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22 de maio de 2008

A Birmânia não é o Iraque - e as ONGs não têm tanques 

por Ana Gomes

Artigo de resposta ao Dr. Alberto Gonçalves
("Causas Dela", DN, 11 de Maio)

O sociólogo Alberto Gonçalves assinava uma página de Opinião no DN do passado domingo 11 de Maio, dedicando alguma prosa a criticar ("Causas Dela") o que escrevi no meu blog ("Causa Nossa", 7 de Maio) sobre a necessidade de uma entrada urgente, de "roldão e por todas as portas e janelas" na Birmânia das agências da ONU, das ONG humanitárias e dos media internacionais em socorro do povo birmanês vitimado pelo ciclone. O Dr. Gonçalves parece desvalorizar o sofrimento dos birmaneses - à morte e à devastação em larga escala trazidas pelo ciclone, acrescem hoje (passados quinze dias) mais milhares de mortes por falta de socorro. E pouco lhe importa que a causa desses milhares de vítimas adicionais seja a intransigência da ditadura militar que há décadas oprime e desgoverna a Birmânia - uma ditadura que leva a paranóia isolacionista ao ponto de deixar morrer o povo recusando ajuda externa.Ao Dr.Gonçalves importa mais criticar-me por defender uma urgente "invasão" (palavra dele) humanitária para ajudar as vítimas na Birmânia, sem "atrasos e mariquices diplomáticas" (palavras dele) e por defender que uma intervenção na Birmânia teria também por objectivo/efeito "ajudar os birmaneses a escorraçar a junta opressora" (palavras minhas). Ele omite cirurgicamente o verbo "ajudar" para poder atribuir-me o intuito de pôr esses actores internacionais a varrer a Junta; intuito que efectivamente não tenho, defensora que sou, como sempre fui, de que a ajuda externa só deve ser isso mesmo - ajuda - cabendo aos próprios povos tratar do "regime change" e livrar-se dos tiranos (na Birmânia, no Sudão, no Iraque ou no Portugal do 24 de Abril). O que eu não ignoro - e a Junta ditatorial birmanesa também não e por isso recusa a ajuda externa - é que o fim do isolamento do país ditará inexoravelmente o fim do regime. Mas isso parece ser irrelevante para o Dr. Gonçalves.... Ele acusa: "As urgentes recomendações da Dra. Gomes implicam, assaz simplesmente, uma guerra." Vá lá que não implicou ainda e já entraram entretanto, à sorrelfa, pelas portas e janelas das porosas e longas fronteiras birmanesas, centenas de jornalistas internacionais!Mas o que verdadeiramente revela a má fé do Dr. Gonçalves é a analogia desajeitada que ele tenta estabelecer entre a minha defesa de um maior envolvimento da comunidade internacional na Birmânia e a minha oposição à invasão do Iraque. Ao distorcer o que defendo para a Birmânia ele tenta expor uma suposta contradição da minha parte: diz que "é capaz de jurar que a Dra. Ana Gomes se opunha com furioso vigor a aventuras unilaterais do género" e lembra que há cinco anos denunciei "os 'criminosos' que entraram de roldão no Iraque". Como se a invasão armada e ilegal do Iraque fosse justificável por quaisquer propósitos humanitários (e eu denunciei a insuportável hipocrisia dos invasores ao usar o pretexto dos direitos humanos, além do das ADM, eles que durante décadas tinham apoiado o criminoso Saddam na opressão do seu povo e na agressão ao iraniano). Como se eu tivesse advogado uma invasão armada da Birmânia ou defendesse uma qualquer "aventura unilateral" sem base no direito internacional. Para confundir os incautos, o Sr. Gonçalves omite que eu invoco a "responsabilidade de proteger", que decorre directamente das obrigações impostas pela Carta das Nações Unidas a todos os seus membros e que se aplica face aos "crimes contra a humanidade" cometidos pela Junta birmanesa. Não advogo uma invasão armada para a Birmânia, tal como não a advoguei para o Iraque. Advogo, sim, uma urgentíssima vaga pacífica, desarmada, de agentes humanitários e jornalistas, sem esperar autorização da Junta ou do Conselho de Segurança (pois este não tem de autorizar previamente ajuda humanitária que é dever de todos prestar a vítimas de catástrofes). Além do impacto imediato humanitário, é o impacto político que também me importa. Não acredito - como Alberto Gonçalves, baseado não se sabe em quê - que o forçar da presença das agências e ONG internacionais na Birmânia provoque uma guerra - o regime birmanês é na realidade um "tigre de papel". Basta ir lá - como eu fui - e observar o profundo ódio que os birmaneses de diferentes etnias têm aos opressores.É tempo de levar os membros da Junta a enfrentar o Tribunal Criminal Internacional por "crimes contra a humanidade" - além de todos os já cometidos ao longo das últimas décadas, acresce agora a crueldade refinada de deixar morrer o povo por obstrução do socorro externo. Claro que o sociólogo Dr. Gonçalves admite a "tirania" da Junta de Rangum. Só que prefere ignorar os imperativos legais e morais que decorrem directamente da calamidade na Birmânia. Impressiona-o mais que a Junta "talvez não aprecie a generosa ingerência" e sobretudo "talvez não aprecie ser escorraçada". E, à conta disso, nada propõe, preparando-se para assistir à evolução sociológica das vítimas e dos seus carrascos.
Obviamente que nada tenho a ver com as causas do sociólogo Gonçalves. E ainda menos com as consequências....

