<$BlogRSDUrl$>

31 de agosto de 2007

Frankenstein à nossa mesa? 

por Ana Gomes

Foram ilegais e errados os meios usados por activistas "Verde Eufémia" ao destruírem um campo de milho transgénico, cultivado na Herdade da Lameira, em Silves, há duas semanas. Não é com vandalismo, de cara tapada, contra a propriedade privada de quem age nos termos da lei, que se luta de forma eficaz contra os organismos geneticamente modificados (OGMs). É a legislação que permite o cultivo de OGMs que deve ser combatida, não o agricultor João Menezes. A exploração de questões laterais suscitadas por esta acção (eficácia da actuação da GNR ou eventuais ligações partidárias dos activistas) desviou atenções da questão central: a razão de ser e as consequências do cultivo de OGMs.
Mas porque de todo o mal se deverá sempre procurar extrair alguma coisa de bom, interessa agora que, a propósito deste lamentável incidente, os portugueses se esclareçam sobre o que implicam os OGMs. Na minha perspectiva, para darem ao Governo sinais claros de que nos deve proteger contra eles e não abrir-lhes o caminho. Nesta matéria, concorro com o ponto de vista da Confederação Nacional de Agricultura: sem veleidades de ser especialista, por tudo o que li e investiguei, no Parlamento Europeu tenho votado contra as investidas do "lobby" que visa disseminar os OGMs na UE.
Na União Europeia, a importação e cultivo de OGMs esteve proibida desde 1999 até 2003. Por queixa dos EUA, Argentina e Canadá, a UE foi condenada na OMC, no ano passado, por violação das regras do comércio mundial, embora já desde 2004, estivesse a abrir gradualmente as portas, em resultado da acção junto da Comissão e de alguns Estados-Membros, das poderosas multinacionais do sector, como a Monsanto e a Bayer. Já este ano, foi autorizada a presença de OGMs até 0.9% nos produtos rotulados como "biológicos", ao rever-se o Regulamento da agricultura biológica, que até então determinava "tolerância zero". A Comissão Europeia admite que a UE é hoje um dos maiores importadores de OGMs, apesar de a maioria dos europeus se declarar preocupada.
Portugal reabriu a porta ao cultivo de produtos geneticamente modificados em 2005, após cinco anos de moratória europeia, ao destinar 750 hectares para o cultivo de milho transgénico. A perspectiva de lucros na produção de bio-combustíveis contribuiu para vencer resistências. No mesmo ano, a superfície mundial de culturas geneticamente modificadas aumentou 11%, para 90 milhões de hectares cultivados por 8,5 milhões de agricultores, em 21 países, segundo um relatório do Serviço Internacional para a Aquisição de Aplicações Agro-Biotecnológicas. Entre eles, Espanha e França. Mas não será o argumento de que os nossos vizinhos aderiram aos OGM que leva Portugal a seguir-lhes o exemplo (nessa linha, já se teria legalizado o casamento de homossexuais e teríamos hoje um governo paritário!). No que respeita aos OGM, pelo contrário, o elementar princípio da precaução deveria determinar um controlo mais apertado em Portugal.
Porque sobre os perigos dos OGMs, há estudos científicos para todos os gostos: há quem defenda que são seguros e alegue que contribuem para o combate à fome mundial por serem mais resistentes; outros dizem serem prejudiciais à saúde e ao ambiente, provocando reacções alérgicas, doenças, bactérias resistentes a antibióticos e pesticidas (vendidos pelas mesmas multinacionais que disseminam os OGMs....), além da destruição de espécies de flora e fauna. Em 1989, registou-se nos Estados Unidos a morte de 37 pessoas e 1.500 ficaram afectadas por deficiência permanente, devido ao consumo de um suplemento alimentar produzido com uma bactéria geneticamente modificada. Com animais afectados, os casos são inúmeros, em vários países.
Será, porventura, necessário esperar anos, senão décadas, para se comprovar o efeito real dos OGMs, após uso prolongado, para a saúde e o ambiente. Mas, se continuar a expansão dos OGM a nível mundial, poderemos ser confrontados, demasiado tarde, com resultados científicos alarmantes, com consequências já irreparáveis.... porque os OGMs facilmente contaminam culturas vizinhas, transformando-as irreversivelmente também em OGMs (por isso, máxima ironia, as multinacionais do sector já vendem uma espécie estéril, a que chamam "terminator"- que, evidentemente, só elas fornecem, o que mais coloca os agricultores na sua total dependência...).
Como diz a sabedoria popular, em caso de dúvida, mais vale jogar pelo seguro. O princípio da precaução devia ser, nesta matéria, rigorosamente respeitado pelos governos e pela Comissão da UE. Até porque, tendo em conta os argumentos de todas as partes, o funda da questão respeita à necessidade de cultivar e importar OGMs. Ora, necessidade, necessidade, realmente não há! Os métodos agrícolas tradicionais permitem alimentar todo o planeta, se forem adequadamente apoiados e se for internacionalmente assegurada a distribuição equitativa da produção alimentar, incluindo por regras de comércio justo. Pelos fabulosos lucros das multinacionais, valerá a pena arriscar a saúde pública? Eu, por mim, estou certa de que os portugueses dispensam Frankenstein à mesa!

