<$BlogRSDUrl$>

26 de outubro de 2007

Intervenção na plenária do Parlamento Europeu sobre a Cimeira UE-Rússia 

por Ana Gomes

A cimeira podia servir para esclarecer as ambiguidades que continuam a afectar as relações entre a União Europeia e Moscovo. Mas o Ministro Luís Amado já teve o cuidado de baixar a fasquia explicando que não é uma agenda ambiciosa a da Presidência para a Cimeira de Mafra.
Em recente entrevista à LUSA, o seu homólogo Lavrov queixou-se da doença de crescimento da União Europeia aludindo à atitude pouco construtiva de alguns membros. Mas aquilo que envenena as nossas relações é a morte lenta da democracia, dos direitos humanos e da imprensa livre e do Estado de Direito na Rússia e a impunidade com que antigos membros das forças de segurança definem a Agenda da Federação Russa. Isto perturba as opiniões públicas europeia e reflecte-se no nosso relacionamento. A doença de crescimento da União Europeia, a desunião, está a ser tratada e o Tratado Reformador é um potente remédio. Mas para a deriva autocrática da Rússia de Putin não há ainda, lamentavelmente, cura à vista e se o Conselho da União Europeia continuar a fazer vista grossa, ela ainda ficará mais longe.
(Estrasburgo, 24 de Outubro de 2007)

Intervenção na plenária do Parlamento Europeu sobre a situação actual das relações UE-África 

por Ana Gomes

Saúdo Maria Martens por este relatório importante num momento em que a UE redefine as relações com África, em boa parte devido à emergência da China como actor em África. Mas as relações UE-África só podem progredir se houver coerência na abordagem do binómio desenvolvimento/segurança, em especial no que diz respeito a direitos humanos, democracia e boa governação.
Dada a importância da estratégia conjunta do plano de acção, a aprovar na Cimeira UE-África, quero pedir à Presidência portuguesa que oportunamente informe o Parlamento Europeu sobre o avanço da negociação destes documentos e dos seus conteúdos. Isto pode ser útil para garantir que as medidas previstas na estratégia conjunta e no plano de acção possam, depois, ser tornadas realidade, com o apoio do Parlamento Europeu, no controlo dos vários instrumentos financeiros aplicáveis.
No Parlamento Europeu esperamos que a estratégia conjunta e o plano de acção reflictam os compromissos assumidos pela União Europeia, dando a devida prioridade ao combate à pobreza e aos objectivos de desenvolvimento do milénio, em especial o acesso a cuidados básicos de saúde e educação. Queremos que incluam medidas conjuntas para o controlo do tráfico de armas ligeiras e de pequeno calibre, que são as verdadeiras armas de destruição maciça em África e também medidas para o empowerment das mulheres e das sociedades civis. Nelas reside a força para as mudanças, a paz e o desenvolvimento, de que África tanto precisa.
(Estrasburgo, 24 de Outubro de 2007)

Intervenção na plenária do Parlamento Europeu sobre um tratado internacional para a proibição das munições de fragmentação 

por Ana Gomes (em nome do grupo PSE )

Senhor Presidente, falo em nome do Grupo Socialista. Esta resolução reflecte o papel de liderança do Parlamento Europeu no que diz respeito ao desarmamento convencional, aos controlos de transferências de armamento e ao aprofundamento do direito humanitário internacional.
Lutámos pelo alargamento da Convenção de Otava a todos os tipos de minas. Defendemos, bem antes do Conselho Europeu, um tratado global para o comércio de armas. Também a necessidade imperiosa de transformar o código de conduta de exportação de armas da União Europeia num instrumento juridicamente vinculativo tem sido exigência inabalável deste Parlamento.
Esta resolução sobre bombas de fragmentação está virada para o futuro, para aquilo que a Europa deve fazer para eliminar estas armas que não distinguem civis de militares e tantas vidas humanas ceifam. Propomos uma moratória imediata em relação ao uso, à produção, à acumulação e à exportação destas armas. A moratória deve ser transformada, em tempo útil, num instrumento legal que tenha como efeito banir a longo prazo estas munições bárbaras dos arsenais e dos campos de batalha da mesma maneira que as minas anti-pessoal já começam a rarear.
Para além de exigirmos da União Europeia uma ofensiva diplomática a favor deste novo instrumento, queremos que os seus Estados-Membros liderem pelo exemplo e eliminem o uso destas armas pelas suas Forças Armadas, mas também que interrompam permanentemente a sua exportação, produção e acumulação. Todos os dias civis, no Líbano, na Chechénia, no Afeganistão e em dezenas de outros países onde as guerras até já acabaram, pagam o preço supremo pela irresponsabilidade criminosa e imoral de Forças Armadas que perderam a noção dos limites éticos e legais que devem orientar as acções de povos civilizados.
Cabe à Europa liderar uma aliança global que restabeleça, reafirme e reforce esses limites. Precisamos urgentemente de uma posição comum para erradicar as bombas e outras munições de fragmentação.
(Estrasburgo, 24 de Outubro de 2007)

Intervenção na plenária do Parlamento Europeu sobre a produção de ópio para fins médicos no Afeganistão 

por Ana Gomes (em nome do grupo PSE)