(publicado no Diário de Notícias de 22 de Maio de 2008)

Intervenção sobre a eficácia da ajuda europeia ao desenvolvimento na Plenária do Parlamento Europeu, Estraburgo, 22 de Maio de 2008 

por Ana Gomes

Cumprimento o colega Van Hecke por este importante relatório.
Para melhorar a eficácia da ajuda europeia é fundamental investir em capacidade humana e financeira e ultrapassar as incoerências existentes entre políticas e na arquitectura institucional.
O Tratado de Lisboa abre uma oportunidade com a criação do Serviço Europeu para a Acção Externa. Além de apoiar o futuro Alto Representante, este Serviço deve estar equipado para levar por diante a política de desenvolvimento da UE, em paralelo com a PESC e a PESD.
Para garantir a eficácia da ajuda não é preciso reinventar a roda: ela está dependente do cumprimento das promessas feitas.
Como sublinhou o Comissário Michel, os Estados Membros têm que aumentar a Ajuda Pública ao Desenvolvimento para os níveis prometidos em 2005 (sem os inflacionar através do perdão de dívidas) e têm de a direccionar para a realização dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio. Sobretudo numa época em que a escalada dos preços do petróleo e dos bens alimentares torna ainda mais urgente o combate à pobreza no mundo.
Senhor Presidente,
mais do que a eficácia da ajuda, o que está em jogo é a credibilidade da UE e a sua eficácia como actor global.

(Estrasburgo, 22 de Maio de 2008)

Intervenção sobre armas de urânio empobrecido na Plenária do Parlamento Europeu, Estrasburgo, 21 de Maio de 2008 

por Ana Gomes

Numa carta recente ao Times de Londres, nove ex-comandantes militares britânicos apelaram ao governo do Reino Unido para se juntar aos que defendem uma proibição das bombas de fragmentação. O argumento é o mesmo que foi invocado no contexto das minas anti-pessoais: por muito útil que uma arma possa ser a curto prazo numa lógica militar, o facto de causar efeitos indiscriminados a longo prazo é suficiente para justificar a suspensão da sua utilização por forças armadas responsáveis.
A mesma lógica aplica-se em relação às munições de urânio empobrecido.
A Organização Europeia de Associações Militares - a EUROMIL - acompanha este assunto de perto e a sua posição - baseada na informação que recebe de militares de toda a Europa - é categórica: as munições de urânio empobrecido devem ser abandonadas quanto antes.
O Parlamento Europeu já se pronunciou a favor de uma proibição total destas armas. E a resolução da Assembleia Geral da ONU aprovada em Dezembro passado que coloca o tema das armas e munições com urânio empobrecido na agenda da 63ª Sessão Plenária da Assembleia Geral, veio confirmar que o Parlamento Europeu tem razão em assumir, e pedir ao Conselho, uma posição de liderança em mais este debate sobre desarmamento e direito humanitário.
Os argumentos contra dos cépticos entre nós não colhem: o mais elementar princípio de precaução exige a estigmatização destas armas, antes mesmo de as muitas provas circunstanciais que apontam na direcção do seu efeito cancerígeno e indiscriminado serem substituídas por provas científicas irrefutáveis.
O que dirão de nós, responsáveis políticos, daqui a uma década, quando os efeitos nefastos destas armas forem claros e inquestionáveis - até para os cépticos de hoje - se entretanto não tivermos feito nada para as retirar de circulação?
Dirão o mesmo que dizem agora sobre as minas anti-pessoais: como é que puderam esperar tanto tempo?

(Estrasburgo, 21 de Maio de 2008)

Intervenção sobre a Birmânia na Plenária do Parlamento Europeu, Estraburgo, 21 de Maio de 2008 

Por Ana Gomes

Mais de 133.000 mortos e desaparecidos e 2 milhões e meio sem abrigo: é hoje o resultado do ciclone, combinado com a crueldade da Junta que desgoverna e oprime a Birmânia e tem impedido o auxílio internacional aos necessitados. Que contraste com a abertura e prontidão na China em socorro dos sobreviventes de Sichuan!
O Conselho de Segurança da ONU não pode demitir-se de aplicar à Birmânia a "responsabilidade de proteger", desde logo autorizando o acesso ao país por parte das agências e ONGs humanitárias internacionais para socorrerem a população abandonada no delta do Irrawadi. E não pode demitir-se de referir ao Tribunal Internacional Criminal a Junta militar birmanesa para procedimento por "crimes contra a humanidade".
Este Parlamento espera que os governos europeus accionem o Conselho de Segurança da ONU imediatamente. É tempo de todos os membros do Conselho, incluindo a China que tem respaldado a ditadura birmanesa de assumirem as suas responsabilidades para com o povo sacrificado da Birmânia.

(Estrasburgo, 21 de Maio de 2008)

15 de maio de 2008

"Adeus socialismo"? 

Por Vital Moreira

No seu último artigo no Diário Económico, intitulado "Adeus socialismo", o filósofo social João Cardoso Rosas defende que as ideias socialistas caducaram no mundo de hoje, mesmo para as correntes políticas que se reclamem delas, dada a conversão universal ao capitalismo de mercado. Sem ser inédita nem destituída de aparente sentido, a tese não é, porém, convincente.

Em primeiro lugar, o "socialismo democrático" não se afundou juntamente com o desabamento quase universal do comunismo há duas décadas. Desde a dissidência leninista a seguir à revolução russa de 1917, que deu origem à cisão do movimento socialista e à criação dos partidos comunistas em numerosos países, foi sempre óbvia a diferença entre o "socialismo socialista" e o "socialismo comunista", quer quanto ao modo de transformação social, quer quanto ao modelo da sociedade socialista a erigir. Como é bom de ver, a queda do Muro de Berlim significa metaforicamente "adeus Lenine" e o fim do comunismo, mas não afecta essencialmente o socialismo democrático, que aliás viu vindicada a sua crítica histórica ao leninismo e ao socialismo soviético.

Em segundo lugar, foi muito antes do fim do comunismo que os partidos socialistas e social-democratas - a começar com o SPD alemão, no célebre congresso de Bad Godesberg de 1959 - abandonaram a ideia da "economia socialista", enquanto sistema económico alternativo ao capitalismo, baseado na "socialização" generalizada dos meios de produção. Aliás, isso mesmo resulta da adesão de todos eles à UE, desde o início baseada numa "economia de mercado assente na livre concorrência" (como estabelece o Tratado de Roma, de 1957). O próprio Partido Socialista francês, um dos mais conservadores nesse aspecto, acaba de propor uma nova declaração de princípios onde não existe o mais leve traço de socialismo económico, substituído pela adesão a um projecto de "economia ecologista e social de mercado". Por isso, hoje ninguém espera, ou teme, que um governo socialista desate a fazer nacionalizações a eito. Portanto, não há nenhum engano ou equívoco quanto a esse ponto.