(publicado no JORNAL DE LEIRIA de 30.8.2007)

30 de agosto de 2007

Para a democratização do ensino superior 

Por Vital Moreira

Concomitantemente com a promulgação do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) pelo Presidente da República ("matando" as expectativas dos que contestavam a lei), o Governo aprovou o diploma de implementação do novo regime legal da avaliação e acreditação do ensino superior, bem como um inovador regime de crédito para os estudantes do ensino superior. Decididamente, o ano de 2007 ficará registado como o ano da reforma do ensino superior nesta longa legislatura. Só falta a revisão do regime da carreira docente, aliás já anunciada.
Apesar de constituir um compromisso político do Governo, a surpresa veio com o novo regime de empréstimos bancários para a frequência do ensino superior. Era uma lacuna importante na promoção do acesso ao ensino superior, para além do apoio social escolar. Com ele, novas pessoas poderão sustentar o investimento na sua educação superior. Trata-se de um regime geral e universal, aberto a todos os interessados, estudantes e investigadores, e para todos os graus do ensino terciário, incluindo os planos de mobilidade internacional (programa Erasmus). A novidade está nos juros controlados - que aliás dependem em parte do nível do aproveitamento académico do beneficiário, estimulando o mérito - e principalmente na dispensa de garantias pessoais, cuja exigência limitava o acesso ao crédito a quem pudesse oferecer garantias pessoais ou patrimoniais julgadas suficientes pelos bancos. Agora esse requisito é assegurado por um fundo de garantia financeiramente alimentado pelo Estado, o que garante o acesso ao crédito a toda a gente, assegurando a igualdade de oportunidades. Desse modo, passa a haver condições para generalizar esse importante instrumento de apoio à frequência do ensino superior por parte de pessoas economicamente carenciadas, bem como de autonomia pessoal dos estudantes.
Nem todos os aspectos são isentos de reserva, como sucede com o prazo de carência reduzido a um ano para o início do reembolso, depois da conclusão do curso, o que pode constituir um factor de constrangimento nos casos em que o início de actividade profissional remunerada demora mais do que isso, como acontece nas profissões sujeitas a estágio profissional longo, muitas vezes sem pagamento digno desse nome. É evidente que nesse caso, não havendo rendimentos do devedor, a dívida não pode começar a ser saldada (nem cobrada a terceiro). Embora essas situações devam ser objecto de consideração, elas não anulam a importante mais-valia do mecanismo agora introduzido.
A criação do regime de crédito para a frequência do ensino superior, seguindo as melhores práticas dos países que adoptaram há muito a mesma solução, vem contribuir para melhorar as taxas de ingresso no ensino superior e de graduação superior entre nós, das mais baixas na Europa. Outras medidas em curso são o aumento da oferta de vagas no sistema público (e o previsível fim do "numerus clausus" na maior parte dos cursos), bem como a melhoria do sistema de acção social escolar. O processo de democratização do ensino superior passa tanto pelo alargamento da sua frequência, como pela eliminação da discriminação social no acesso, por motivo de carência de meios económicos à partida. A montante do sistema de ensino superior, as condições de acesso só podem ser ampliadas com o fim do estrangulamento do ensino secundário, um dos maiores handicaps do nosso sistema de ensino.
O anúncio do novo regime de crédito assistido no ensino superior suscitou a habitual condenação dos partidos da oposição à esquerda do PS, em nome de uma alegada "desresponsabilização do Estado". Ora, este argumento não procede. Mantendo tudo o resto igual, o regime de empréstimos constitui um importante ganho em si mesmo. E, depois, não existe nenhuma desoneração da responsabilidade financeira do Estado. Primeiro, o sistema vai custar dinheiro ao Estado, na dotação financeira do fundo de garantia dos empréstimos, o que constitui um financiamento orçamental adicional do sistema de ensino superior. Segundo, o Governo não anunciou nenhuma diminuição dos gastos na acção social, que inclui as bolsas de estudo; pelo contrário, o novo RJIES aponta claramente para um esforço acrescido. Terceiro, não consta que se prepare nenhuma redução do montante de financiamento orçamental das instituições de ensino superior. Quarto, a medida não surge associada a nenhum aumento dos encargos dos beneficiários do ensino superior, designadamente ao nível das propinas.
É certo que, embora não exista nenhuma relação directa entre as duas coisas, com este novo instrumento afastam-se alguns argumentos contra o aumento do montante das propinas no ensino superior, a qual deve ser encarada a prazo (tal como preconizado pela OCDE), de modo a reforçar o nível de recursos e de auto-suficiência financeira das universidades e politécnicos. Sucede, porém, que o Governo já afirmou reiteradamente que essa hipótese está fora de questão na actual legislatura, pelo que ela não pode entrar nem na crítica de um eventual "agenda escondida" do Governo, nem no cálculo dos recursos financeiros das instituições de ensino superior nos próximos anos. De resto, tal não seria possível sem uma alteração constitucional, que não está obviamente no horizonte.
De certo modo, isso acaba por ser positivo, retirando da agenda um tema polémico que poderia inquinar de raiz a discussão serena das profundas reformas em curso do ensino superior entre nós.