Saúdo o relator Marco Cappato não só pela elaboração deste útil relatório, mas também pela disponibilidade em contribuir para que ele se tivesse tornado o mais consensual possível.
As suas intenções originais eram louváveis. Tratava-se de derrotar dois males de uma só assentada: legalizando a plantação de papoilas e a produção de opiácios para fins médicos, acabava-se não só com a produção de heroína no Afeganistão, mas também com a escassez de medicamentos contra a dor a nível global.
Infelizmente, esbarramos em várias considerações práticas, tais como a fragilidade das instituições afegãs e a sua incapacidade de regulação da produção de opiácios, a incerteza quanto à viabilidade económica de um esquema desta natureza ou o perigo de permitir a reintrodução do ópio nalgumas das treze províncias afegãs que deixaram de o produzir.
As emendas do meu grupo procuraram recentrar o relatório naquilo que é fundamental: a luta contra a produção do ópio no Afeganistão, que não afecta apenas o Afeganistão e países vizinhos. As drogas que esse ópio ilegalmente produz constituem o que alguns têm chamado de verdadeiras armas de destruição maciça e sobretudo assentadas à Europa.
O combate contra a produção de ópio deve ser sensível às especificidades de diferentes regiões do Afeganistão. Só uma combinação de medidas pode vir a ter sucesso. Primeiro, é fundamental combater a corrupção que grassa na administração central afegã, nomeadamente no Ministério do Interior e na polícia, e que tem paralisado qualquer política de combate à produção de ópio. Segundo, urge procurar, capturar e julgar os cerca de 30 principais traficantes identificados num relatório de 2006 da ONU e do Banco Mundial, decapitando, assim, esse tráfico assassino. Terceiro, a NATO deve apoiar as operações afegãs de combate ao tráfico, destruir laboratórios e armazéns e impedir os transportes da droga. Quarto, as acções de erradicação de papoila devem ser cuidadosa e selectivamente aplicadas e concentradas nas áreas onde os camponeses têm verdadeiras alternativas.
Isto leva-nos às áreas de consenso com o relator. Todos nos opomos à fumigação indiscriminada de plantações de papoila, como tem sido advogada pelos Estados Unidos da América, que só vai engrossar as fileiras dos talibã sem afectar de forma sustentável a produção de heroína.
Finalmente e no contexto de um pacote de medidas para lidar com o problema da droga afegã, a proposta do relator de um projecto-piloto de produção legal de analgésicos opiácios merece ser estudada. Acima de tudo, este relatório procura estimular o Conselho Europeu a ser criativo e audaz no combate à produção de heroína no Afeganistão. Não há soluções fáceis para este desafio, mas sabemos que o terrorismo e o obscurantismo violento advogados pelos talibãs e pela Al-Qaeda só serão derrotados quando o Afeganistão for libertado das garras da droga.
Termino, Senhor Presidente. Este relatório deve ser visto como um apelo urgente aos Estados-Membros para não pouparem esforços em reconstruir económica e politicamente um país tão martirizado por conflitos sangrentos e tão importante para a segurança regional e global.
(Estrasburgo, 24 de Outubro de 2007)

23 de outubro de 2007

O Tratado de Lisboa 

Por Vital Moreira

Com anos de atraso e grande prejuízo para a UE, o Tratado Reformador veio resolver o impasse institucional que vinha desde os anos 90 e que o Tratado de Nice (2000) não resolveu.
São muitas e, em geral, dignas de aplauso as mudanças trazidas pelo novo tratado. Entre as mais importantes contam-se a unificação institucional da UE e da Comunidade Europeia, pondo fim à dualidade criada em 1992 com o Tratado de Maastricht; a explicitação das atribuições da UE e a clarificação das fronteiras com as atribuições do Estados-membros; a definitiva superação da UE enquanto simples "mercado comum", acentuando a sua vertente de "espaço de liberdade, justiça e segurança"; a atribuição de valor legal à Carta de Direitos Fundamentais da UE, aprovada na cimeira de Nice em 2000, e a adesão à Convenção Europeia dos Direitos Humanos; o reforço do princípio da subsidiariedade e o seu controlo pelos parlamentos nacionais; a racionalização institucional da UE, com o estabelecimento da presidência permanente do Conselho Europeu (e o fim das presidências nacionais semestrais), a diminuição do número de membros da Comissão Europeia e a criação do ministro dos Negócios Estrangeiros e da Defesa; o aumento das questões a decidir por "dupla maioria" qualificada, em vez da unanimidade; mais poder para o Parlamento Europeu e, também, para os parlamentos nacionais; mais responsabilidade da Comissão perante o Parlamento europeu; reforço do vector social da UE ("economia social de mercado", direitos sociais da CDFUE, protocolo sobre os "serviços de interesse geral", etc.); cláusula de solidariedade com os Estados-membros em caso de calamidades, etc.
O Tratado de Lisboa constitui um grande ganho para os cidadãos europeus, para os Estados-membros (incluindo Portugal, obviamente), para a Europa e para o mundo. Depois dele, a UE torna-se uma comunidade política mais eficiente, mais democrática, mais social e mais solidária, mais respeitadora dos direitos dos Estados-membros e dos cidadãos, mais capaz de intervir internacionalmente na cooperação externa, na manutenção da paz e na regulação da globalização.
É evidente que o tratado podia ser melhor em vários aspectos. Mas um tratado de revisão deve ser comparado com o que estava e não com o que não houve condições para estabelecer. A forma menos honesta de condenar o tratado consiste em fazê-lo sob o ponto de vista de uma verdadeira construção federal, cujas condições não existem, nem vão existir num futuro previsível (sobretudo depois da rejeição da "Constituição europeia" em 2005). Têm razão de crítica, naturalmente os soberanistas, em geral, e a esquerda radical, em especial, que não consegue conviver com a economia de mercado que está na base da UE. Não a têm, porém, os partidários de "mais Europa", que podem lamentar que se não tenha ido mais longe, mas não podem negar os progressos feitos em termos de mais democracia e mais legitimidade da nova UE.
É evidente que o novo tratado da UE recupera boa parte das inovações do malogrado "Tratado Constitucional" de 2004. Todavia, entre muitas outras coisas, ficou de fora desde logo a autocaracterização "constitucional", bem como as referências mimetizadoras da "estadualidade" (símbolos, nomenclatura dos diplomas legislativos, explicitação da supremacia do direito comunitário, etc.) que alimentaram a oposição dos meios "soberanistas" contra ela.
Não sendo propriamente uma reedição do Tratado Constitucional quanto ao seu conteúdo, o Tratado Reformador muito menos o é quanto à sua natureza jurídica e política, na medida em que se apresenta como uma simples revisão dos dois tratados vigentes, e não como uma refundição global dos tratados anteriores, como sucedia com o primeiro. Isso altera substancialmente tanto a sua compreensão, como o seu alcance jurídico.
O tratado de 2004 visava refundar politicamente a UE e refundir os tratados num único instrumento "constituinte", que compilava e consolidava num só texto "corrido" todo o "direito primário" da União. Com ele desapareciam os tratados da Comunidade Europeia (Tratado de Roma de 1957, com as alterações posteriores) e da União Europeia (Tratado de Maastricht de 1992, com alterações posteriores). Esta natureza "reconstituinte" tinha duas consequências. Primeiro, embora fosse um texto longo, o Tratado Constitucional era legível e inteligível sem grandes dificuldades; segundo, não havia nenhuma distinção entre o que vinha dos tratados anteriores e as inovações do novo tratado. Os Estados-membros eram chamados a aprovar e a ratificar globalmente todo o acervo "constitucional" da União, mesmo as muitas normas que vinham do tratado fundador de 1957.
Diferentemente, o novo Tratado de Lisboa abandonou qualquer pretensão refundadora e refundidora, sendo essa a principal diferença em relação ao Tratado Constitucional. O novo tratado é uma extensa sucessão de emendas singulares ao texto dos dois tratados existentes, que se mantêm separados (embora o Tratado da Comunidade Europeia mude de nome, para "Tratado do Funcionamento da União Europeia"). Trata-se de suprimir artigos, alterar artigos, acrescentar novos artigos. Por mais numerosas que sejam as alterações, muitas delas puramente verbais, sempre se trata apenas de rever os tratados anteriores, e não de os substituir por um novo instrumento unificador.
Esta diferente natureza do Tratado de Lisboa tem duas consequências inevitáveis. Primeiro, torna-se absolutamente inóspito para um não especialista ler e apreender as alterações introduzidas, que só podem ser alcançadas por comparação com o texto anterior; os "leigos" ficam arredados da leitura e da compreensão do tratado. Segundo, o que os Estados são chamados a ratificar são somente as alterações introduzidas e não as normas antigas que não foram modificadas pelo novo tratado e que continuam em vigor com o título jurídico e a força jurídica que tinham originariamente, muitas vezes desde 1957.
Por essa razão, o Tratado Reformador torna-se imune a várias críticas que vulneraram o Tratado Constitucional, por causa da incorporação dos tratados anteriores. Por exemplo, entre os factores que ditaram a rejeição do Tratado Constitucional em França avultaram as regras da concorrência e do "mercado interno" que vinham, respectivamente de 1957 e do Acto Único Europeu de 1987!
(Público, terça-feira, 23 de Outubro de 2007)