Por último, mas não menos importante, apesar do abandono da "economia socialista" pelas correntes e partidos socialistas na actualidade, não é ilegítimo que conservem a antiga denominação, dado que continuam a lutar pelas suas principais bandeiras na esfera social, designadamente direitos sociais, inclusão social, coesão social, Estado social, enfim, justiça social. Essa "marca de água" das ideias e dos partidos socialistas permanece. Liberal na política e nos costumes, mas agora também na economia, o socialismo contemporâneo continua porém a ser caracterizado pelos seus objectivos de maior igualdade e justiça social, que se reflecte em especial na política social, na política fiscal, na política educativa, nas "políticas afirmativas" de igualdade, etc.
Em suma, os partidos socialistas há muito abdicaram do "socialismo económico", mas os ideais socialistas nunca se limitaram a isso. Por isso, dizer "adeus ao socialismo" seria, por um lado, redundante e, por outro lado, injustificado.

É evidente que não existe equivalência absoluta entre esquerda e socialismo. A noção de esquerda é um conceito relativo, tendo como contraposição a direita, num continuum posicional gradativo que vai desde a extrema-direita à extrema-esquerda. Já a noção de socialismo tem a ver com objectivos identificados de transformação e de justiça social, pelo que tem um sentido mais preciso e menos relativo, embora se possa ser mais ou menos socialista. Pode, portanto, haver uma esquerda não socialista, que, defendendo embora tradicionais valores de esquerda - como a igualdade, a democracia participativa, a laicidade do Estado, a escola pública, a liberdade dos costumes, etc. -, não compartilhe, porém, dos objectivos sociais típicos do socialismo.

Todavia, embora a hipótese de uma esquerda não socialista não seja irrealista, com mostra o caso do Partido Democrata nos Estados Unidos, partido de esquerda liberal sem grandes traços socialistas - ressalvadas as políticas sociais de presidentes democratas como Roosevelt, Johnson, Kennedy e Clinton -, já na Europa, por razões ligadas às suas tradições políticas e culturais, bem como às vicissitudes da sua história económica e social, não se afigura sustentável uma esquerda politicamente relevante fora do quadro socialista. O recente insucesso do novel Partido Democrata italiano, aliás herdeiro do antigo Partido Comunista italiano, que tentou emular o paradigma norte-americano (até no nome), revela os limites da reconstrução política à esquerda com abandono da herança e dos referenciais socialistas.

Sem dúvida que os partidos socialistas e social-democratas em geral, sobretudo os de vocação governamental, estão a passar por um processo de modernização que inclui a adopção de muitos valores alheios à tradição socialista, desde a conversão à economia de mercado e à concorrência até à liberalização das utilities, desde a disciplina monetária e financeira até à "nova gestão pública", desde o valor da segurança pública até à competitividade empresarial. Mas, para além dos bons fundamentos desta modernização - que, em geral, não é de esquerda nem de direita, mas apenas exigência de bom governo -, nada disso exige o abandono dos traços propriamente socialistas da esquerda. Pelo contrário, sem bom desempenho económico e sem eficiência na gestão pública não pode haver margem para políticas sociais de esquerda.

E, acima de tudo, a realidade política mostra que, para além de injustificado, o abandono das ideias e propostas socialistas teria por consequência deixar à extrema-esquerda o monopólio de um património de representações e de referências que pertencem à memória e à identidade da esquerda socialista, e cujo valor ainda não se esvaiu.

(Público, terça-feira, 13 de Maio de 2008)

Renovação da democracia 

Por Vital Moreira

Um think tank britânico de esquerda elaborou um ranking dos países da UE quanto à qualidade da "democracia quotidiana" (everyday democracy), uma noção alargada de democracia, que compreende várias dimensões, desde as instituições e procedimentos eleitorais até à democracia nos locais de trabalho. Nessa ordenação, que é liderada sem surpresa pelos países escandinavos, Portugal ocupa um lugar assaz modesto. Importa analisar a pertinência da referida noção extensiva de democracia, bem como a situação da democracia portuguesa.

Desde sempre a esquerda fez da democracia o seu leit motiv político, tendo estado na frente das lutas pelo sufrágio universal, pelo voto feminino, pela redução da idade eleitoral, pelo sistema proporcional, pela electividade das "câmaras altas", pela igualdade do voto, etc. Mas também sempre defendeu que a democracia não se pode limitar à "democracia eleitoral", devendo ser conjugada com a democracia participativa, nem pode ficar reduzida à esfera política, devendo ser complementada pela democracia económica, social e cultural. Não é por caso que os partidos socialistas do Norte da Europa ainda hoje se denominam sociais-democratas, ou seja, partidários da "democracia social".

Não admira, por isso, que mesmo a esquerda democrática, embora perfilhando desde o princípio a democracia representativa contra o modelo leninista da "democracia popular", nunca se tenha conformado com a versão "minimalista" da democracia liberal que se tornou dominante na teoria e na prática de muitas democracias ocidentais, centrada exclusivamente sobre a esfera política e sobre os mecanismos eleitorais da escolha dos governantes.

Com o avolumar dos sintomas de diminuição da participação política (elevadas taxas de abstenção, redução da filiação partidária, etc.), esse descarnamento "procedimentalista" da democracia liberal tem vindo a ser confrontado com uma dupla crítica de esquerda. Primeiro, preconiza-se a intervenção institucionalizada dos movimentos e organizações de cidadãos na definição e na tomada de decisões políticas, desde logo a nível das colectividades locais e dos serviços públicos, de modo a intensificar e aprofundar a democracia política. Segundo, defende-se a extensão da lógica democrática às instituições públicas (como as escolas e serviços de saúde) e às próprias organizações sociais (como as famílias, as empresas, etc.), de modo a alargar a democracia para além da esfera estritamente política.

É evidente que, de um ponto de vista de esquerda, mesmo rejeitando a tentação holística das teorias mais radicais da democracia participativa e da "democracia societal" - que tendem a desvalorizar a incontornável centralidade da democracia eleitoral representativa -, a democracia não se pode reduzir à "democracia eleitoral" nem se limitar à esfera política. Será sempre de baixa intensidade uma democracia que se esgote na periódica renovação da legitimidade eleitoral dos governantes ou que esteja circundada por um meio ambiente autoritário na esfera da economia, da sociedade e da cultura política.

