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21 de dezembro de 2007

Kosovo: teste decisivo à UE 

por Ana Gomes


A questão do estatuto final do Kosovo representa o maior desafio à eficácia da acção externa da União Europeia (UE) desde as divisões causadas pela invasão do Iraque em 2003. Não deixa de ser irónico que, pela enésima vez, sejam os Balcãs o calcanhar de Aquiles da Europa. Mas a UE pode agora ultrapassá-lo para sempre.
Ao fim de 18 meses de negociações intensas, acompanhadas de perto por uma troika em que a União Europeia agiu em pé de igualdade com a Rússia e com os EUA, não há acordo possível entre sérvios e kosovares: os primeiros insistem em querer exercer soberania sobre o Kosovo; os segundos só aceitam a independência.
Ora a independência é inevitável. Desde a campanha militar assassina que as forças militares de Milosevic levaram a cabo no Kosovo em 1999 que se tornou impossível voltar ao status quo ante. Se acrescentarmos o direito à auto-determinação dos povos, inscrito na Carta das Nações Unidas, e o potencial desestabilizador da presente situação de ambiguidade, só resta uma opção: reconhecer a independência (embora condicional e limitada) ao Kosovo.
Os argumentos contra a independência podem ser desmontados com alguma facilidade. O primeiro e mais comum, é o medo de estabelecer precedentes. A Rússia usa regularmente os seus protectorados da Abkázia, da Ossétia do Sul (ambas parte integrante da Geórgia) e da Transnístria (na Moldávia) para ameaçar uma proliferação de estados independentes. A verdade é que o reconhecimento do Kosovo não estabelece nenhum precedente, já que reflecte uma série de circunstâncias particulares que não são válidas para outras regiões. Essas circunstâncias estão reflectidas na resolução 1244 do Conselho de Segurança de 1999, em que já se fala da importância de "determinar o estatuto futuro do Kosovo" - passagem que deixa entreaberta uma porta jurídica para a independência. Quanto à Rússia, o que é que tememos? Que Moscovo acicate as tensões na Geórgia e na Moldávia? Que trate as três regiões acima referidas como entidades independentes? Que desestabilize a sua vizinhança para cimentar a sua influência? Tudo isto já acontece! E, acima de tudo, a Rússia tem o hábito de tirar partido de interlocutores que demonstrem fraqueza e indecisão...
O segundo argumento é mais sofisticado. Será que reconhecer o Kosovo não vai desestabilizar a Sérvia e pôr em perigo a estabilidade dos Balcãs? A resposta é que tudo vai depender da comunidade internacional e, especialmente, da UE. Se a UE se mantiver firme e unida na defesa do famoso plano Ahttisari - que prevê uma 'soberania controlada' para o Kosovo - e investir os recursos humanos, financeiros, e políticos necessários para demonstrar que o futuro da região - de toda a região! - é dentro da UE, as forças democráticas e pró-europeias da Sérvia podem utilizar a inevitabilidade deste processo, e a luz europeia ao fundo do túnel, como armas contra o nacionalismo bacoco e perigoso dos seus adversários. Caso contrário, caso a União dê sinais ambíguos em relação ao futuro europeu dos Balcãs Ocidentais, aí sim, existe o risco de incentivar aqueles que defendem um caminho alternativo para a Sérvia: a Grande Sérvia, ou seja, o passado.
O teste decisivo para a UE consiste precisamente em demonstrar de forma convincente que é capaz de se manter unida para distribuir os incentivos e a dissuasão necessários: para os kosovares, tanto a substituição da presença da ONU por uma da UE, como o envio imediato de 1800 efectivos numa missão civil da Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD), deve indicar que - mesmo se o Kosovo se tornar independente - a UE (e a NATO) vão continuar a agir como garantes da estabilidade da região e da segurança das minorias; para os sérvios, é preciso manter a condicionalidade do Tibunal Penal de Haia, mas aplicando-a de forma flexível ao processo de pré-adesão europeia em que se encontra a Sérvia.
As conclusões do último Conselho Europeu da Presidência portuguesa da UE já vão na direcção certa e dão como dado adquirido o envio iminente da importantíssima missão da PESD (a maior e mais complexa missão civil da história da UE).
Tudo indica que o momento da verdade virá durante a Presidência eslovena quando o Kosovo decidir declarar a independência unilateralmente. Só espero que os eslovenos consigam convencer os seus colegas europeus que nos Balcãs a indecisão, a desunião e a fraqueza - como as guerras dos anos 90 demonstraram - se pagam caro e com sangue.

