacional em discussão entre os parceiros europeus prevê apenas 400 homens no terreno, em Kinshasa, e alguns no Gabão. A maior parte da reserva ficará na Europa. A pergunta que muitos fazem é simples: como é que cerca de 500 homens na região e talvez 800 na Europa podem servir de dissuasão num país da dimensão da RDC? Os soldados no terreno terão uma capacidade de resposta muito limitada e, em caso de ataque, arriscam-se a ser neutralizados. Convém lembrar o triste exemplo de Srebrenica: enviar para a RDC um destacamento anémico, sem capacidade de dissuasão, é muito perigoso. A missão será então de utilidade duvidosa. Resta esperar que não acabe por ser fatal - para os soldados europeus no terreno, para os congoleses que confiam na ajuda da Europa e para o futuro da Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD).

Enquanto a Europa não for capaz de mobilizar vontade política e recursos mínimos para contribuir de forma visível e eficaz para a estabilidade e a paz em África, não há ambições globais europeias que resistam.

Na RDC, pela experiência que os militares portugueses têm de Africa, incluindo da cooperação bilateral com Angola, Portugal pode prestar uma contribuição operacional de qualidade e valor específicos, numa missão cujo comando caberá à Alemanha. Mas, apesar de a imprensa internacional referir uma contribuição portuguesa na ordem dos 100 homens, os números anunciados na Assembleia da República desiludem. Se se confirma que Portugal não consegue mobilizar mais do que um avião C-130 e dois simpáticos cidadãos de uniforme para esta missão, então a tão apregoada lusa 'vocação africana' não passa de um patético mito.

Claro que a crónica falta de meios não explica tudo: convinha que em Lisboa governantes, parlamentares, diplomatas e militares realizassem que os EUA - e, logo, a NATO - não estão interessados na África Subsahariana. "It's your baby!" disseram em Washington sobre a RDC a Aldo Ajello, Representante da UE para a região dos Grandes Lagos.

Desenganem-se, portanto, aqueles que julgam que o fracasso da UE nesta região reverterá em favor da relação transatlântica. A credibilidade da Europa como actor global - dentro ou fora da NATO - depende do sucesso da PESD, em geral, e desta missão na RDC em particular.


(publicado na VISÃO em 4 de Maio,2006)