Com as devidas proporções, tanto a democracia participativa como a democracia societal podem ser virtuosos complementos da democracia eleitoral, quer como instrumentos de permanente legitimação política, quer como alavancas da criação de uma praxis democrática alargada, podendo constituir a resposta adequada ao risco de dessoramento democrático que as democracias liberais contemporâneas enfrentam e à consequente necessidade de renovação democrática, de que elas necessitam. Não havendo a democracia perfeita, a democracia há-de ser sempre uma tarefa inacabada.

Não admira, por isso, que em vários países europeus tenham sido tomadas nos últimos anos várias iniciativas de reflexão e de reforma política tendentes a aprofundar e a enriquecer a vida democrática, umas que têm a ver com a própria democracia eleitoral (entre elas a "paridade de género", o reconhecimento do direito de voto aos imigrantes, as "eleições primárias" na escolha de candidatos a governantes, a redução da idade eleitoral), outras que passam por formas de democracia participativa, sobretudo a nível local e dos serviços públicos (citizens juries, comissões de utentes, conselhos populares locais, etc.), outras finalmente que visam democratizar instituições e organizações sociais (escolas, empresas, associações e fundações de interesse público, etc.).

A má colocação de Portugal no referido ranking da "democracia quotidiana" - e o resultado não seria porventura muito diferente se se tratasse de um ranking relativo à democracia participativa - deve-se menos à qualidade da democracia eleitoral entre nós - aspecto em que ficamos bem colocados, a meio da tabela, justamente entre as democracias antigas e as democracias mais recentes -, do que às outras dimensões daquela noção de democracia alargada, desde o activismo e a participação cívica até à democracia nos serviços públicos, passando pela democracia na família e no local de trabalho, aspectos em que Portugal surge sistematicamente nos últimos lugares.

Mesmo sem aderir à concepção sistémica da "democracia quotidiana" e sem proceder à verificação da fiabilidade dos dados utilizados, não pode ser contestado que há muito a fazer entre nós para combater o risco de empobrecimento democrático e para conferir maior intensidade e qualidade à nossa democracia, tanto no plano da cultura e das práticas políticas, como da democratização das instituições da esfera económica e social. Eis uma boa tarefa para o PS como partido de esquerda e de poder, o qual, apesar de algumas iniciativas meritórias neste campo na presente legislatura (como a limitação dos mandatos políticos, a promoção da igualdade de género nas eleições e a reforma parlamentar), não tem primado pela imaginação e pelo debate que esta questão requer. As comemorações do centenário da República bem poderiam ser uma excelente oportunidade para suprir esse défice de reflexão democrática.

(Público, terça-feira, 6 de Maio de 2008)

Equilíbrios em ambientes normalmente conflituais 

Por Vital Moreira

É muito provavelmente a última reforma política desta legislatura, a revisão do Código de Trabalho. Terá sido também a mais difícil de equacionar e de formular, numa área de vocação eminentemente conflitual, como é a das relações de trabalho. O primeiro mérito da proposta tornada pública, para além da sua existência mesma, é a sua moderação e aparente falta de ambição, renunciando a mudanças radicais. Embora parecendo que não, o segundo mérito da proposta está na sua recepção crítica por ambas as "partes sociais".

À partida, havia dois desafios a enfrentar. Primeiro, diminuir a rigidez das nossas relações de trabalho - sistematicamente apontada como das mais altas no conjunto das países da OCDE -, a qual penaliza a gestão e a competitividade das empresas, e logo também a criação de emprego. Segundo, reduzir os factores de precariedade do emprego, ligada ao abuso de contratos a prazo e dos "recibos verdes", a qual estabelece uma iníqua segmentação entre quem tem uma relação de emprego estável e goza de todas as garantias de estabilidade e quem a não tem, e por isso está condenado a viver em permanente incerteza sobre a sua situação laboral.

Quanto à luta contra a rigidez das relações laborais, a proposta de reforma avança com duas mudanças, nenhuma delas muito original nem muito inovadora. A primeira consiste num alargamento marginal do conceito de justa causa de despedimento individual - a noção de "inadaptação funcional" -, sem porém a descaracterizar, bem como na simplificação do processo "administrativo" de despedimento, remetendo a sua justificação para os tribunais. A segunda, e mais importante, tem a ver com a adaptação dos tempos de trabalho, mediante acordo dos trabalhadores, permitindo aumentar o tempo de trabalho semanal durante certos períodos, compensando-o com períodos de menor trabalho noutros períodos. Trata-se de um mecanismos essencial para permitir às empresas responder melhor à variação do ciclo de produção, de acordo com os ritmos do mercado.

Mais novidades apresentam as propostas quanto à luta contra a precariedade. Para além da redução do tempo máximo de contrato a prazo para metade, a grande inovação está na diferenciação das contribuições patronais para a segurança social, tornando-as mais onerosas no caso de contratos a prazo e menos pesadas no caso de trabalhadores com contratos sem termo. Além disso, no caso dos "recibos verdes", o empregador passa a suportar uma parte considerável da contribuição social que hoje recai exclusivamente sobre o trabalhador independente.

Trata-se de um verdadeiro "ovo de Colombo", jogando com a linguagem que as empresas melhor entendem, ou seja, os custos. Tornando mais caro o trabalho precário e mais barato o trabalho permanente, cria-se um poderoso incentivo para preferir o segundo ao primeiro, sem porém impossibilitar o recurso ao trabalho temporário quando tal se justifique nos termos da lei, cujas condições obviamente não são liberalizadas.

Sem surpresa, não tardaram as reacções críticas dos sectores mais radicais, à esquerda e à direita. No primeiro caso, de acordo com a sua habitual postura imobilista, desvalorizou-se o impacto das medidas contra a precariedade e denunciou-se uma imaginária liberalização dos despedimentos sem justa causa, que não encontra nenhum suporte na reforma proposta. No segundo caso, surgiram de novo as propostas de ampla desregulação das relações de trabalho, reclamando a possibilidade de despedimentos para "renovação" dos quadros de pessoal e rejeitando o encarecimento dos contratos a prazo.