(publicado no COURRIER INTERNACIONAL em 21.12.07)

Uma língua, uma ortografia 

Por Vital Moreira

Desde a sua assinatura em 1990, sou apoiante declarado do acordo ortográfico para unificar tanto quanto possível a língua portuguesa escrita, eliminando as discrepâncias entre a norma europeia (e africana) e a norma brasileira. E também nunca entendi bem as razões pelas quais Portugal, que ratificou o acordo logo em 1991, não fez depois nada para conseguir a ratificação dos Estados que o não fizeram, nem as que agora justificam uma "moratória" de dez anos para a sua efectiva entrada em vigor.

São grandes as vantagens da uniformização ortográfica, salvaguardando os casos em que a divergência de grafia resulta de diferenças de pronúncia (por exemplo o "facto" português e o "fato" brasileiro). Primeiro, a nova ortografia aproxima a língua escrita da língua falada (caso da eliminação das consoantes mudas no português europeu), o que é bem-vindo. Segundo, não existe nenhuma razão lógica para que uma mesma língua mantenha tantas divergências ortográficas entre duas normas nacionais, quando elas não correspondem a uma divergência real na sua expressão oral. Terceiro, na era da Internet e dos conteúdos por ela disponibilizados, em que se torna essencial promover conteúdos em português, a existência de duas normas ortográficas com numerosas diferenças obriga a duplicações e dificulta a expansão e globalização da nossa língua. Quarto, com o crescimento do intercâmbio no espaço lusófono, nos planos económico, turístico, académico, das emissões televisivas, etc., a existência de duas normas ortográficas introduz um "ruído" comunicacional que perturba a criação de um espaço lusófono sem barreiras linguísticas. Quinto, a convergência ortográfica numa única norma oficial facilita a aprendizagem do português como língua estrangeira, independentemente do país onde ela ocorra.

Aliás, se a reforma é criticável (e não existem reformas perfeitas...), sê-lo-á porventura por ser minimalista e pouco ambiciosa, não faltando aqueles (e entre eles me incluo) que defendem uma revisão mais abrangente da ortografia oficial, de modo a reduzir a sua enorme dificuldade e falta de coerência, incluindo a uniformização da correspondência gráfica de certos sons, a eliminação da versatilidade fonética de certos grafemas, sem esquecer de equacionar a supressão do h inicial, entre nós sempre mudo (como sucedeu no italiano). É evidente que uma reforma desta envergadura tem poucas (ou nenhumas...) possibilidades de alguma vez vir a ser concebida. Mas sem ela dificilmente se deixará de cavar o fosso entre a versão oral da língua e a sua versão escrita.

Não considero procedentes os argumentos que têm sido lançados contra a reforma ortográfica. Não existe nenhuma ortografia sacralizada pela tradição, tendo havido várias reformas ortográficas nos últimos cem anos. Não faz sentido acusar a reforma de ser uma cedência do "português" ao "brasileiro": primeiro, porque o Brasil é de longe o principal "dono" da língua; depois, porque as mudanças são bilaterais; por último, porque na falta de unificação ortográfica será a norma brasileira a impor-se, dado o maior peso populacional do país. Não é convincente o argumento sobre a dificuldade de adaptação das pessoas a uma nova ortografia, pois a experiência entre nós e lá fora mostra que a transição para uma nova norma ortográfica se faz sem grandes dificuldades para a generalidade dos utentes da língua. Tampouco tem razão o argumento de que algumas alterações, como a eliminação das consoantes mudas (de "projecto" para "projeto", por exemplo), cria o risco de provocar uma mudança na respectiva pronúncia, ensurdecendo a vogal associada, pela simples razão de que a presença dessas consoantes não tem impedido esse resultado entre nós, como sucede hoje com a pronúncia das palavras "actual", "actriz", etc., normalmente pronunciadas como "âtual" e "âtriz".