22 de outubro de 2007

O radicalismo de Menezes 

Por Vital Moreira

Quem diria que o novo líder do PSD iria não somente reabilitar o "santanismo", como modelo de acção política, mas também proceder à consagração do "jardinismo", como inspirador constitucional do PSD? Menezes quer refundar politicamente o PSD e também refundar constitucionalmente a República. A peregrina ideia de uma "nova Constituição" vem directamente do discurso tradicional do chefe do PSD madeirense, improvável vencedor do triunfo do "menezismo".
Para além de outras ideias mais gerais, o líder do PSD deu-se ao trabalho de mencionar duas grandes novidades da sua "nova Constituição", a saber: (i) conferir valor absoluto ao veto presidencial de leis em certas matérias (relações externas, defesa, justiça), pelo que tais leis deixariam de poder ser confirmadas pela AR, mesmo por maioria qualificada; (ii) extinguir o Tribunal Constitucional e substituí-lo por uma secção do Supremo Tribunal de Justiça. Infelizmente, ambas as ideias são destituídas de senso constitucional e político, revelando pouco sentido de responsabilidade e muita leviandade política.
A ideia do veto presidencial absoluto em certas matérias tem dois enormes defeitos. Por um lado, nem nos sistemas presidencialistas, como nos Estados Unidos, existe veto absoluto; por outro lado, trata-se de uma ideia claramente lesiva não somente da democracia parlamentar que nós somos, mas também da própria ideia da separação de poderes. Numa democracia representativa baseada na separação de poderes, o poder legislativo pertence ao Parlamento. Se se fosse para um veto absoluto, insusceptível de ultrapassagem parlamentar, mesmo por maioria qualificada, estaríamos a estabelecer uma supremacia absoluta ao Presidente da República, que nada justifica, no exercício do poder legislativo.
Acresce que, no caso português, a Constituição já exige uma maioria de 2/3 para superar o veto presidencial em certas matérias politicamente mais delicadas, pelo que nenhuma maioria governamental pode, só por si, aprovar uma lei contra um veto presidencial, pois não dispõe de tal maioria (a não ser que se trate um governo de "bloco central"...). Por isso, o veto presidencial absoluto só se pode compreender como operação demagógica para tentar cativar a opinião de alguns defensores menos prudentes do alargamento dos poderes de Belém. Só que isso seria feito à custa da democraticidade do sistema político e do equilíbrio de poderes do nosso sistema de governo, alterando radicalmente a matriz constitucional de 1976-82.
Embora não inédita, não é menos indefensável a ideia de extinguir o Tribunal Constitucional. Por um lado, seria ir contra a corrente constitucional nas últimas décadas, que levou à generalização dos tribunais constitucionais por esse mundo fora, como garantes dos direitos fundamentos, do equilíbrio de poderes e da regularidade do processo políticos. Por outro lado, os tribunais superiores ordinários não gozam habitualmente da necessária sensibilidade constitucional nem estão em geral preparados para lidar com as questões de "justiça política" que são próprias dos tribunais constitucionais, como as que dizem respeito às eleições, aos partidos políticos, ao financiamento ilícito de partidos políticos e outras que a crescente judicialização da vida política tem gerado.
No caso português acresce que a justiça constitucional nunca poderia ser atribuída a um dos tribunais supremos (no caso, o STJ), pela simples razão de que ela é transversal às várias ordens de tribunais, tendo portanto de pertencer a um órgão judicial autónomo, independente dos tribunais supremos de cada uma das ordens judiciais existentes, ou seja, os tribunais judiciais e os tribunais administrativos (para além do Tribunal de Contas). Seria perfeitamente ilógico confiar ao STJ o julgamento de recursos de constitucionalidade oriundos, por exemplo, do STA.
Independentemente da concordância, ou não, com as orientações jurisprudenciais do Palácio Ratton e com o modo de designação dos seus juízes, a verdade é que o TC conquistou a sua legitimidade por mérito próprio e a sua existência constitui um dado institucional incontornável do nosso sistema político-constitucional.