Nem uns nem outros têm razão. Por um lado, não se pode ignorar que a excessiva rigidez das relações de trabalho, impedindo a adaptabilidade das empresas ao mercado, não favorece nem o aumento do emprego nem a luta contra a precariedade do emprego, sendo antes a principal razão para a inaceitável divisão do mundo do trabalho, entre os que gozam de uma estabilidade hiperprotegida e os que não beneficiam de garantias mínimas de segurança, ou sequer de uma relação de emprego, ou seja, os mais desprotegidos. O conforto de uns gera a desprotecção dos outros. Por outro lado, porém, não se pode pretender contornar as garantias constitucionais da segurança no emprego nem liberalizar as formas de emprego efémero e sem garantias, nem muito menos pactuar com a fraude à própria noção de relação de trabalho, mediante fictícios contratos de prestação de serviços. Admitir o despedimento individual por livre decisão do empregador, sem um motivo específico, razoável e verificável, seria sujeitar os trabalhadores à arbitrariedade ou à perseguição individual. Ora os interesses dos empregadores não podem prevalecer contra a liberdade e a dignidade dos trabalhadores.

Dificilmente existe um terreno mais espinhoso para um governo de esquerda do que tentar reformar as relações laborais, por mais contidas e razoáveis que sejam as propostas, correndo sempre o risco de ser acusado pela direita de preconceito contra os interesses das empresas e de ser denunciado pela esquerda mais radical por "traição" aos direitos e interesses dos trabalhadores. Tanto mais num país onde o movimento sindical se encontra dominado por uma visão eminentemente conservadora das posições adquiridas e pelo preconceito maniqueísta de que tudo o que pode favorecer as empresas é necessariamente contra os trabalhadores e onde as posições do patronato são em geral tradicionalmente reaccionárias, agora doutrinariamente suportadas numa visão ultraliberal que tende a negar qualquer especificidade às relações de trabalho nem ao incontornável desequilíbrio das duas partes nessa relação.

Quando uma proposta de revisão da legislação laboral pode pretender, com bons argumentos, beneficiar simultaneamente as empresas e os trabalhadores, então é caso para dizer que se vai no bom caminho.

(Público, terça-feira, 29 de Abril de 2008)

Louvor do rotativismo 

Por Vital Moreira

Só pode ser levada à conta de boutade política a surpreendente proposta de J. Miguel Júdice para uma fusão entre o PS e o PSD, ou uma parte deste (junto com a criação de um novo partido de direita com os "restos" do mesmo PSD e do CDS). Primeiro, porque os dois maiores partidos nacionais são bem diferentes quanto à origem, fundamentos doutrinários e propostas políticas. Segundo, porque, caso tal plástica política fosse possível, daí nada de bom viria para o funcionamento do nosso sistema político, antes pelo contrário.

Não é verdade, desde logo, que o PS e o PSD digam as "mesmas coisas" e proponham as "mesmas soluções". Desde que em 1995 o PSD de Fernando Nogueira rejeitou liminarmente a criação do "rendimento mínimo garantido" até às recentes propostas de privatização da segurança social, da saúde, da educação, bem como de política fiscal, torna-se evidente que o PSD se vem transformando num partido progressivamente mais liberal e cada vez mais afastado da sua componente social-democrata originária, aliás sempre equívoca. A sua plena integração internacional no Partido Popular Europeu é bem elucidativa sobre as suas reais coordenadas ideológicas e políticas.

É certo que, entretanto, primeiro com Guterres e agora com Sócrates, também o PS se tornou mais liberal, incluindo uma convicta adesão à economia de mercado, à disciplina financeira, à competitividade económica, à eficiência do Estado e da administração pública, à iniciativa pessoal e à responsabilidade individual. Mas nada disso é incompatível com a manutenção de um genuíno compromisso com os valores tradicionais da social-democracia europeia, incluindo a responsabilidade pública no campo da educação, da saúde e da segurança social, da luta contra a pobreza e a discriminação social, da promoção da igualdade de oportunidades, enfim, de um "Estado social" avançado.

Sem mencionar outras importantes diferenças quanto a valores civilizacionais (por exemplo, a despenalização do aborto, a laicidade do Estado, o regime jurídico da família, o questão da imigração, etc.), é indesmentível que as diferenças dos dois partidos estão longe de se terem esbatido em muitos outros aspectos, sobretudo em matéria de políticas sociais. Se é certo que o PS se deslocou a caminho do centro, não é menos verdade que o PSD foi deslizando para a direita, acantonando o CDS em alguns estreitos nichos políticos. A distância entre ambos não diminuiu.

Acresce que, mesmo no Governo e forçado a políticas de rigor orçamental e de reformas da administração pública e do próprio Estado social, o PS dificilmente poderia consentir numa maior diluição das suas marcas de esquerda, não somente para não deixar mais espaço político ao PCP e ao BE, mas também para preservar a própria identidade e unidade partidária, mesmo se num quadro de saudável pluralismo interno. Por sua vez, por mais que as conveniências eleitorais possam aconselhar ao PSD algum discurso de "centro-esquerda", a verdade é que ele não deixa de ser um partido sociologicamente de direita, que não pode disfarçar voluntaristicamente as suas verdadeiras propostas políticas.

Além de descabida, uma imaginária união dos dois partidos seria altamente prejudicial para o funcionamento da nossa democracia parlamentar. Tirando pequenos períodos de crise política, que obrigaram a soluções governativas anómalas - como a coligação PS-CDS em 1978 e o governo do "bloco central" em 1983 -, o nosso sistema de governo tem assentado na alternância governativa do PS e do PSD, este por vezes coligado com o CDS.

Esse "rotativismo" entre os dois grandes partidos, um à esquerda e outro à direita do centro, tem permitido um funcionamento regular e relativamente bem sucedido do nosso sistema político. Por um lado, trata-se de partidos suficientemente diferentes para funcionarem como alternativa um ao outro; por outro lado, são partidos suficientemente próximos para que as mudanças de governo se façam sem risco de rupturas políticas imprevisíveis, como é próprio das democracias liberais estabilizadas.