A verdade é que a grande oposição ao acordo ortográfico, para além de "puristas" e conservadores avulsos, tem provindo, desde o princípio, dos editores portugueses, que não desejam ter de reeditar os seus fundos bibliográficos e que temem sobretudo a concorrência brasileira na edição de livros escolares e técnicos em mercados actualmente reservados para a indústria nacional, como é o caso dos mercados africanos, onde vigora a norma ortográfica portuguesa. Todavia, numa questão de interesse nacional como esta não devem ser grupos de interesse sectoriais, por relevantes que sejam, a levar a melhor, sobretudo quando se trata de salvaguardar coutadas de negócios. Não se justifica por isso a longa moratória de 10-anos-10 defendida oficialmente entre nós, seja porque o prazo de vigência dos livros escolares é muito inferior, seja porque a adopção de um tão longo prazo pode criar a ideia de que a reforma ficará mais uma vez esquecida na gaveta.

O acordo de 1990 não foi ratificado por todos os oito Estados que têm o português como língua oficial, só o tendo feito Portugal, o Brasil, Cabo Verde e mais recentemente São Tomé e Príncipe, pelo que não chegou a tornar-se vinculativo. Porém, um protocolo modificativo de 2004 permite que o acordo entre em vigor apenas com a ratificação de três países da CPLP. Este instrumento adicional, já ratificado pelo Brasil, por Cabo Verde e por São Tomé (pelo que o acordo já entrou formalmente em vigor), ainda não tem a ratificação portuguesa. Tendo havido, há algum tempo, um anúncio público de que a ratificação poderia ocorrer ainda no ano corrente, isso não sucedeu.
A ratificação portuguesa é essencial, não somente para que o acordo entre efectivamente em vigor, mas também porque isso poderá incentivar a ratificação do acordo ortográfico e do protocolo adicional por parte de outros países ainda em falta. É altura de Portugal assumir as suas responsabilidades e obrigações em relação à língua, sem tergiversações nem duplicidades.

(Público, 3ª feira, 18 de Dezembro de 2007

13 de dezembro de 2007

A nova "constituição social" da UE 

Por Vital Moreira

Não precisa de ser exaltada a importância do Tratado de Lisboa. Por um lado, ele supera o impasse resultante da rejeição do Tratado Constitucional de 2004 e resolve a questão institucional da UE, que vem desde muito antes, permitindo à União libertar as suas energias e os seus recursos para as políticas que tem de definir e para as tarefas que tem de desenvolver. Por outro lado, o novo quadro institucional confere à União instrumentos mais favoráveis para dar conta da sua missão, no sentido de mais integração económica, mais desenvolvimento, mais justiça e segurança, mais coesão territorial e social.

Seria irrealista esperar um consenso universal sobre o novo tratado. Os adversários da integração europeia em nome da soberania nacional verão nele mais um passo no sentido da "união cada vez mais estreita". Os partidários de mais integração denunciarão mais uma oportunidade perdida de avançar para formas genuinamente federais, tanto mais que nesse aspecto existe um efectivo recuo, desde logo simbólico, em relação ao frustrado Tratado Constitucional. Por sua vez, a direita liberal censurará a garantia do "modelo social europeu" e as restrições ao império do mercado, enquanto a esquerda radical, ao invés, condenará o excesso de mercado e as imposições do "mercado único". Porventura será sempre assim, variações sobre clivagens conhecidas e argumentos reiterados.