A ideia de refundação constitucional, através de uma "nova Constituição", não é somente constitucionalmente insustentável, visto que a Constituição só pode ser alterada por via de revisão, e não de uma "novação" constitucional. É também politicamente despropositada. Uma das características habituais do discurso político radical - e o "menezismo" é um radicalismo - consiste em pôr em causa a própria lei fundamental do país, a pretexto da salvação do país, mesmo que o levantamento da questão constitucional seja um fenómeno claramente artificial, como sucede entre nós. De facto, os problemas do país não estão na Constituição, e mesmo na medida em que possam ter uma vertente constitucional para algumas orientações políticas mais liberais no campo económico e social, eles não passam por uma "refundação constitucional", reduzindo-se a questões pontuais de revisão constitucional.
Ressuscitar uma questão constitucional em Portugal é tanto mais surpreendente quanto é certo que a Constituição de 1976, depois da sua revisão em 1982, é o produto do grande "acordo histórico" entre os dois grandes partidos do regime que são o PS e o PSD acerca da constitucionalização da transição e da consolidação democrática em Portugal. A "refundação constitucional" agora proposta pelo PSD, por mais votada ao fracasso que esteja - como seguramente está -, revela assim uma vontade de ruptura não somente com os fundamentos histórico-políticos do regime instaurado há três décadas, mas também com a própria história do partido que a propõe.
(Publico, terça-feira, 16.10.2007)

16 de outubro de 2007

Mercenários à solta 

por Ana Gomes

"Mercenários e auxiliares são inúteis e perigosos, e se algum Estado se apoiar nas armas dos mercenários nunca terá uma base firme e segura, porque eles são desunidos, ambiciosos, indisciplinados, desleais, corajosos entre amigos, cobardes entre inimigos...não têm amor ou outra razão para manter-se em armas, senão um salário insignificante que não é suficiente para que estejam prontos a morrer [pelo Príncipe]."
(Maquiavel, O Príncipe [1513])

Esta passagem aplica-se aos mercenários hoje contratados pela Administração Bush, com uma diferença significativa: são pagos... principescamente. Só a empresa privada de segurança Blackwater, uma das três a trabalhar no Iraque sob contrato do Departamento de Estado, no ano passado recebeu $600 milhões de fundos federais, por serviços de protecção prestados a diplomatas e outros americanos.
Os EUA têm hoje no Iraque 160.000 soldados. Mas são ainda mais numerosos os “civis contratados” por cerca de 20 empresas privadas de segurança, que operam no Iraque ao serviço de diferentes departamentos do Estado americano.
Um relatório do Congresso diz que desde 2005 houve 195 tiroteios envolvendo empregados da Blackwater: em 80% das vezes dispararam primeiro, frequentemente de carros a alta velocidade, deixando para trás mortos e feridos. Em Dezembro de 2006, um guarda-costas do Vice-presidente iraquiano foi morto a tiro por um “segurança” embriagado: a Blackwater pagou $15.000 e o assassino apanhou um avião de volta para os EUA. Nenhum caso teve consequências legais para a empresa.
Na semana passada, o Congresso mostrou finalmente alarme e adoptou medidas para travar esta escandalosa impunidade. Tudo porque no dia 16 de Setembro passado a Blackwater fez mais uma demonstração de eficácia: em plena luz do dia, numa rotunda no centro de Baghdad, matou 17 civis e feriu 24 homens, mulheres e crianças, numa orgia assassina que até envolveu lançamento de granadas. As autoridades iraquianas reagiram com indignação. O FBI está a investigar.
Na semana passada, no Pentágono, perguntei a um alto funcionário se as revelações sobre a Blackwater não comprometiam a imagem de quem é suposto fazer a guerra respeitando as leis da guerra - o Estado e os militares americanos. Diante de uma delegação de parlamentares europeus, ele respondeu que sim: o recurso a "contractors" tinha-se tornado a regra, para suprir a falta de militares no Iraque, no Afeganistão, na Colômbia (contra o narcotráfico); “e desde que há 4 ou 5 anos adoptámos uma abordagem arrogante ['cavalier approach'], tudo ainda mais se descontrolou...". Referia-se, porventura, à obstinação do Secretário da Defesa Rumsfeld, que quis “fazer” a campanha do Iraque pelo “barato” em número de tropas. Mas não de mercenários...
A crescente privatização da guerra é uma regressão – ao Estado deve caber o exclusivo do uso da força legítima, já Maquiavel há 500 anos o sublinhava. E é um desenvolvimento muito perigoso: além de criar uma zona cinzenta mortífera entre civis e militares, coloca milhares de aventureiros armados até aos dentes a agir fora do controlo de qualquer lei civil ou militar. E, realmente, não «racionaliza» encargos financeiros - os contratos com as empresas de mercenários são pagos pelos orçamentos estatais e a sua opacidade não tranquiliza quem paga impostos.
Em 1999 o mundo indignou-se com as milícias organizadas e financiadas pelos militares indonésios para intimidar, destruir e matar em Timor Leste; tudo em nome, claro, da segurança e da protecção dos interesses indonésios. A diferença para os modernos rambos da Blackwater e congéneres no Iraque, Afeganistão e “elsewhere” está sobretudo na sofisticação dos equipamentos e da logística.
Enfim, pode ser que as investigações desencadeadas pelo massacre de Setembro sirvam para pôr mais um prego no caixão do modus operandi da Administração Bush no Iraque: "primeiro disparamos, depois fazemos perguntas".