Tudo isso seria fundamentalmente alterado, se esta alternância entre os dois partidos de centro-direita e de esquerda moderada fosse substituída por uma hipotética fusão de ambos num grande partido abrangente, "a cavalo" sobre a fronteira entre a esquerda e a direita, tendo à sua esquerda os dois actuais partidos existentes nessa área e à direita um novo partido liberal-conservador, unindo o CDS e a ala direita do actual PSD. Num tal quadro, o mais provável seria a criação de um regime de partido dominante, sem verdadeira alternância política e governativa, quando muito com alianças de governo, em caso de necessidade, ora à esquerda, ora, mais provavelmente, à direita. Não se vê como é que uma situação dessas poderia ser politicamente preferível à que tem prevalecido até agora.

Entre as coisas que entre nós têm funcionado melhor do que se podia temer à partida está manifestamente o sistema partidário e o sistema de governo, face à falta de implantação partidária no início do regime democrático e à adopção de um sistema eleitoral proporcional, normalmente associado à fragmentação parlamentar e à inconstância das soluções governativas, frequentemente de coligação. Para a relativa constância das soluções de governo entre nós muito tem contribuído a existência de dois grandes partidos de vocação governativa, um à esquerda, outro à direita, alternando entre si as vitórias eleitorais e as responsabilidades governativas.

Há neste momento dois factores que podem perturbar o padrão político dominante até agora, sendo um deles o crescimento dos partidos à esquerda do PS e outro o notório enfraquecimento do PSD depois do estrondoso fracasso da sua última experiência governativa. Mas nada permite admitir que o remédio para as incertezas existentes passe pelo desaparecimento do PSD, mediante a partilha dos seus despojos entre o PS e um novo partido de direita.

(Público, terça-feira, 22 de Abril de 2008)

Cuba, que caminho? 

Por Vital Moreira

As pequenas reformas anunciadas em Cuba depois da saída de Fidel Castro - incluindo o acesso a bens pessoais até agora indisponíveis e à propriedade de casas, entre outras medidas - constituirão o início de uma substancial mudança política? Faz algum sentido imaginar uma transição política naquele país num futuro próximo?

Vinte anos depois do fim do mundo comunista na Europa, Cuba permanece um esteio do "marxismo-leninismo", baseado numa economia colectivizada, na ausência de liberdades políticas e no domínio do Partido Comunista. Da tentativa reformista de 1992 - que incluiu uma extensa revisão constitucional - pouco ficou, com a recuperação do poder pelas forças mais ortodoxas. Mas o fim da liderança de Fidel Castro, o carismático líder revolucionário, pode causar uma perda significativa da capacidade de sobrevivência do regime, como sucede muitas vezes com as lideranças pessoais muito marcantes. Além disso, as persistentes dificuldades económicas do país e a incapacidade para proporcionar à população um nível de bem-estar a que muitos aspiram podem criar as condições para abalar a legitimidade social do regime.

Depois de Fidel Castro, há três vias possíveis para o desenvolvimento político de Cuba. A primeira será uma "evolução na continuidade", com pequenas aberturas e alguma liberalização, mas sem pôr em causa os fundamentos do regime, tanto no plano económico como político. A segunda será uma "via chinesa", mantendo o monopólio político do Partido Comunista, mas abrindo caminho à transformação da economia, mediante uma progressiva liberalização e privatização. A terceira será uma genuína transição democrática, através da liberalização política, da admissão de partidos políticos e da realização de eleições livres.

A evolução na continuidade é a via mais provável, pelo menos enquanto Fidel Castro for vivo. Para isso contribuem a fidelidade das forças armadas à Revolução, a fragilidade dos meios oposicionistas (aliás, predominantemente direitistas), o sentimento de resistência ao "cerco imperialista" que o contraproducente embargo dos Estados Unidas alimenta. Alguns passos de abertura controlada no campo económico e mesmo no campo político podem ser ensaiados, para aliviar tensões e melhorar o desempenho económico. Mas, à imagem do que sucedeu em Portugal com a "abertura marcelista" depois de Salazar, o mais provável é que se verifique uma retracção logo que se perfile alguma ameaça séria à segurança do regime.

Uma evolução à chinesa - ou seja, comunismo político mais capitalismo económico - não é de excluir, mesmo que pouco provável. Por um lado, uma reforma económica no sentido de um "socialismo de mercado" poderia resolver as enormes carências no campo do abastecimento de alimentos e de bens de consumo duradouros. Por outro lado, porém, uma tal saída suporia um pragmatismo político e ideológico da liderança cubana que a realidade presente não deixa esperar. A mitologia revolucionária do "socialismo cubano" e os seus êxitos no campo da educação e da saúde, entre outros, bem como a dogmática marxista-leninista continuam a ter um peso muito forte.

Uma genuína transição liberal-democrática pode ser a evolução menos previsível, mas não deixa de ser uma possibilidade real. Como mostrou o desmoronamento do comunismo no Leste europeu e na Rússia, há duas décadas, a aparência de solidez do regime e impotência da oposição não são garantias contra a derrocada, desde que as condições económicas e a legitimidade social do regime se degradem excessivamente. Excluída a hipótese de um golpe de Estado - dado o firme controlo das forças de segurança e das forças armadas -, uma transição política em Cuba pode ocorrer por uma de duas vias. Ou por uma mudança a partir de dentro, desencadeada por sectores reformistas do regime, depois aberta à oposição (à maneira da transição espanhola nos anos 70); ou por uma súbita implosão política, provocada por uma faísca inesperada (por exemplo, uma manifestação de protesto social), num ambiente político ou social de fim de regime, à maneira do Leste europeu.

Obviamente, sendo uma questão a decidir pelos cubanos eles mesmos, a transição democrática em Cuba depende também do ambiente externo, a começar pelo ambiente regional. A situação na América Latina é hoje bastante mais propiciatória de uma mudança em Cuba do que no passado. Tendo vários países passado por uma transição democrática a partir de regimes autoritários de direita, o novo panorama político regional pode ter um positivo efeito de demonstração de que a alternativa ao regime comunista em Cuba não é o regresso a uma ditadura de direita tradicional nem a um capitalismo de miséria (como no vizinho Haiti), podendo antes ser uma democracia politicamente bem sucedida e socialmente progressista, como sucede em vários países do continente.