Mas se para alguns sectores políticos existem suficientes motivos de oposição ao tratado (do seu ponto de vista, bem entendido), o que não se justifica é condenar o novo tratado por motivos que não encontram nele nenhum fundamento. Em artigo anterior, já mostrei a absoluta improcedência do argumento segundo o qual o tratado constituiria um "recuo" em termos de democracia europeia, provando que com ele sai reforçada tanto a democracia na arquitectura institucional da UE como a participação das parlamentos nacionais na vida institucional da UE, incluindo no escrutínio do respeito pelo princípio da subsidiariedade. Importa também contrariar outra das críticas não menos injustificadas, nomeadamente a de que o novo tratado privilegia o mercado e a concorrência e desvaloriza o modelo social europeu e a coesão social.
Tal argumento é inteiramente desprovido de substância. Pelo contrário, um dos progressos do novo tratado consiste justamente num melhor compromisso entre a economia de mercado, a concorrência e o mercado interno, por um lado, e o modelo social europeu, por outro lado. O facto de um dos motivos para a rejeição do Tratado Constitucional em França em 2005 ter sido o argumento social - mesmo que já na altura sem fundamento - levou o Tratado Reformador a ser mais cuidadoso e mais exigente nessa matéria.

A primeira grande alteração em relação ao frustrado tratado de 2004 está em que, ao contrário deste - que era um tratado refundador e que, portanto, incorporava e consolidava todo o direito "constitucional" anterior, incluindo a ordem económica do Tratado de Roma, de 1957, cujo objectivo exclusivo era a criação de um "mercado comum" -, o novo tratado, sendo um simples tratado de revisão dos instrumentos anteriores - que permanecem com a sua independência, ainda que alterados -, não os incorpora na parte não modificada, pelo que não tem de reassumir e relegitimar a ordem económica originária da Comunidade Económica Europeia. O que está agora em causa é um conjunto de modificações, e não todo o acervo do direito "primário" da UE.

Em segundo lugar, o novo tratado recupera todos os aperfeiçoamentos do Tratado Constitucional em matéria social, designadamente a noção de "economia social de mercado", os direitos sociais da Carta de Direitos Fundamentais da UE, a "cláusula social geral", a "cláusula do diálogo social". A inovadora noção de "economia social de mercado" importa obviamente uma explícita qualificação da economia de mercado, autorizando as medidas necessárias a conformar esta com as missões do "Estado social". A Carta de Direitos Fundamentais da UE, aprovada em 2000, passa a ter força jurídica, incluindo quanto aos direitos sociais nela consagrados, e não são poucos. A cláusula social geral confere força transversal, em todas as políticas da UE, à dimensão social (elevado nível de emprego, protecção social adequada, luta contra a exclusão social, elevado nível de protecção na educação, na formação e na protecção da saúde humana). A cláusula do diálogo social obriga a União a reconhecer e a promover o papel dos parceiros sociais e a facilitar o diálogo entre eles, incluindo o reconhecimento da "cimeira social tripartida para o crescimento e o emprego".

Em terceiro lugar, o novo tratado acrescenta alguns progressos nesta dimensão social, de onde cumpre realçar o protocolo adicional sobre os "serviços de interesse geral" (SIG) - e já não apenas dos "serviços de interesse económico geral" (SIEG) -, conferindo uma base jurídica reforçada para a salvaguarda dos serviços essenciais ao "modelo social europeu", desde a educação à energia, desde os cuidados de saúde aos transportes colectivos. Não é por acaso que, ainda antes da assinatura formal do tratado, a Comissão Europeia tenha aproveitado, há dias, o balanço da construção do "mercado único" para emitir uma nova reflexão sobre a defesa e promoção dos "serviços de interesse geral".

Em suma, a "constituição social" europeia que decorre do novo Tratado de Lisboa não só salvaguarda todo o "acquis" social anterior, como também procede a um indesmentível reforço do "modelo social europeu", nas suas diversas componentes (coesão social, direitos sociais, serviços públicos, diálogo social, etc.). Não é por aí, pelo contrário, que se podem encontrar argumentos contra ele.