(publicado em 12.10.07 no Courrier Internacional)

Ainda os capelães 

Por Vital Moreira

Há muito tempo que não existia uma campanha política assim - a da Igreja Católica e seus apoiantes contra a reforma do regime de assistência religiosa nos hospitais -, baseada na desinformação ostensiva, no alarme infundado e na ameaça despropositada. De facto, o mais extraordinário nesta ofensiva foi o recurso a flagrantes falsificações sobre o conteúdo da revisão proposta.
Subitamente, os cidadãos foram alertados para um nefando projecto governamental que, no mínimo, vinha dificultar e, no máximo, vinha extinguir a assistência religiosa. O Correio da Manhã foi ao ponto de relatar que "o cardeal-patriarca de Lisboa criticou ontem o Governo por causa do diploma que prevê o fim dos capelães nos quadros hospitalares, cessando igualmente a assistência espiritual aos doentes internados (...)". Havia pelo menos três acusações repetidas à saciedade: (i) que os capelães pagos pelo Estado iam ser despedidos; (ii) que só teriam assistência religiosa os doentes que o pedissem pessoalmente por escrito; (iii) e que só haveria assistência religiosa no horário das visitas.
Aos interessados seguiram-se os prosélitos. Na sua prática dominical da RTP Marcelo Rebelo de Sousa condenou as supostas intenções de reduzir a assistência religiosa às horas das visitas (mesmo em situações de urgência), ou de a disponibilizar somente a quem pessoalmente solicitasse por escrito (mesmo em situações de impossibilidade pessoal). Aqui, no PÚBLICO, Graça Franco denunciou e verberou a impossibilidade de o doente ser "substituído por familiares, amigos ou funcionários hospitalares".
E aos prosélitos seguiram-se os comentadores de várias extracções, que, sem se questionarem sobre a credibilidade das acusações, se apressaram a verberar uma imaginária ofensiva "laicista" e "jacobina" contra a Igreja Católica e contra os direitos dos doentes internados nos hospitais.
O problema é que se tratava de excesso de imaginação e invenção dos interessados. Afinal, o projecto governamental não contém nenhum dos alegados aspectos. Extingue para o futuro o regime das capelanias, mas mantém as que existem até que vaguem, ao mesmo tempo que o novo regime assegura o pagamento dos serviços de assistência em si mesmos. Também não exige uma solicitação pessoal dos próprios doentes, antes permite explicitamente que o pedido seja feito por familiares ou amigos próximos, para além de que a assistência pode ser prestada por iniciativa dos próprios ministros do culto, sem solicitação específica dos doentes (ou de outrem), sempre que estes tenham indicado, querendo, a sua religião para efeitos de assistência religiosa. E tampouco limita a assistência ao horário das visitas; pelo contrário, estabelece explicitamente que ela pode ocorrer em qualquer altura em que seja solicitada, preferencialmente fora das horas das visitas.
É certo que, incompreensivelmente, o Ministério da Saúde não se deu ao trabalho de responder às falsidades espalhadas, nem sequer disponibilizou publicamente o projecto de diploma. Mas era evidente para qualquer espírito despreconcebido que pelo menos algumas das acusações (como a respeitante ao horário da assistência religiosa ou à impossibilidade de o pedido de assistência ser feito por outrem em caso de impossibilidade do doente) não podiam ser verdadeiras. Era exigível por parte dos acusadores e comentadores uma obrigação de verificação dos dados, antes de veicular ideias falsas e de alinhar com uma campanha pouco séria contra um projecto que desconheciam.
De resto, também não são procedentes duas objecções contra soluções efectivamente constantes do projecto governamental, a saber, a exigência de pedido por escrito e a proibição de os profissionais de saúde interferirem no pedido de assistência religiosa.
A primeira objecção ainda pode fazer algum sentido, na medida em que pode haver outras formas de expressar o pedido, embora menos seguras e inequívocas. Mas não se deve esquecer que o projecto de diploma não exige uma solicitação específica para cada acto de assistência religiosa, bastando que no registo de entrada o doente ou seu acompanhante declare a sua religião para efeitos de assistência religiosa, o que habilita o respectivo ministro do culto a dirigir-se ao doente, sem qualquer pedido adicional. Já a segunda objecção não faz qualquer sentido. No exercício da sua missão, os profissionais de saúde estão vinculados ao mesmo dever de neutralidade religiosa do Estado. Além disso, admitir que eles pudessem interferir nesta matéria, seria dar lugar a toda a espécie de abusos, seja ao proselitismo religioso dos profissionais crentes ou ao proselitismo anti-religioso dos profissionais agnósticos ou ateus.
Um dos aspectos mais censuráveis do projecto governamental é a remuneração dos serviços de assistência religiosa pelo Estado. Se, fora dos hospitais, a assistência religiosa constitui um encargo dos interessados, por que é que, no caso dos internados num estabelecimento público, esse serviço passa a ser suportado pelo Estado? O Estado só deve remunerar ou subsidiar actividades que fazem parte das suas atribuições ou que ele tem obrigação de apoiar ou fomentar. Ora, num Estado laico, a assistência religiosa não é uma tarefa do Estado, nem pode fazer parte da sua missão. Por isso, é manifestamente ilegítimo o gasto de recursos públicos numa actividade a que o Estado deve ser alheio.
Em toda esta polémica, se a Igreja Católica continua fiel à sua tradição "constantiniana", já não se entende a posição de cedência do Estado.
Quanto à Igreja, seria ilusório esperar que prescindisse sem resistência de prerrogativas e de benesses oficiais, que abdicasse do estatuto de capelães oficiais, funcionalizados e remunerados pelo Estado, e que assumisse a assistência religiosa como tarefa exclusivamente sua, e não do Estado. Mas as coisas são como são. Vem longe o dia em que a Igreja Católica renuncie a instrumentalizar o Estado ao seu serviço e a largar o lugar cativo à mesa do Orçamento.
Já se entende menos a constante posição defensiva do Estado. A abertura da assistência religiosa aos crentes de todas as religiões e a extinção dos capelães oficiais vêm com 30 anos de atraso. Trata-se não só de pôr fim a uma situação de privilégio indevido, em flagrante violação do princípio da separação, mas também de corrigir uma iniquidade contra as demais religiões, além da católica. Com a presente iniciativa, o Governo faz o que há muito deveria ter feito, a saber, assegurar o direito à assistência religiosa a todas as religiões, facilitar a todas elas a satisfação das necessidades religiosas dos seus crentes e, "last but not the least", garantir o respeito pela liberdade individual dos não crentes.
Não tem de fazer mais do que isso, nem deve.
(Público, 3ª feira, 9 de Outubro de 2007)

10 de outubro de 2007

As ordens profissionais 

Por Vital Moreira

O projecto de lei-quadro das ordens profissionais, pendente de aprovação no parlamento, é uma iniciativa necessária e oportuna, por três razões. Primeiro, é urgente introduzir alguma racionalidade na criação a esmo de novas ordens profissionais (há mais de uma dúzia de profissões que também querem a sua ordem). Segundo, é conveniente estabelecer um conjunto de regras comuns básicas sobre a organização, o governo e o funcionamento das ordens profissionais. Terceiro, é imprescindível definir de uma vez por todas as atribuições das ordens na regulação do acesso à profissão, pondo termo a abusos que não podem continuar.