(Público, terça-feira, 28 de Agosto de 2007)

29 de agosto de 2007

Direito de réplica 

Por Vital Moreira

O que me causou verdadeira surpresa no artigo de J. M. Correia Pinto ("Público" de sábado passado [18 de Agosto]) não foi o seu radicalismo sobre o controlo judicial da actividade administrativa e, ainda mais, da actividade governativa – mesmo se a diferença surge acentuada na sua exposição por efeito da caricatura que ele faz das minhas posições (que são conhecidas e estão expostas nas minhas lições universitárias) –, mas sim a sua acusação lateral (não fundamentada, aliás) de que eu estaria ultimamente a defender ideias liberticidas e democraticidas, como a limitação da liberdade dos jornalistas, da autonomia universitária e da democracia participativa.
Graves acusações essas, se correspondessem à realidade. Nada disso é verdadeiro, porém.
Em relação à liberdade dos jornalistas, a acusação só pode referir-se à defesa que tenho feito da vinculação dos jornalistas pelo segredo de justiça (porém, reduzindo este ao mínimo) e de um mecanismo de (auto)disciplina profissional, susceptível de sancionar as mais graves violações dos deveres deontológicos legalmente estabelecidos.
Sucede que defendo ambas as coisas há vários anos (a segunda há mais de uma década!), só podendo portanto aprovar a sua consagração legal. Aliás, na minha interpretação, o segredo de justiça já se impõe aos jornalistas na actual lei (apesar da grande latitude daquele); e os deveres profissionais já estão desde há muito definidos na lei, embora sem sanção efectiva. Seja como for, não há nenhuma liberdade que seja absoluta e não há liberdade sem responsabilidade. Os jornalistas não devem ser excepção, observadas as regras e princípios constitucionais da liberdade de imprensa. Nem a liberdade jornalística se pode impor sempre ao bom-nome e à reputação das pessoas eventualmente envolvidas numa investigação penal, nem as mais graves infracções disciplinares dos jornalistas devem ficar impunes.
De resto, importa sublinhá-lo, em nenhum dos casos existe qualquer interferência governamental ou administrativa nestas questões. Os aspectos penais caberão naturalmente aos tribunais; os aspectos profissionais incumbem aos jornalistas que fazem parte da Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas.
No que respeita à suposta defesa da restrição à autonomia universitária, a acusação que me é feita só pode relacionar-se com a defesa que fiz do regime jurídico do ensino superior recentemente aprovado (concordância em geral, importa sublinhar, pois discordo de algumas soluções, incluindo quanto ao sistema de governo).
Mas esse diploma não implica nenhuma restrição da autonomia universitária; pelo contrário, aumenta-a. Reforça-se a autonomia das instituições, desde logo quando se abre a possibilidade de opção por um regime de fundação de direito privado, muito mais flexível em termos de gestão, mas também quando se aponta para o fim do regime de numerus clausus, quando se garante em termos absolutos a autonomia disciplinar, quando se clarifica a autonomia de gestão patrimonial, financeira e de pessoal.
O que sofre uma grande reformulação é, sim, o modelo de "democracia universitária" até agora vigente, aliás sem paralelo em lado nenhum, especialmente no que respeita ao peso dos estudantes nos órgãos de governo (que é reduzida) e dos funcionários (que praticamente desaparece), sendo em contrapartida reforçado o papel dos professores. Mas também aqui estas mudanças vêem ao encontro de opiniões que defendo há muitos anos, e que de resto são hoje compartilhadas pela generalidade dos especialistas, à esquerda e à direita.
Importa mais uma vez assinalar que esta "racionalização" do autogoverno do ensino superior não implica nenhuma ingerência governamental nas instituições, que continuarão a ser governadas exclusivamente por membros eleitos ou cooptados (no que respeita aos elementos externos do "conselho superior").
Quanto à minha suposta posição contrária à democracia participativa, a acusação tem a ver provavelmente com a preocupação que manifestei, sob o ponto de vista da democracia representativa de base partidária (que sufrago), pelo considerável apoio eleitoral das candidaturas independentes nas recentes eleições municipais de Lisboa.
Há aqui, no entanto, uma manifesta confusão. A democracia participativa nada tem a ver com as candidaturas independentes (ou pseudo-independentes) em competição com as candidaturas partidárias na democracia eleitoral, as quais se mantêm na lógica de democracia representativa. A democracia participativa passa por mecanismos de participação social paralelos e complementares da democracia eleitoral-representativa, de que são exemplo, a nível nacional, entre muitos casos, a participação dos sindicatos no governo da segurança social, a "concertação social" e, a nível local, as organizações de moradores e outras formas de intervenção social de maior intensidade, como o "orçamento participativo".
De resto, se a democracia participativa faz parte da matriz constitucional da CRP de 1976 desde o início, já as candidaturas independentes (que, aliás, não desaprovo) são muito mais tardias, o que mostra que não pertencem ao mesmo conceito. Enquanto a democracia participativa é necessariamente mediada por organizações sociais alheias a protagonismos individuais (sindicatos, associações, etc.), as candidaturas independentes são necessariamente personalizadas, não passando muitas vezes de expressão e veículo da mais trivial demagogia e do mais grosseiro populismo, para não falar do mais rasteiro caciquismo. Será preciso recordar Felgueiras, Gondomar e Oeiras, em vez de Lisboa?
Rejeito portanto, as referidas acusações, inteiramente injustificadas. Quando se fazem críticas desta gravidade, exige-se ao menos que o "corpo de delito" seja consubstanciado.