11 de maio de 2006

Controvérsias eleitorais 

Por Vital Moreira

O anúncio recentemente feito pelo PS do propósito de desencadear proximamente o processo de revisão da lei eleitoral para a Assembleia da República suscitou imediata reacção negativa dos partidos menores do leque parlamentar, que foram até à acusação de "golpe contra a democracia" e "atentado à Constituição". Descontadas as hipérboles, importa ver os termos da questão.
Cumpre constatar, à partida, que os propósitos de reforma eleitoral nada têm de inconstitucional, nem de inédito ou surpreendente. Por um lado, desde 1997 a Constituição faculta soluções como as que agora são propostas. Por outro lado, trata-se somente de ressuscitar o projecto de reforma que foi amplamente estudado e discutido ainda nos tempos do primeiro governo de António Guterres, tendo havido mesmo uma proposta de lei, que não chegou, porém, a ser aprovada, por falta de apoio político suficiente, designadamente do PSD, visto que essa reforma carece de uma maioria qualificada de 2/3 dos votos. Além disso, o sistema eleitoral proposto não passa de uma adaptação do que vigora com êxito na Alemanha desde os anos 50 do século passado e que tem ultimamente sido importado para diversos outros países por esse mundo fora.
A principal inovação estaria na criação de círculos de eleição de um só deputado (círculos uninominais), em número equivalente a pouco menos de metade dos deputados, continuando os demais a ser eleitos em círculos plurinominais, como sucede actualmente. Por conseguinte, o país seria dividido em tantos círculos eleitorais "locais" quantos os deputados a eleger pelo novo método. Na proposta conhecida, subsistiriam os círculos distritais (eventualmente agrupados, no caso dos mais pequenos), embora elegendo menos deputados (menos de metade). E seria criado um círculo nacional, igualmente previsto na Constituição desde há muito, mas não concretizado até agora.
Os eleitores teriam dois votos, um para escolherem o deputado "local" e outro para escolherem a lista partidária do seu distrito/região e do círculo nacional. Mas a transformação dos votos em mandatos seria feita de acordo com o segundo voto. Manter-se-ia assim o actual sistema proporcional. A única consequência directa da pretendida mudança estaria em que, depois de calculado o número de deputados atribuídos a cada partido (de acordo com o sistema proporcional e a partir do 2.º voto dos eleitores), entre eles estariam necessariamente os seus candidatos que tivessem vencido em círculos uninominais, só se indo buscar os candidatos das listas plurinominais (distritais/regionais e nacional), caso esse partido ainda tivesse direito a mais deputados do que aqueles que elegeu a nível dos círculos uninominais.
A principal crítica dos pequenos partidos a esta proposta consiste em acusá-la de favorecer a bipolarização eleitoral entre o PS e o PSD, dado que só eles estão em condições de vencer na quase totalidade dos círculos uninominais, o que fomentaria a lógica da concentração e do voto útil. Essa lógica de voto útil poderia contaminar o segundo voto, resultando implicitamente num prejuízo dos partidos que não têm possibilidades de disputar com êxito os círculos uninominais. Percebe-se o argumento, embora seja difícil dar-lhe razão. Primeiro, já sucede hoje que na maior parte dos círculos eleitorais distritais só os dois principais partidos têm hipótese de eleger deputados, pelo que o voto nos demais partidos é puramente desperdiçado. Ora, apesar disso, continua a haver uma estável votação nesses partidos, por vezes considerável; há mesmo casos de recuperação de deputados perdidos, como sucedeu por exemplo com o PCP em Braga. Em segundo lugar, no sistema proposto, o 2.º voto, mesmo nos pequenos partidos parlamentares, teria sempre valia, dada a criação do círculo nacional; ou seja, diferentemente do que hoje sucede, em que o voto no PCP, no CDS e no Bloco não vale nada em muitos distritos, doravante passaria a ter relevância directa na repartição pelo menos dos deputados atribuídos ao círculo nacional. Portanto, mesmo se admitíssemos que os votantes desses partidos se poderiam sentir tentados a votar útil ou a absterem-se na disputa entre PSD e PS nos círculos uninominais, a verdade é que o seu 2.º voto passaria a ter uma relevância que hoje não tem, em qualquer parte do país. Nesta perspectiva, o novo sistema até poderia favorecer os partidos mais pequenos...
Deve, aliás, dizer-se que se os dois partidos eleitoralmente dominantes quisessem acentuar a bipolarização eleitoral, à custa dos demais partidos, teriam soluções bem mais simples e expeditas do que a via proposta. Bastaria fazer uma de duas coisas, ou ambas ao mesmo tempo: diminuir o número de deputados (o que aliás colheria uma aplauso quase geral na opinião pública!...) ou dividir os círculos eleitorais maiores, nomeadamente Lisboa e Porto. Por qualquer dessas vias, tão eficaz uma como outra, seria automaticamente reduzido o índice de proporcionalidade eleitoral, diminuindo o limiar da maioria absoluta, ao mesmo tempo que seria elevada a "barreira de acesso" implícita no sistema eleitoral, tornando mais difícil a eleição de deputados pelos pequenos partidos.
São conhecidos os argumentos a favor do sistema proposto, amplamente sublinhados pelos seus defensores (entre os quais moderadamente me incluo): personalizar a escolha dos deputados, dando-lhes maior visibilidade individual; diminuir o peso dos líderes distritais na escolha dos candidatos, segundo critérios de fidelidade política e pessoal; permitir aos eleitores exercer maior escrutínio e pedir mais responsabilidade aos deputados individuais do "seu círculo"; eliminar a actual rotatividade dos deputados, mercê de substituições numerosas, emprestando maior estabilidade ao Parlamento; conferir aos deputados eleitos numa base pessoal uma certa dose de autonomia em relação aos partidos por que foram eleitos e aos respectivos governos. Tudo isso pode creditar-se à conta de uma melhoria da qualidade da democracia eleitoral.
Contudo, o sistema proposto não tem somente vantagens. Para além das objecções acima analisadas (e que, no terreno, podem não se revelar totalmente infundadas...), há a assinalar pelo menos os seguintes pontos: facilitarem-se fenómenos de caciquismo e de populismo localista, como os que se verificam a nível do poder local; estabelecer-se uma distinção entre duas categorias de deputados, ou seja, os eleitos numa base individual e os deputados de "partido", com tendencial tentativa de deslegitimação destes, por não se terem submetido a sufrágio directo e pessoal; a quase inevitável consequência de os grupos parlamentares dos partidos maiores serem ocupados por deputados eleitos em círculos uninominais, enquanto os grupos parlamentares dos partidos pequenos seriam preenchidos por deputados saídos da lista do círculo nacional; a tendencial divisão do país eleitoral em duas "cores" partidárias, o rosa e o laranja, de acordo com a vitória nos círculos uninominais.
É bem sabido que não há sistemas eleitorais perfeitos. O mesmo sucede com as suas reformas. Do que se trata de saber é se o novo arranjo proposto tem mais vantagens e menos desvantagens do que o actual. Os argumentos a seu favor são poderosos e em geral convincentes; as contra-indicações podem ser desvalorizadas ou atenuadas. Mas numa matéria politicamente tão sensível como esta não basta ter razão, sendo preciso provar convincentemente que não há excessivas "externalidades negativas" ou inaceitáveis propósitos escondidos.
(Público, 3ª feira, 9 de Maio de 2006)

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