No que respeita à criação de novas instituições, o projecto de lei define as características das profissões susceptíveis de serem organizadas em ordens e exige a justificação da sua criação por meio de um estudo independente. É de esperar que estes mecanismos corrijam o casuísmo com que têm sido propostas e criadas várias ordens profissionais.

No que se refere à organização e regime jurídico das ordens profissionais, a lei-quadro introduz diversas inovações dignas de relevo, designadamente a democracia representativa, acabando com a actual ficção das assembleias gerais; a limitação dos mandatos dos dirigentes; um conselho de supervisão independente, com funções de fiscalização e funções disciplinares; um provedor dos utentes, embora facultativo; um procedimento específico de fixação das quotas e a cobrança fiscal destas; exigências de "accountability" e transparência no governo das ordens.

Quanto ao acesso à profissão, o projecto visa acima de tudo garantir a liberdade de profissão, sem prejuízo dos requisitos legalmente estabelecidos e dos procedimentos que a lei atribua às ordens profissionais.

Neste ponto causou algum nervosismo a notícia (infundada), segundo a qual doravante bastaria o curso superior sem mais para o exercício da respectiva profissão, todos tendo direito de inscrição nas ordens profissionais respectivas. Não é bem assim, obviamente. A lei só proíbe os exames à entrada da própria ordem, para controlar o saber dos candidatos, mas não proíbe nem a exigência de estágios profissionais e de conhecimentos deontológicos nem a existência de exames de estágio ou de aferição do saber em matéria deontológica, desde que estes requisitos não sejam desproporcionados (por exemplo, longa duração dos estágios e excessiva exigência nas provas de avaliação).

O que se pretende é que as ordens não possam contestar, sem mais, o grau académico dos candidatos, mas não se impede que avaliem o que elas próprias ensinam (normas deontológicas), bem como o aproveitamento do estágio profissional por elas exigido. Ou seja, as ordens podem ministrar formação adicional específica para o exercício da profissão e no final podem proceder à avaliação do aproveitamento. O que não podem é fazer exames à entrada na ordem sobre os conhecimentos académicos dos candidatos, porque sobre isso eles já estão oficialmente certificados pelo diploma que obtiveram nas universidades.

Algumas ordens profissionais já manifestaram a sua discordância com alguns aspectos da lei-quadro. Mas é evidente que uma lei que visa estabelecer mais democraticidade interna, mais transparência na gestão, menos corporativismo e menos restrição à liberdade de profissão e à concorrência, tem de encontrar objecções por parte dos que consideram as ordens como uma espécie de sindicato profissional público ou grupo de interesses oficial. Estão no seu direito, mas não podem pretender impor a sua vontade ao legislador.

Seguramente que o projecto poderia ser mais ousado e ambicioso. Assim, por exemplo, poderia avançar-se para o reconhecimento de autonomia estatutária às ordens, dentro dos limites da lei-quadro, em vez de continuar a ser o Governo a aprovar os estatutos por meio de decreto-lei.

Do mesmo modo, a figura do provedor do utente deveria ser obrigatória, e não facultativa. Ao contrário do que já vi defender, as ordens raramente têm em linha de consideração os interesses dos utentes mas apenas os dos profissionais que elas representam. A figura do provedor pode ser um decisivo passo em frente para internalizar na gestão das ordens os interesses dos utentes dos serviços profissionais.

Por último, não parece muito razoável aplicar esta lei somente às ordens que venham a ser constituídas, deixando de lado as que já existem, criando assim um "dualismo normativo" para o mesmo tipo de instituições. Melhor solução seria dar às ordens existentes um prazo relativamente longo para adaptarem os seus estatutos à lei (ou proporem ao Governo a sua modificação).
(Diário Económico, 10 de Outubro de 2007)