(Público, terça-feira, 21 de Agosto de 2007)

20 de agosto de 2007

Liberdade de profissão 

Por Vital Moreira

No âmbito do acordo alcançado em sede de "concertação social" na área da formação e qualificação profissional, acabam de ser aprovados, embora com algum atraso, os projectos de diplomas de execução daquele acordo, ainda para sujeição a discussão pública.
A formação e a qualificação profissional constituem hoje uma das áreas privilegiadas de ajuda do Estado à economia, contribuindo para promover a produtividade – e logo a competitividade externa – bem como a empregabilidade e a qualidade do emprego, com reflexos positivos no aumento do nível de vida dos trabalhadores e da coesão social em geral. Compreendem-se por isso os esforços de investimento público nesta área, aliás fortemente alavancados por financiamentos da UE no âmbito do novo QREN (2007-2013). Na agenda política do actual Governo essas matérias ocupam justamente uma elevada prioridade, da qual faz parte, entre outras iniciativas, o programa "Novas Oportunidades", que visa proporcionar formação profissional e escolar ("dupla certificação") aos trabalhadores que não completaram a sua formação escolar básica ou secundária.
Entre as medidas que constam do novo quadro institucional da formação e qualificação profissional conta-se o "Programa de Regulação do Acesso às Profissões", que tem por objecto definir e implementar os requisitos para o acesso e exercício das profissões que requerem qualificações específicas. A ideia suscitou imediata suspeição dos círculos liberais mais radicais (com inesperados ecos em alguma imprensa de referência), que viram nela mais um perigoso mecanismo de controlo governamental sobre a liberdade individual.
Pelo contrário, a iniciativa pode constituir uma excelente oportunidade para proceder à revisão e racionalização do quadro de requisitos profissionais, superando o casuísmo e os interesses corporativos com que certas profissões têm sido objecto de regulação restritiva quanto ao seu acesso. Na verdade, enquanto as profissões "nobres", designadamente as profissões liberais, são reguladas por lei da Assembleia da República, ou decreto-lei autorizado, as profissões assalariadas têm sido furtivamente reguladas por diplomas regulamentares, muitas vezes sem base legal, estabelecendo requisitos perfeitamente irrazoáveis de acesso a muitas profissões. Por isso, justifica-se plenamente uma reavaliação de todo o quadro regulatório existente, de modo a estabelecer um regime coerente e compreensivo de todas as profissões.
Ao contrário do que foi afirmado por alguns comentadores que se não deram ao trabalho de se informar sobre o que está em causa, todas as restrições à liberdade de profissão só podem estabelecidas ou autorizadas por lei da AR e somente quando tal seja necessário e justificado. No quadro previsto pelo anunciado programa governamental, todas as restrições serão informadas por uma comissão tripartida (Governo, sindicatos, associações patronais), dando garantias de consideração dos diversos pontos de vista interessados. Por isso, a possibilidade de qualquer abuso na definição das qualificações necessárias para o acesso profissional é assaz despicienda, mesmo que não houvesse, como sempre há, a possibilidade de controlo do Tribunal Constitucional.
No entanto, há que reconhecer que todas as cautelas são poucas nesta matéria. Existe em Portugal uma tradição corporativa de malthusianismo profissional, que tem produzido restrições excessivas da liberdade profissional. Provavelmente, em nenhum outro país existem tantas profissões que exigem um grau académico de nível superior, como entre nós. Num país onde as taxas de ensino secundário completo são das mais baixas da Europa, a exigência de níveis académicos elevados para o exercício de profissões constitui um factor de exclusão de muita gente.
O que é curioso nesta discussão é verificar a preocupação com a eventual restrição de profissões "secundárias" por parte de comentadores que têm silenciado, se não aplaudido, as restrições a profissões liberais que, em muitos casos, não podem deixar de ser consideradas intoleráveis, como sucede, por exemplo, com a "certificação" de cursos académicos por várias ordens profissionais e com o artificial "numerus clausus" nos cursos de Medicina, como meio de restrição do acesso à profissão médica.
É tempo de levar a sério a liberdade de profissão. Para todos e para todas as profissões.