(Público, 3ª feira, 11 de Dezembro de 2007)

8 de dezembro de 2007

Do bom governo municipal 

Por Vital Moreira

Como era de esperar, a reforma do sistema de governo municipal (e das freguesias) está a gerar acesa polémica no seguimento do anunciado acordo PS-PSD, cujas linhas principais vieram a público. Todavia, nem as críticas são todas pertinentes, nem os problemas se resumem à questão da representatividade das câmaras municipais.
Tanto quanto se sabe, o futuro sistema de governo municipal - que assentará numa única eleição, para a assembleia municipal, deixando de haver eleição separada da câmara municipal e sendo presidente desta o primeiro nome da lista mais votada para a assembleia - consiste numa adaptação do regime já hoje vigente nas freguesias, embora com várias divergências, nomeadamente a garantia de maioria absoluta no executivo para o partido vencedor das eleições para a assembleia, mesmo que tenha ganho com maioria relativa (porém, sob condição de "passagem" do executivo municipal na assembleia, o que pode obrigar a coligações).

Não se trata, portanto, nem de um sistema de governo presidencialista - pois o presidente não é eleito separadamente nem a sua subsistência é independente de votações da assembleia (estando prevista a possibilidade de rejeição do seu "governo") - nem de um regime de assembleia, pois o executivo municipal não é eleito pela assembleia municipal. Estamos perante um regime híbrido, a que a presença obrigatória de membros da oposição no executivo municipal confere traços de uma verdadeira "salgalhada institucional".

Não sendo formalmente um regime presidencialista, seguro é, porém, que o novo sistema vai tornar as eleições para a assembleia municipal em eleição do presidente da câmara municipal - como já hoje sucede nas freguesias -, consumando o processo de presidencialização e de pessoalização do governo autárquico e reforçando a tendência para a sua bipolarização política (embora a manutenção de vereadores dos partidos minoritários possa atenuar essa tendência). Com a proeminência política da eleição do presidente vem necessariamente a secundarização da eleição da assembleia.

Não creio que haja alguma inconstitucionalidade - como já se argumentou - no facto de as câmaras municipais deixarem de reflectir a representação proporcional das várias forças políticas, assegurando sempre uma maioria ao partido vencedor, mesmo que tenha ganho as eleições municipais sem maioria absoluta. Dado que os executivos municipais deixam de ser directamente eleitos, não se impõe nenhuma representação (proporcional ou não) de todos os partidos. Já assim é hoje nas juntas de freguesia - compostas pelo presidente da junta, "directamente" eleito, e por vogais eleitos pela assembleia de freguesia, sob proposta daquele (que pertencerão ao mesmo partido, se ele tiver maioria absoluta na assembleia) -, sem que se tenha suscitado qualquer problema quanto a isso.

Pelo contrário, não sendo agora a câmara municipal um órgão representativo, a inclusão de representantes dos partidos da oposição é que não apresenta nenhuma justificação, nem lógica sistémica, abrindo lugar para equívocos sobre a filosofia do novo sistema de governo municipal. Essa solução vai conservar um dos principais defeitos do sistema vigente, que é a de "ter a oposição dentro do governo", com isso desvalorizando decididamente a assembleia municipal, como hoje sucede. Num sistema democrático - seja ele presidencialista ou parlamentar, ou inominado - a oposição deve estar na assembleia e não no executivo. Por isso, ao contrário da crítica dominante, a principal censura a fazer à solução acordada não está na falta de respeito pela proporcionalidade na câmara municipal, mas sim na continuidade da coabitação forçada entre maioria e oposição dentro da mesma.