8 de outubro de 2007

Da democracia partidária 

Por Vital Moreira

Para além do impacto que a "chicotada psicológica" no PSD tem sobre o partido e sobre o funcionamento do sistema político, há duas questões que estas eleições vieram pôr em destaque e que merecem alguma reflexão. Primeira questão: as eleições directas dos líderes partidários acrescentam democracia aos partidos? Segunda: as eleições directas não requerem a sua regulação externa, de modo garantir a sua genuinidade e credibilidade?
Comecemos pela primeira. Faz sentido a eleição directa dos líderes partidários? E constitui a mesma um suplemento de democracia partidária? Estas perguntas podem parecer ociosas ou, quiçá, provocatórias. Afinal, um número crescente de partidos adopta a eleição directa e universal dos líderes pelo conjunto dos militantes, em vez da eleição indirecta, em congresso de delegados. Além disso, se a democracia é acima de tudo democracia eleitoral, então mais eleições significam mais democracia, tratando-se ainda por cima da escolha dos dirigentes máximos dos partidos, cuja legitimidade e força política ficam assim reforçadas, perante o partido e perante o exterior.
Existe, porém, outra visão. As eleições directas constituem uma expressão de um movimento favorável à personificação do poder e à presidencialização do sistema de governo dos partidos. Além disso, elas tendem a valorizar mais a personalidade dos candidatos do que as suas propostas políticas, a favorecer a exploração demagógica dos sentimentos dos militantes, a agravar as clivagens preexistentes, a apoucar os congressos partidários, a aumentar o poder pessoal dos líderes, a marginalizar as oposições e a reduzir a sua "accountability" perante a assembleia representativa e os militantes.
A eleição directa tampouco proporciona a igualdade de oportunidades na concorrência à liderança partidária. Sem apoios à partida no aparelho partidário ou nas estruturas do poder externas (Governo, autarquias, etc.), será muito difícil a um candidato montar um mínimo da infra-estrutura e da rede necessária para uma candidatura, e muito menos para ter alguma possibilidade de êxito. A isto acresce a necessidade de recursos financeiros avultados para viagens, serviços de apoio, agências de comunicação, meios de propaganda, etc.
Depois há uma questão sistémica. Se, entre nós, os partidos políticos operam num sistema de governo de natureza essencialmente parlamentar, em que a escolha do chefe do governo resulta indirectamente das eleições parlamentares, por que é que os partidos políticos hão-de reger-se por um sistema de governo de tipo presidencialista, baseado na eleição directa do líder e na sua proeminência absoluta no sistema de poder partidário? Nem se diga que, a nível do sistema político, também há a eleição directa do Presidente da República; as situações não são equiparáveis, visto que o Presidente não é titular do poder governativo, mas sim de um "poder moderador", de supervisão do funcionamento do sistema político.
Bem se sabe, porém, que, uma vez instituídas as eleições directas, dificilmente se volta atrás. Para o bem e para o mal, elas são consideradas um "acquis" democrático, pelo menos pelos vencedores, sobretudo quando eles têm razões para pensar que não o seriam se não fossem as eleições directas. Mas a força dos factos não deve cancelar a discussão dos princípios acerca do sistema de governo dos partidos.
Vejamos agora a questão de saber se a eleição directa não impõe o estabelecimento de regras obrigatórias sobre a organização e os procedimentos eleitorais, para garantir a igualdade e a genuinidade das eleições.
Dado o papel político dos partidos políticos no sistema de governo, do qual eles são os protagonistas principais, as eleições partidárias deveriam estar sujeitas às mesmas garantias de transparência e de imparcialidade das eleições dos órgãos do poder político, quanto a financiamento dos candidatos, organização dos cadernos eleitorais, operações de escrutínio e apuramento de resultados, etc.. Justifica-se a existência de um comissão eleitoral independente, a garantia do direito de voto de todos os militantes, a fiabilidade dos cadernos eleitorais, os limites ao financiamento dos candidatos e a sua transparência, a fiscalização e contestabilidade do apuramento eleitoral.
Está em jogo a legalidade e legitimidade das eleições de um líder que poderá ser num futuro mais ou menos próximo candidato a primeiro-ministro. Se, por exemplo, é ilícito o financiamento de empresas aos partidos (ou aos lideres partidários), como é que não há-de ser proibido o financiamento de empresas a candidatos a líderes?
Contra isto logo se elevarão os radicais defensores da autonomia e da liberdade de organização dos partidos, que já se manifestaram há alguns anos contra a imposição do voto secreto nas eleições partidárias. Mas o argumento não é procedente. Primeiro, os partidos políticos não são uma organização livre da sociedade civil como as outras (mesmo essas, aliás, estão sujeitas às regras do Código Civil e da lei das associações); segundo, a democracia liberal é feita de um compromisso entre a liberdade e autonomia individual e colectiva, por um lado, e os requisitos mínimos da igualdade, transparência e genuinidade da expressão eleitoral, por outro lado.
Os partidos políticos são organizações privadas, sem dúvida, mas são também organizações constitucionais, devendo obedecer aos princípios constitucionais relativos ao governo democrático. As exigências democráticas constituem um fundamento legítimo para a limitação da liberdade de organização interna dos partidos políticos. Se os partidos não têm de ser amigos da democracia, têm pelo menos de observar os procedimentos democráticos. Se não estiverem obrigados a cumpri-los no seu interior, como se pode esperar que os cumpram fora?
(Público, 3ª feira, 2 de Outubro de 2007)

5 de outubro de 2007

Armas ligeiras, consequências pesadas 

(por Ana Gomes)

A 13 de Setembro este Jornal noticiava uma importante apreensão de armas de guerra em Leiria. Entre muitas outras que escapam a estatísticas e controle policiais: só em armas legais, Portugal conta hoje com mais de 1,4 milhões, um aumento de 90.000 em relação a 2006.
Apesar dos crimes participados à PSP e à GNR terem diminuído 3,5% no primeiro semestre de 2007 relativamente ao ano anterior (dados da Administração Interna), a verdade é que o crime dos dias de hoje, tal como descrito pelas autoridades policiais, implica mais violência e mais uso de armas de fogo.
É, por isso, indispensável que o governo invista no controle da posse de armas e no combate ao tráfico ilegal de armas. A nova Lei das Armas, de Fevereiro de 2006, permitiu retirar cerca de 1.300 armas ilegais de circulação, entre Outubro e Dezembro do ano passado, numa parceria louvável entre o Ministério da Administração Interna e a ONG “Comissão Nacional Justiça e Paz”. A nova lei torna mais exigentes os requisitos da posse legal de armas e penaliza fortemente a posse e uso ilegais. Mas, face à criminalidade violenta e ao número de empresas e profissionais ditos de “segurança” que delas usam e abusam, ainda há muito a fazer...
Em África as armas ligeiras são as verdadeiras “armas de destruição maciça”: matam milhares, todos os dias. Quem, como Portugal, se reclama “amigo de África” tem, por isso, de garantir um controlo rigoroso do comércio de armas que se processa através do seu território em direcção a África. Ora, rigor não tem abundado, nesta matéria.
Os africanos acusam a Europa, os EUA, China, Rússia e outros de fornecer as armas que alimentam vários conflitos naquele continente. “Nenhum país africano produz kalashnikovs, uzis ou rpg-7s”, observam. Apesar do embargo de armas decretado pela ONU, armas russas e chinesas continuam a ser fornecidas às milícias no Darfur, onde a crise humanitária se salda já em mais de 300 mil mortos e 2 milhões de refugiados e deslocados. No leste da RD Congo milícias a que não faltam armas continuam a aterrorizar populações. Acresce que as armas ligeiras são facilmente recicláveis, passando de uma zona pacificada para outra em conflito. Isto significa que não basta apontar o dedo acusador aos maiores produtores: é preciso empenho global, por parte de países exportadores e mediadores deste comércio e também por parte de autoridades que permitem a deslocalização deste cancro para países vizinhos.
Neste sentido, é útil que o Ministro Severiano Teixeira, nas vésperas da reunião informal dos ministros da defesa da UE em Évora, saliente a "importância da Reforma do Sector de Segurança" e das "iniciativas de Desarmamento, Desmobilização e Reinserção" em África, considerando os desafios que África representa para a Política Europeia de Segurança e Defesa. Esperemos que se vejam resultados na Cimeira EU-África, prevista para Dezembro, em Lisboa: "Não há desenvolvimento sem segurança, nem segurança sem desenvolvimento", afirma a Presidência portuguesa. É por isso fundamental que a estratégia conjunta de europeus e africanos que está a ser elaborada inclua medidas efectivas para lutar contra a proliferação e uso de armas ligeiras.
Mas a UE pode agir por si só e desde já: pode controlar melhor as suas indústrias de armamento, apertando os controlos de exportação e tornando o Código de Conduta Europeu nesta área juridicamente vinculativo, como o Parlamento Europeu não se cansa de recomendar. Os Estados Membros que ainda não aplicaram a Posição Comum do Conselho Europeu de 2003 sobre a intermediação de armamento - incluindo Portugal - estão à espera de quê? Na ONU, a UE tem de continuar a liderar a negociação do tão necessário Tratado Internacional sobre o Comércio de Armas.
Sem seriedade e coordenação nesta matéria, quaisquer outros esforços para ajudar África a alcançar paz ou os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, estarão minados. Declarações solenes, ajuda ao desenvolvimento, compromissos de Gleneagles, etc... valem de pouco se, na prática, não houver determinação política para impor coerência entre as políticas da UE. No mundo interdependente em que vivemos, a Europa só tem a perder se continuar, em África e não só, neste jogo de tirar com uma mão aquilo que dá com a outra. O fluxo contínuo de africanos fugindo à pobreza, à doença e à opressão, em tal desespero que até arriscam as vidas na travessia do Mediterrâneo ou do Atlântico, demonstra que as ameaças à segurança humana em África constituem desafios directos e indirectos à própria Europa.