(Diário Económico, quinta-feira, 16 de Agosto de 2007)

Ocupação selvagem 

Por Vital Moreira

Todos os anos, por esta altura de férias estivais, repito a mesma sensação de incompreensão e de revolta perante a contínua degradação da ria Formosa, no Algarve, em especial do vulnerável cordão de ilhas de areia que separam a laguna do oceano. Um Estado que deixa deteriorar daquela maneira um inestimável património natural como esse não cumpre as suas tarefas mais elementares.
Não se trata somente do natural aumento da procura turística daquele paraíso lagunar, da maior pressão sobre as ilhas, do acréscimo exponencial de barcos de recreio, que acedem a todos os recantos outrora quase desconhecidos. O que está em causa é a continuação da ocupação selvagem das ilhas e das margens dos canais por inúmeras construções ilegais da mais variada ordem. Ano após ano, surgem mais casas e mais acrescentos às construções anteriores. Vista do ar, quase não existe um local emerso que não tenha edificações, incluindo à beira de água ou implantadas na primeira duna.
As aglomerações existentes não cessam de crescer, a coberto da expectativa de complacência que a experiência passada de inércia oficial autoriza. A disponibilização de serviços municipais de recolha de lixo, de energia eléctrica, etc., constitui uma espécie de legitimação da ocupação selvagem do espaço público, aliás "legalizado" em muitos casos por licenças de ocupação do solo.
Ora, não se trata de um espaço público qualquer. Estamos perante áreas de domínio público marítimo, ainda por cima integrado numa reserva natural. Por uma e outra razão deveria ser rigorosamente interdita a edificação privada nessas áreas. O que se tem verificado, porém, não é somente a incapacidade para demolir as edificações clandestinas, inclusive nas zonas mais sensíveis para a sustentabilidade ambiental, mas também a incapacidade para conter a expansão do espaço edificado. Não existe expropriação mais intolerável do que a feita por alguns daquilo que é (e deve continuar a ser) de todos.
De vez em quando surgem estudos e projectos propondo a requalificação dos aglomerados clandestinos, incluindo a "renaturalização" das zonas edificadas em lugares mais vulneráveis. Mas tais programas, mesmo quando aprovados, acabam por não ser executados, devido a uma mistura de inércia e de conivência com a ilegalidade em que somos especialistas.
Um Estado que não consegue impedir, nem sequer conter, a ocupação do domínio público marítimo e de áreas naturais protegidas não merece verdadeiramente o nome de Estado. O que se tem passado é mais próprio do "terceiro-mundo" do que de um Estado-membro da União Europeia. O que acontece desde há décadas só pode ser possível por efeito de uma imperdoável demissão e complacência das autoridades responsáveis, ou seja, da marinha, dos portos e especialmente do ambiente, em particular desde a criação do parque natural.
Outro tanto se deve dizer das organizações ambientalistas e dos órgãos de comunicação, que se preocupam (aliás justamente) com a sobreocupação urbanística da costa algarvia, mas que têm praticamente silenciado a ocupação e a degradação furtiva do último espaço litoral virgem do país. É perfeitamente ridículo investir rios de dinheiro numa imagem de qualidade do Algarve como destino turístico e depois deixar desenvolver livremente essas marcas de subdesenvolvimento que são as caóticas e, em geral, deprimentes aglomerações e edificações clandestinas das ilhas e canais da ria Formosa.
Entretanto, os males da laguna não estão somente na crescente ocupação ilegal do território, mas também na falta ou deficiência dos transportes colectivos para as ilhas e dos equipamentos públicos das mesmas, dificultando a sua fruição por parte de quem não dispõe de embarcação própria ou não possui uma habitação in loco (ou não pode recorrer ao mercado informal de arrendamento). O cúmulo do desleixo e da degradação é atingido no abandono e na ruína de equipamentos e edifícios públicos, como sucede no cais de Faro ou nos belos edifícios da administração portuária na ilha do Farol (Culatra) junto à entrada da barra - um dos quais foi, ironicamente, sede dos serviços de "Fiscalização" -, que ao menos bem poderiam ter sido cedidos para utilização turística ou para fruição colectiva. Pobre do Estado que deixa arruinar ingloriamente o seu próprio património edificado!
Temos por hábito, aliás virtuoso, denunciar o mais leve assomo do autoritarismo do Estado. No entanto, não menos grave do que o autoritarismo (real ou suposto) pode ser o défice de autoridade pública, lá onde ela se mostra indispensável. Tal é o caso da área ambiental, onde aliás os governos (e o actual não constitui excepção, como deveria ser) tendem a revelar uma perigosa tentação para sacrificar os valores ambientais aos interesses económicos em geral, e aos empreendimentos turísticos em especial. Infelizmente, no caso da ria Formosa nem sequer disso de trata, mas antes da rendição do Estado perante o facto consumado da apropriação privada do espaço público, liquidando qualquer valorização turística desse precioso património ambiental.
Pior que o excesso de Estado, em geral corrigível, é o défice de Estado, lá onde a sua ausência pode criar situações de degradação irreversível do património público. Infelizmente, existe uma região do país de onde o Estado desertou. Chama-se ria Formosa. A continuarem as coisas assim, um dia ela deixará provavelmente de fazer jus ao seu próprio nome.