Não pode ignorar-se também o papel que podem ter os Estados Unidos e a União Europeia. Os primeiros, depois de alijarem a estrambótica tese do perigo de Cuba para a sua segurança, podiam finalmente abandonar também a sua política de embargo ao país e de apoio à emigração de cubanos, dado que o primeiro só tem dados argumentos políticos internos ao regime e a segunda só tem servido de válvula de segurança política e social, aliviando o descontentamento interno. Por sua vez, a UE pode e deve intensificar a sua pressão contra a repressão política em Cuba e de apoio à promoção da abertura democrática no país.

Será um truísmo afirmar que a transição política em Cuba é só uma questão de saber quando virá e em que condições. Sucede que os seus sinais ainda não estão à vista e que as condições para a mudança ainda parecem longe de estar reunidas. Muitas vezes, porém, as grandes mudanças políticas não se fazem anunciar. Quem sabe?

(Público, terça-feira, 15 de Abril de 2008

Não há países grátis 

Por Vital Moreira

Para além de algumas inconstitucionalidades, o novo estatuto político-administrativo dos Açores, há dias aprovado na generalidade na Assembleia da República, contém manifestos excessos políticos, que não deveriam prevalecer. A autonomia regional não pode sobrepor-se sem limites aos interesses gerais da República.

Antes de mais, na proposta vinda da assembleia regional dos Açores avultam duas noções que inquinam politicamente todo o exercício, a saber a ideia do "adquirido autonomista" e a ideia da "autonomia progressiva". A primeira visa obviamente estabelecer uma espécie de "irreversibilidade das conquistas autonómicas", o que em si mesmo não seria muito grave se ela não visasse manifestamente abranger o actual regime financeiro da região, o qual, porém, só se compreende enquanto o desenvolvimento dos Açores se mantiver abaixo da média nacional. Por sua vez, a noção de "autonomia progressiva" procura manter permanentemente em aberto e sob tensão a questão regional, sem fim e sem limite à vista, o que é incompatível com a unidade do Estado.

Outro aspecto politicamente muito delicado, até pela sua duvidosa constitucionalidade, é a insistência num círculo eleitoral exterior ao território regional, alegadamente para incluir as pessoas com "dupla residência". Mas é evidente que, se elas têm uma efectiva residência nos Açores, devem votar nos círculos internos correspondentes, e não num fictício círculo da residência exterior, que não passa de uma descarada tentativa de criação de um conceito de "açorianidade" política extraterritorial (uma "nação açoriana"), que não é compatível com a noção de autonomia regional.

Também não pode merecer aprovação a possibilidade de delegação de atribuições do Estado e de serviços públicos nacionais no Governo regional. A verdade é que quase toda a administração pública já foi regionalizada há muito, sendo poucos os serviços estatais remanescentes das regiões (serviços judiciais, Forças Armadas, forças de segurança, instituições de ensino superior e pouco mais). Por isso, não se vê bem que serviços públicos estatais é que poderiam ser delegados ao governo regional. Além disso, só um propósito de expulsar o Estado da região é que pode justificar a transferência desses últimos esteios da administração nacional. Por último, seria de todo inaceitável que o Estado transferisse a gestão desses serviços, mantendo o encargo financeiro com os mesmos. Seria o melhor de dois mundos: regionalização de competências sem regionalização dos encargos!

Uma objecção ainda maior tem a ver com a norma que faz recair sobre o Estado a responsabilidade pela garantia universal das prestações públicas em caso de "incapacidade regional". Na verdade, as regiões autónomas beneficiam de todas as receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, não contribuindo, aliás, para as despesas gerais da República. O orçamento do Estado suporta ainda não somente os encargos com os serviços nacionais subsistentes nas regiões, alguns dos quais bem dispendiosos - como as Forças Armadas, as polícias e os tribunais -, mas também volumosas transferências adicionais para as regiões, a vários títulos. Seria por isso politicamente inaceitável que a região, por má utilização dos seus recursos financeiros ou pelo seu desvio para outros fins, viesse reclamar da República a garantia, por exemplo, de prestações de saúde ou de prestações de segurança social.

Acresce a estes (e outros) excessos políticos a existência de duas importantes lacunas, que a evolução autonómica tem evidenciado cada vez mais, tanto nos Açores como na Madeira.

A primeira falha diz respeito à ausência de uma obrigação de as regiões implementarem as leis da República no seu território. A questão da não-aplicação inicial da lei da IVG na Madeira tornou muito claros os riscos de não acatamento das leis nacionais no território regional, quanto elas dependem da sua execução pelos serviços regionais (já que quase toda a administração se encontra regionalizada).

A segunda falha tem a ver com as extraordinárias regalias financeiras das regiões, acima referidas. Ora, apesar disso, elas não contribuem para as despesas gerais da República (como, por exemplo, as despesas com as Forças Armadas e forças de segurança, com os órgãos de soberania, incluindo os tribunais, com as quotas devidas às organizações internacionais, desde a ONU à União Europeia), as quais são suportadas somente pelo Orçamento do Estado (ou seja, do continente). Ora, esta situação podia aceitar-se quando as duas regiões insulares eram as mais pobres de Portugal. Já não é assim, como se sabe, pois a Madeira é uma das regiões do país com maior PIB per capita e os Açores já estão acima de algumas regiões do continente, podendo alcançar dentro em pouco a média nacional. Sendo assim, nada justifica aquele bónus das regiões autónomas, que é uma sobrecarga injustificada sobre os contribuintes do continente. Além de financeiramente insustentável, essa isenção tornou-se politicamente imoral.

Continua a prevalecer nas regiões autónomas, sem grandes diferenças entre elas e entre as diversas forças políticas regionais, o entendimento de que elas só têm direitos e nenhumas obrigações, de que a "solidariedade nacional" é de sentido único e de que, visto das ilhas, o país não custa dinheiro e que o continente terá de continuar a ser sempre uma cornucópia para as regiões autónomas, por mais ricas que elas se tornem. Há dias, um conhecido porta-voz separatista madeirense afirmava provocativamente que "quem quer ilhas paga-as". Antes que um número crescente de portugueses se comece a interrogar sobre se o elevado preço se justifica, é caso para lembrar que não há países grátis e que os seus custos comuns devem ser suportados por todos, a começar pelos que gozam, ou estão em vias de gozar, de riqueza acima da média nacional.