Tendo-se optado pelo sistema de eleição dois-em-um (elegendo simultaneamente a assembleia e o presidente do executivo), então mais valeria universalizar o regime actualmente vigente para as freguesias. De duas, uma: ou o partido vencedor das eleições tem maioria absoluta na assembleia, e então o presidente consegue fazer eleger um executivo homogéneo; ou não tem, e então deve fazer os acordos necessários com um ou mais partidos minoritários. A solução agora adoptada, em que garante à partida uma maioria no executivo ao partido vencedor, mesmo que não tenha maioria na assembleia, assegurando simultaneamente a presença dos partidos minoritários no próprio executivo, é que não se recomenda em termos de racionalidade democrática, desde logo em termos de separação de poderes entre órgão representativo e órgão executivo e de separação entre o governo e a oposição.

Há outros problemas de natureza política (e em alguns casos, constitucional), cuja solução o desconhecimento do teor do acordo interpartidário não permite equacionar, como, por exemplo, as relações entre o executivo e a assembleia, a substituibilidade do presidente em caso de vagatura do cargo, o modo de selecção dos representantes dos partidos minoritários no executivo, etc.

O principal problema respeita à responsabilidade do executivo perante a assembleia, aliás constitucionalmente imposta. Deixando de haver legitimidade eleitoral própria da câmara municipal (salvo do presidente), como se dá a sua "investidura" perante a assembleia? Pela eventual votação do "programa de governo", como sucede com o Governo da República? E qual será a maioria de rejeição: maioria simples, maioria absoluta (como sucede com o governo da República) ou maioria qualificada, como constava numa inaceitável proposta do PS, há alguns anos? Por outro lado, haverá possibilidade de aprovação de moções de censura, como parece incontornável? E qual será a consequência da sua aprovação: remodelação e relegitimação da câmara ou a destituição desta e novas eleições?

Todas estas questões carecem de resposta. Além de constitucionalmente viável, uma reforma do governo autárquico deve ser politicamente convincente, já que não pode ser consensual.

(Público, 3ª feira, 4 de Dezembro de 2007)

6 de dezembro de 2007

Novos caminhos públicos 

Por Vital Moreira

Apesar dos equívocos e incompreensões que suscitou, o novo modelo de gestão da rede rodoviária nacional recentemente adoptado entre nós representa a aplicação de um padrão moderno e coerente de gestão de infra-estruturas e serviços públicos.

Lembremos os traços principais do novo modelo: contratualização da gestão da rede rodoviária, mediante um contrato de concessão entre o Estado e a empresa pública "Estradas de Portugal" (EP); transformação da referida empresa pública em sociedade de capitais públicos (SA), sujeita à lei das sociedades comerciais; auto-suficiência financeira da empresa concessionária, que deixa de estar dependente de financiamento público por via orçamental, passando a viver de receitas próprias; construção e manutenção das estradas com recurso a "parcerias público-privadas" entre a EP e empresas privadas, cabendo a estas o investimento e sendo elas remuneradas por aquela, pela disponibilidade das vias, ao longo da duração do contrato; criação de uma entidade reguladora autónoma para supervisionar todo o modelo.

Antes de mais, importa registar que as estradas (as existentes e as futuras) continuarão a pertencer ao domínio público do Estado, sendo por isso inalienáveis e indisponíveis, cabendo à EP somente a gestão e exploração da rede rodoviária nos precisos termos do contrato de concessão. Não têm por isso nenhum fundamento os receios manifestados por alguns quanto à liberdade de circulação e de uso das estradas. De resto, como é sabido, os contratos de concessão podem ser unilateralmente (e licitamente) rescindidos pelo Estado, quer por não cumprimento pela outra parte, quer por motivo de interesse público.

A muito especulada transformação da EP em sociedade comercial de capitais públicos, deixando de revestir o formato de "entidade pública empresarial" (EPE), é perfeitamente congruente com a nova filosofia da gestão da rede rodoviária, visto que é o estatuto mais conforme com a desejada separação financeira entre o Estado e a empresa, substituindo a relação de tutela e de superintendências administrativa, própria do modelo de EPE, por uma relação societária, em que o Estado surge como accionista, mais conforme com as regras das relações comerciais, onde a EP se vai mover. Por isso, a opção pelo estatuto de SA – que aliás é hoje o estatuto normal das empresas públicas gestoras de bens públicos (desde as águas aos portos) – não tem que pressupor uma eventual futura privatização parcial da EP, eventualidade que não constitui uma necessidade do novo modelo, que pode muito bem passar sem ela.