(Público, terça-feira, 14 de Agosto de 2007)

12 de agosto de 2007

O veto 

Por Vital Moreira

Não causou propriamente surpresa o veto presidencial do Estatuto dos Jornalistas. Era uma das hipóteses possíveis (outra era a fiscalização preventiva da constitucionalidade), tendo em conta, por um lado, o objecto do diploma e a sua importância para a liberdade de imprensa e, por outro lado, as controvérsias que suscitou e a oposição que gerou entre os vários grupos interessados, nomeadamente os jornalistas e os grupos de comunicação social, embora por razões não coincidentes. Se existe alguma surpresa, ela está em que as razões do veto - que dizem respeito a três pontos precisos - ficaram bem aquém das objecções radicais movidas contra o diploma.
Também nada há a objectar quanto ao veto presidencial em si mesmo. No nosso sistema constitucional, o poder de veto integra-se na lógica do "poder moderador" do Presidente da República - o que o distingue do poder de veto nos regimes presidencialistas, em que ele constitui uma defesa do espaço de manobra do executivo -, o qual implica uma função de controlo e de supervisão do próprio poder legislativo, de modo a impedir preventivamente a emissão de leis que afectem o funcionamento regular do sistema constitucional-democrático, designadamente quando tenham infringido na sua elaboração as regras de participação ou os direitos das oposição, ou quando ponham em causa valores que o Presidente considere fundamentais. O poder de veto é essencialmente "negativo", não competindo ao Presidente propor soluções alternativas. E só tem natureza suspensiva, obrigando a AR a reconsiderar a lei vetada, alterando-a ou confirmando-a pela maioria exigida para obrigar o Presidente a promulgá-la (maioria absoluta ou maioria de 2/3, conforme os casos).
Apesar de a sua lógica ser clara, o poder de veto é dotado de uma grande margem de discricionariedade presidencial. O seu exercício depende, em boa medida do estilo, mais ou menos intervencionista, de cada Presidente e das relações deste com o governo em funções. Se a regra é a contenção no seu uso, que deve ser excepcional - desde logo por o poder de veto significar sempre uma limitação do poder legislativo investido na Assembleia da República, com a legitimidade democrática que lhe assiste -, não existe porém nenhum critério preciso para aferir da sua legitimidade e oportunidade. Estando naturalmente fora de causa o veto por questões de lana-caprina ou por simples capricho político, o mais que se pode pedir a Belém é bom senso político e consistência no exercício deste poder.