(publicado no JORNAL DE LEIRIA de 27.9.2007)

O Tratado e a Europa no mundo 

(por Ana Gomes)

Recentemente na cimeira UE-Ucrânia repetiu-se a trágico-cómica proliferação de representantes da UE. De um lado, o Presidente e MNE ucranianos; do outro, uma bateria de líderes europeus que, com adjuntos e auxiliares, devem ter feito as delícias da indústria hoteleira de Kiev: a Europa esteve representada pelo Presidente do Conselho Europeu José Sócrates, assistido pelo seu MNE, pelo Presidente da Comissão Barroso, pelo Alto Representante para a PESC, Javier Solana, e pela Comissária para as Relações Externas, Ferrero-Waldner.
Para acabar com esta hidra institucional que se desmultiplica em 'cabeças', todas com responsabilidades e poder, confundindo parceiros brindados com tiradas grandiloquentes sobre o papel da '"Europa" no mundo', há uma resposta: está no Tratado Reformador, cujo texto a Presidência portuguesa se esforça por fixar na Conferência Intergovernamental (CIG).
E que trará o Tratado de relevante para a acção externa da União? Para começar, a UE passa a ter estatuto jurídico próprio. Por incrível que pareça, até hoje a UE não pode assinar tratados e acordos: a "Europa" só existe através da Comissão Europeia (CE) e dos Estados Membros (EMs). Uma das consequências é o facto de a representação diplomática da “Europa” no mundo ficar a cargo da Comissão e de uma miríade de embaixadas dos EMs – frequentemente com agendas conflituais.
Isto significa na prática, por exemplo, que Javier Solana - pomposamente intitulado 'Alto Representante para a Política Externa e de Segurança Comum' - nem sequer tem "olhos" e "ouvidos" próprios. A informação e a capacidade de Solana de interagir com actores externos está dependente da generosidade/incapacidade da CE e dos EMs. O Alto Representante é uma espécie de colosso institucional cego e surdo, cambaleando pelo mundo, apoiado nos ombros relutantes da CE e de alguns EMs. Mais! Solana nem sequer pode marcar a agenda europeia porque não tem direito de iniciativa no Conselho. Espera-se dele que actue como moço de recados dos EMs, cujas prioridades mudam ao sabor das Presidências semestrais. A sua única vantagem é que elas passam ...e ele vai ficando.
Tudo isto deverá mudar no dia em que o Tratado Reformador entrar em vigor. Criar-se-à a figura do Alto Representante da União para a Política Externa e de Segurança, que acumulará as funções actuais de Solana com as de Comissário para as Relações Externas. E passa a presidir ao Conselho de Assuntos Gerais e de Relações Externas (onde reúnem os MNEs dos 27 EMs), podendo avançar com propostas próprias. Fundamental também é que o seu trabalho vai ser apoiado por um Serviço de Acção Externa da UE, composto pelo pessoal das representações da Comissão em todo o mundo e por diplomatas destacados pelos EMs, num total previsto de cerca 7000 pessoas.
Como vêm sublinhando os representantes do Parlamento Europeu na CIG (Elmar Brok (cristão-democrata alemão), Andrew Duff (liberal britânico) e Enrique Barón Crespo (socialista espanhol), importa não ceder mais às exigências de um país, a Grã-Bretanha (a Polónia funciona aqui instrumentalmente), que insiste em diluir as conquistas principais da malograda Constituição: é essencial preservar o estatuto juridicamente vinculativo da Carta dos Direitos Fundamentais e a definição de “cidadania europeia”. Mas é essencial também não permitir que britânicos ou outros ocasionais “soberanistas”, que já conseguiram descrismar o «Ministro dos Negócios Estrangeiros da UE» previsto na Constituição, enfraqueçam mais a construção institucional que é vital para que a Europa passe a ter uma intervenção coerente e decisiva no mundo.
As expectativas dos cidadãos europeus e dos parceiros globais da Europa excedem de longe, por enquanto, as capacidades da UE: todos evocam as "responsabilidades da Europa". Por isso é importante que todos tenham consciência de que o novo Tratado é estratégico para que Europa deixe de ser o gigante económico que é políticamente anão.

(publicado no COURRIER INTERNACIONAL de 28.9.2007)

This page is powered by Blogger. Isn't yours?