(Público, 8 de Abril de 2008)

Justa reposição 

Por Vital Moreira

A par de uma generalizada aprovação, a descida do IVA anunciada na semana passada foi recebida com algumas críticas, ora quanto à oportunidade de redução fiscal nesta altura, ora quanto à escolha daquele imposto, e não de outro, ora quanto aos seus riscos no plano orçamental. No entanto, há bons argumentos para sustentar que se tratou de uma decisão oportuna, justa e responsável.

Foi, em primeiro lugar, oportuna a decisão de aliviar nesta altura a carga fiscal, ainda que marginalmente, dado que o processo de reequilíbrio orçamental, que motivou a subida de impostos em 2005 (em particular o IVA), pode agora prescindir sem riscos dessa sobrecarga fiscal, sem adiamentos desnecessários. Ora, a publicação dos excelentes números do exercício orçamental de 2007 (com o défice historicamente baixo de 2,6 por cento) e o conhecimento da confortável execução orçamental dos primeiros meses do corrente ano revelaram que já se podia reduzir o imposto, pois o caminho para o equilíbrio orçamental pode prosseguir com segurança mesmo com o inerente corte nas receitas fiscais. Além disso, o alívio fiscal é especialmente bem-vindo nas actuais circunstâncias, para contrariar os receios de arrefecimento económico que a crise financeira norte-americana pode induzir.

Em segundo lugar, foi acertada a opção pela redução do IVA, em vez de descidas do IRC ou pelo IRS, como alguns preconizaram. Desde logo, tendo sido esse o imposto que mais subiu em 2005 como "medida de necessidade" para ajudar a sanear as finanças públicas, deve ser ele a descer, logo que esse objectivo esteja no essencial alcançado. Trata-se ao fim e ao cabo de reposição da situação anterior às medidas excepcionais, fazendo diminuir desde já a sobrecarga então imposta a todos os contribuintes. Acresce que só a descida do IVA beneficia directa e imediatamente toda a gente (e relativamente mais os que têm menores rendimentos), pois a descida do IRC só beneficiaria directamente os empresários e o IRS também não é universal, pelo que a sua descida deixaria de fora da "recompensa" justamente os titulares de menores rendimentos. Além disso, dada a assimetria com o IVA espanhol, impunha-se a descida desse imposto, para atenuar o fosso existente e diminuir a desvantagem do comércio português nas zonas de fronteira.

Por último, trata-se de uma opção responsável, na medida em que, ao prescindir das receitas de um por cento do IVA (cerca de 500 milhões de euros por ano), o Governo torna mais exigente e menos confortável a sua tarefa de redução do défice público, obrigando-se a maior focagem na contenção das despesas. Ora, o anúncio da redução do IVA foi acompanhado também da revisão em baixa da meta do défice orçamental do corrente ano, de 2,4 por cento para 2,2 por cento, mostrando que o programa de equilíbrio orçamental mantém as suas metas, porventura a um ritmo menos estugado do que até aqui, justamente porque se ganhou um ano no programa, em virtude do assinalável sucesso alcançado, tanto na arrecadação de receita como na redução relativa da despesa pública.

As críticas da descida do IVA privilegiaram ainda dois outros argumentos de distinta natureza e de desigual valor. Por um lado, desvalorizou-se o impacto real da pequena redução do imposto, chegando a dizer-se que os consumidores não vão ser de nenhum modo beneficiados. Por outro lado, procurou-se deslegitimar politicamente essa medida, acusando-a de "eleitoralismo".

Quanto ao primeiro argumento, é evidente que a redução de um por cento no IVA pouco impacto tem, em termos absolutos, nas compras de bens e serviços de pequeno valor, mas já não é assim nas aquisições de maior valor, como, por exemplo, roupa, electrodomésticos, automóveis ou viagens. Por outro lado, também não é convincente o argumento de que os fabricantes e comerciantes vão apropriar-se integralmente da descida do imposto, não o repercutindo na redução dos preços ao consumidor final. De facto, não é preciso ter fé numa qualquer "teologia do mercado" para defender que, havendo genuína concorrência nos mercados de bens e serviços, a redução do imposto não pode deixar de levar a uma tendencial baixa dos preços, mesmo que aquém daquela. A não ser que se verifiquem situações de concertação dos agentes económicos ou abusos de posição dominante, que permitam interferir artificialmente na redução dos preços. Mas aí já estaríamos perante atentados directos às regras da concorrência, do foro da Autoridade da Concorrência.

Quanto ao segundo argumento, o do "eleitoralismo", peça banal do debate político, é fácil ver a sua inconsistência. Primeiro, trata-se de medidas políticas tomadas a um ano e meio das eleições, ou seja, quando ainda há um terço da legislatura para correr. Segundo, seria eleitoralmente mais rendoso adiar a descida do IVA para um momento mais próximo das eleições, com a vantagem de entretanto o Governo continuar a beneficiar da receita que agora perde, e que permitiria fazer mais umas "flores de política social" daqui a um ano ou até dar folga financeira para uma descida mais acentuada do imposto. Em terceiro lugar, é irónico que a acusação de eleitoralismo seja utilizada por quem, na oposição, já tinha anunciado a apresentação de uma proposta de baixa de impostos, incluindo o IVA, no orçamento do próximo ano, ou seja, no ano das eleições!

Sendo comportável pela situação orçamental, a redução do IVA é sempre uma medida virtuosa, dada a natureza socialmente regressiva desse imposto, ainda para mais quando se trata de retribuir uma subida motivada por razões transitórias de crise orçamental, como sucedeu há três anos. Por isso, o IVA deveria ser reduzido pelo menos para os 19 por cento (valor de 2005) logo que haja uma consistente folga adicional na redução do défice orçamental. Só assim haverá reposição da situação anterior, como é devido.

Público, 1 de Abril de 2008

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