No caso concreto, independentemente do juízo de mérito sobre decisão presidencial, não é lícito questionar nem a razoabilidade nem o bom fundamento do veto. No entanto, analisadas as razões que o fundamentam (com as quais não é difícil estar de acordo em geral...), verifica-se que estão em causa pontos relativamente secundários da lei (embora longe de despiciendos), sem pôr em causa a sua filosofia e as suas principais inovações. A questão que se coloca é a de saber se o Presidente deve "gastar" o seu poder de veto - que pertence ao seu "armamento" pesado de intervenção - para efeitos de "microcontrolo legislativo", quando a sua discordância é de pequena ou média intensidade, sobretudo se isso pode ser lido como uma satisfação dada aos grupos contestatários da lei (que chegaram a organizar uma manifestação junto ao Palácio de Belém), com os riscos de precedente que isso pode criar.
Isso, aliás, terá justificado que o Presidente tenha optado por um veto político, que envolve um juízo político substantivo sobre a lei, e não pela fiscalização preventiva da constitucionalidade, apesar de pelo menos dois dos três pontos sobre os quais incidem as suas objecções (quebra do sigilo profissional e requisitos de acesso à profissão) terem óbvias implicações constitucionais. Também sob este aspecto, o presente caso pode fornecer dados para apreender o modo como o actual Presidente interpreta o poder de veto. Aparentemente, Cavaco Silva não quis deferir para o Tribunal Constitucional questões que entendeu deverem ser lidas essencialmente numa "chave política". Não há nada de ilegítimo nessa opção, mas ela é não é isenta de significado político, ela mesma.
Os partidos da oposição e os grupos profissionais que se opuseram à lei apressaram-se a saudar o veto presidencial como uma importante vitória política. A meu ver, sem motivo o fazem, pois o Presidente ficou longe de lhes dar razão, no essencial. Claramente, Cavaco Silva não concorda com a ideia (aliás, absurda) de que esta lei significa um dos "maiores atentados à liberdade de imprensa em 30 anos" (como se disse num infeliz abaixo-assinado de jornalistas, de teor retintamente corporativo). Não põe em causa a quebra do sigilo das fontes em si mesma (mas somente os termos demasiado imprecisos em que o diploma a admite); não questiona de modo algum a alegada violação dos direitos de autor dos jornalistas (que não consta sequer entre os motivos do veto); não impugna também o novo regime de disciplina profissional, nem a competência disciplinar da Comissão da Carteira Profissional, porventura a grande inovação da lei (discordando somente da medida das sanções previstas).
É de supor que o PS, que votou sozinho a lei, prescinda de confirmar a lei sem alterações e não tenha nenhuma dificuldade especial em ir ao encontro das objecções presidenciais, ou pelo menos das mais relevantes. Desse modo, a lei passará sem alterações de maior e com a sua força política reforçada. E os que radicalizaram a contestação da lei dar-se-ão facilmente conta de que, com o veto presidencial, não ganharam muito em termos das soluções estatuídas, mas que perderam tudo em termos da sua contestação política ulterior.

(Público, 7 de Agosto de 2007)

6 de agosto de 2007

Dois países? 