Outra novidade do modelo é a contratualização da relação entre o Estado e a empresa pública, mediante um contrato de concessão de longo prazo (tendo em conta a longa vida dos activos envolvidos e a necessidade da sua amortização). Para além da enunciação explícita dos direitos e deveres de ambas as partes, conferindo transparência e previsibilidade à relação, o contrato de concessão pressupõe a transferência do risco financeiro da exploração para a concessionária, exonerando-se o Estado dessa responsabilidade, bem como o princípio de que a empresa concessionária vai ser remunerada pela exploração da infra-estrutura concedida, ou seja, pelos seus utilizadores.

De facto, outra ideia forte do novo modelo é o princípio do utilizador-pagador, deixando a rede de ser paga pelo orçamento, ou seja, por todos os contribuintes (pelo contrário, a EP pagará uma renda anual ao Estado). Doravante, as estradas serão pagas exclusivamente pelos seus utilizadores, quer por via da "contribuição rodoviária", cobrada sobre o consumo de combustíveis rodoviários, quer por taxas de uso de auto-estradas (as portagens), que passam a ser receita directa da EP e não das empresas subcontratadas para a construção e conservação das estradas. Havendo muita gente sem veículo próprio, não é justo que todos paguem pelas estradas que nem todos utilizam. Se isso sucede com tantos outros serviços públicos, desde a justiça ao saneamento básico, não há razão para não ser assim nas estradas.

Por tudo isto, o novo modelo de gestão da rede rodoviária nacional obedece manifestamente aos requisitos da moderna teoria da gestão de obras e serviços públicos, baseada na empresarialização e na "comercialização" das entidades gestoras, na separação entre o Governo e os operadores públicos, na regulação das relações entre ambos por contratos de concessão, na construção de infra-estruturas públicas por via de parcerias público-privadas de longa duração, no financiamento das obras e serviços públicos pelos beneficiários, na autonomização da função reguladora do Estado.

(Diário Económico, quarta-feira, 5 de Dezembro de 2007)