Por Vital Moreira

Quando se consente que as autoridades regionais da Madeira façam prevalecer a sua explícita recusa em implementar uma lei da República, como é o caso da "lei do aborto", estamos na verdade a consentir a noção de dois países, onde vigoram leis diferentes e onde os cidadãos não gozam dos mesmos direitos, mesmo nos casos em que constitucionalmente se trata de assuntos da competência legislativa da República.
Recordemos os factos. No seguimento do referendo que determinou a despenalização do aborto até às dez semanas por opção da mulher, desde que realizado "em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido", uma lei da Assembleia da República veio alterar o Código Penal e estipular as condições da realização das interrupções de gravidez nos estabelecimentos de saúde, impondo designadamente uma consulta prévia e um período de reflexão de pelo menos três dias, respeitando assim não somente a decisão referendária, mas também os compromissos assumidos sobre a decisão livre, ponderada e responsável das mulheres interessadas. Uma portaria ministerial veio regulamentar a prática do aborto no SNS.
Tal como o referendo, também a lei que o implementou vale para todo o território nacional, incluindo nas regiões autónomas, onde os serviços públicos de saúde se encontram regionalizados, incumbindo-lhes executar a lei, cabendo aos governos regionais adaptar, se for caso disso, a referida portaria governamental. O facto de o SNS estar regionalizado não afasta a vinculatividade da lei, pois a regionalização dos serviços não inclui a definição do âmbito dos cuidados de saúde a prestar. Também estão regionalizados os serviços de segurança social e de educação, entre outros, e não consta que o governo regional pudesse recusar-se a cumprir uma lei que alargasse a cobertura da primeira ou a obrigatoriedade da segunda. Porém, se nos Açores a questão não suscitou nenhumas dificuldades, já na Madeira o governo regional tomou desde o início uma provocatória posição de não aplicação da lei.
A primeira justificação foi a de que a lei não seria implementada enquanto o Tribunal Constitucional não se pronunciasse sobre a sua constitucionalidade. Ora, mesmo que se tratasse de uma questão muito controversa (o que não é o caso, visto que houve uma fiscalização preventiva da constitucionalidade da pergunta do referendo), a verdade é que nenhuma autoridade política ou administrativa pode recusar-se a cumprir uma lei por alegada inconstitucionalidade. Enquanto uma lei não for declarada inconstitucional, ela tem de ser cumprida. O eventual pedido de fiscalização da constitucionalidade de uma lei não suspende a sua obrigatoriedade para ninguém, cidadãos, tribunais e administração.
Desmontado o argumento da inconstitucionalidade, o Governo regional veio invocar de seguida a questão dos custos financeiros do cumprimento da lei. Porém, trata-se de um argumento ainda mais "descalço" do que o argumento da inconstitucionalidade. Mesmo que os encargos não fossem negligenciáveis (como são efectivamente), as regiões autónomas têm obrigação de cumprir as leis da República através dos seus serviços, mesmo que haja eventuais custos adicionais. Trata-se de um ónus da autonomia regional. É para isso que as regiões autónomas dispõem de todos os impostos nelas cobrados (além das generosas transferências do Orçamento do Estado), nem sequer contribuindo para as despesas gerais da República, que só o continente paga. Acontece com a IVG como pode ocorrer com qualquer outra obrigação que venha a ser legalmente estabelecida (por exemplo, uma eventual vacina obrigatória contra o cancro do colo do útero).
De resto, o mesmo sucede com as demais áreas onde os serviços públicos foram regionalizados (quase todos), como por exemplo a educação. Assim, quando o ensino secundário se tornar obrigatório, é evidente que as regiões autónomas terão de arcar com os respectivos custos, sem poderem invocar esse facto como argumento para não cumprirem tal obrigação ou para os custos serem financiados pela República. O que é inadmissível é que o Estado pague a uma região autónoma o cumprimento de leis que elas estão obrigadas a executar.
Nem se invoque o paralelo das autarquias locais, em que as novas atribuições implicam a transferência de recursos financeiros adicionais. Não há nada de comum entre as duas situações. As autarquias locais só têm os recursos financeiros adequados ao nível das suas atribuições. Quando estas são ampliadas, devem os correspondentes recursos financeiros ser reforçados. No caso das regiões autónomas, elas são responsáveis por quase todos os serviços públicos, dispondo de todos os recursos fiscais nelas cobrados. Por isso, sempre que uma lei da República traz novos encargos públicos, eles devem ser satisfeitos respectivamente pelo Orçamento do Estado, no continente, e pelos orçamentos regionais, nas respectivas regiões autónomas.
A reacção dos órgãos de soberania da República ao desafio regional foi assaz distinta. O Governo da República tomou uma posição firme e sem tergiversações sobre a obrigação regional de execução lei. Já o Presidente da República preferiu passar sempre ao lado da questão política em causa. Depois de um despropositado comentário sobre o "recurso aos tribunais" por parte dos interessados, veio apelar a um "diálogo" entre as partes, como se o Governo da República tivesse algo a negociar (porventura, pagando?) com o governo regional fora-da-lei.
Tratando-se de um ostensivo desafio à autoridade da República, eis um tema em que não pode faltar a tomada de posição forte e inequívoca do Presidente da República. Os órgãos de soberania não podem "assobiar para o ar" perante um despautério destes, deixando criar um precedente de impunidade e complacência política de consequências intoleráveis.

(Público, Terça-Feira, 31 de Julho de 2007)

This page is powered by Blogger. Isn't yours?