3 de dezembro de 2007

Democracia europeia 

Por Vital Moreira

Ninguém pode obviamente esperar que o Tratado de Lisboa suscite um consenso universal. Soberanistas e federalistas, neoliberais e comunistas, para citar só os casos mais óbvios, contestarão os excessos ou insuficiências da reforma da UE, aliás em termos contraditórios. Todavia, o mais improvável argumento contra o novo tratado era talvez o de que ele reduz a vertente democrática das instituições europeias. Ora, é isso justamente o que António Barreto argumenta numa recente crónica no PÚBLICO, considerando que o tratado constitui "um dos mais potentes recuos da democracia na Europa". Importa analisar este inesperado ponto de vista.
O argumento é o seguinte, por extenso: "Sob a aparência de um melhoramento, concretizado em competências marginais conferidas ao Parlamento Europeu, este tratado é um dos mais potentes recuos da democracia na Europa. O Parlamento Europeu, pela sua natureza, estrutura e função, não é uma instituição favorável à democracia. Por outro lado, este tratado relega definitivamente os parlamentos nacionais para a arqueologia política e confere-lhes um estatuto tão relevante para a liberdade como o de uma qualquer direcção-geral dos recursos hídricos." O autor não achou necessário fundamentar estas rotundas objecções. A verdade, porém, é que não há fundamento para elas.
Globalmente consideradas, as alterações introduzidas pelo Tratado de Lisboa quanto às instituições europeias, suas competências e respectivos mecanismos de decisão vão no sentido de maior democraticidade, responsabilidade e transparência da vida política da UE, e não o contrário. Para começar, é acrescentado um novo capítulo no Tratado da UE explicitamente dedicado aos "princípios democráticos" da União, que nada ficam a dever aos de qualquer constituição nacional, estabelecendo os princípios da democracia representativa, bem como, inclusive, da democracia participativa.
No que respeita em especial ao poder legislativo da UE, a generalidade das leis passam a ser aprovadas segundo o procedimento da co-decisão, implicando a aprovação cumulativa do Conselho de Ministros, representando os governos dos Estados-membros, e do Parlamento Europeu, representando os cidadãos europeus, o que replica aproximadamente o modelo de decisão federal. A própria ampliação das decisões tomadas por maioria qualificada (dupla maioria, de 55 por cento do número dos Estados-membros e 65 por cento da população) reduz consideravelmente as decisões por unanimidade, método bem pouco democrático, pois confere a cada Estado-membro o poder de veto individual contra todos os outros.
No mesmo sentido vão várias outras alterações, como o carácter público das reuniões do Conselho de Ministros com agenda legislativa, o aumento dos poderes do Parlamento Europeu em todas as vertentes (poderes legislativos, orçamentais e de escrutínio político), o reforço da responsabilidade política da Comissão Europeia perante o Parlamento Europeu, etc. Aliás, não vejo nenhuma razão para desvalorizar nem a legitimidade democrática nem os poderes do Parlamento Europeu. Pelo contrário, os seus novos poderes consubstanciam todos os ingredientes de uma genuína democracia parlamentar a nível da UE.
Também não deve ser desconsiderado o compromisso do novo tratado com a democracia participativa, incluindo a obrigação da Comissão Europeia de proceder a "amplas consultas com as partes interessadas", bem como, sobretudo, o reconhecimento, embora em termos moderados, de um direito de iniciativa popular (incluindo iniciativa legislativa) junto da Comissão Europeia, que esta não poderá rejeitar sem adequada justificação. É ainda no contexto da democracia participativa que deve ser valorizada a instituição do "diálogo social" a nível comunitário, articulando as instituições europeias e os "parceiros sociais" ("conferência social tripartida").
Por outro lado, não se pode sufragar a ideia de que o Tratado de Lisboa ignora os parlamentos nacionais. Ao invés, pela primeira vez, eles passam a ser expressamente inseridos no sistema político da UE. Há um novo preceito no tratado da UE especificamente dedicado ao papel dos parlamentos nacionais, bem como um protocolo anexo ao tratado - com o mesmo valor deste - que desenvolve os mecanismos de intervenção dos parlamentos nacionais nos procedimentos comunitários, incluindo a sua participação nas "convenções" a instituir para proceder a futuras revisões dos tratados da UE (sem prejuízo da aprovação parlamentar destas no final do processo, como passo da sua ratificação).
A mais importante das novas competências dos parlamentos nacionais consiste na supervisão do princípio da subsidiariedade, podendo contestar iniciativas comunitárias que considerem violadoras desse princípio, obrigando a Comissão a reavaliar as suas iniciativas, se o número de parlamentos nacionais que tiverem suscitado objecções atingir uma número relevante (1/3 ou 1/4, conforme os casos). Do mesmo modo, basta a oposição de qualquer parlamento nacional para impedir a adopção de uma "cláusula passerelle" pelo Conselho Europeu, tendente a substituir votações por unanimidade por votações por maioria qualificada, ou procedimentos legislativos especiais pelo procedimento legislativo ordinário.
O mínimo que se pode dizer, portanto, é que os parlamentos nacionais foram reconhecidos como partes interessadas no funcionamento da UE e nos procedimentos comunitários, sendo essa uma das grandes inovações do Tratado de Lisboa.
É evidente que as normas e instituições não são tudo e que a democracia europeia depende da existência e do bom funcionamento de partidos políticos europeus, de grupos de interesse organizados a nível europeu, de uma opinião pública europeia, etc. Todavia, isso pouco depende dos tratados; e na medida em que depende, o Tratado de Lisboa é insusceptível de ser acusado de promover qualquer recuo em relação à situação presente. Antes pelo contrário.

(Público, 3ª feira, 27 de Novembro de 2007)

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