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31 de julho de 2008

A fortuna da V República 

Por Vital Moreira

Faz hoje 50 anos iniciava-se a preparação da Constituição da V República francesa, que viria a ser promulgada a 4 de Outubro desse ano de 1958. Uma Constituição com meio século é sempre um fenómeno digno de registo, sobretudo em França, onde a longevidade constitucional não era norma. Além disso, a Constituição de 1958 tornou-se um caso de sucesso político.

Nomeado chefe do Governo em Junho de 1958, o general De Gaulle não tardou a pôr termo à instável IV República (saída do pós-guerra, com base na Constituição de 1946), que se esgotara em menos de uma dúzia de anos. A nova Constituição, elaborada sob sua directa supervisão, seria aprovada mediante referendo popular directo em Setembro desse mesmo ano.

Eleito como primeiro Presidente da República da nova era constitucional por um colégio eleitoral alargado, tal como previsto na versão originária da Constituição, o mesmo De Gaulle fará modificar a Constituição logo em 1962, de novo por via de referendo (aliás, sem base constitucional), para estabelecer a eleição presidencial por sufrágio directo. A Constituição de 1958 alcançava assim a sua maturidade, sobrevivendo sem problemas à saída do seu inspirador (demissão de De Gaulle em 1969) e à eleição do primeiro Presidente socialista (Mitterrand, 1981), cujo partido sempre combatera a "Constituição gaullista".

No que respeita à organização do poder político, as principais características da Constituição da V República são a eleição directa e o papel proeminente do chefe do Estado e o reforço da posição do governo perante o Parlamento. Um terceiro traço político identificador da V República, embora sem expressão constitucional, é o sistema eleitoral maioritário a duas voltas, que modelou o sistema partidário e promoveu a bipolarização entre a esquerda e a direita política.

Claramente influenciada pela Constituição alemã de Weimar (1919), no que respeita ao compromisso entre o regime parlamentar e uma posição forte do Presidente da República, dotado de legitimidade eleitoral directa, a Constituição de 1958 assumiu expressamente uma lógica dualista a nível do "poder executivo", conferindo ao Presidente não somente um papel de arbitragem institucional, à maneira de um "quarto poder" moderador, mas também de intervenção na função governativa, incluindo a condução da política externa e da política de defesa. Ressalvados os breves períodos de "coabitação" entre maioria parlamentar e maioria presidencial de sinal político diferente, o Presidente da República é o verdadeiro chefe da maioria governamental e o orientador do poder executivo, sendo o primeiro-ministro apenas uma espécie de "oficial às ordens", funcionando como interface e como almofada entre o Presidente e o Parlamento.

Foi na base do sistema francês que se constituiu a noção do chamado "semipresidencialismo". Mas na sua versão francesa, e fora dos excepcionais períodos de "coabitação", o semipresidencialismo é uma forma de hiperpresidencialismo, em que o Presidente tem todos os poderes do Presidente dos Estados Unidos - ou seja, a chefia do poder executivo, directamente ou por interposto primeiro-ministro -, mas sem a separação de poderes típica do genuíno presidencialismo, pois o Presidente francês tem o poder discricionário de dissolução parlamentar e não está sujeito a impugnação parlamentar, como sucede no presidencialismo tradicional, sendo o Presidente praticamente irresponsável, incluindo na esfera penal. Para cúmulo, durante muito tempo o mandato presidencial era de sete anos e não havia limite de mandatos.

Apesar do seu exotismo originário no panorama das democracias parlamentares europeias, o modelo da V República veio a ter uma fortuna que inicialmente poucos poderiam augurar. Primeiro, na modelação constitucional de muitos países da África francófona, cuja independência ocorre justamente no inícío da V República; depois, em Portugal, em 1976, e por via da Constituição portuguesa, na formatação constitucional dos países africanos lusófonos, após a sua transição democrática no inícío dos anos 90; e finalmente, nos anos 90, em vários países do Leste europeu, incluindo a Polónia e a Rússia, que adoptaram também esse mix institucional de dupla representatividade eleitoral e de dupla responsabilidade governamental.

Tendo sido alterada muitas vezes, quase sempre de forma pontual, a Constituição da V República acaba de ser mais uma vez revista, desta feita de forma extensa, dando execução a um compromisso político do presidente Sarkozy. Sem muitas mudanças substanciais, a revisão constitucional veio, porém, introduzir alguma moderação no excessivo "governamentalismo" e "presidencialismo" constitucional. Desta perspectiva são de assinalar, entre outras, a limitação dos mandatos presidenciais (dois mandatos), o maior controlo dos poderes presidenciais excepcionais, a redução do recurso governamental à moção de confiança para fazer passar leis sem votação parlamentar, a moderação do comando governamental da agenda parlamentar, o reconhecimento de alguns direitos parlamentares aos partidos da minoria.

Apesar da oposição sectária do Partido Socialista francês, o balanço global da revisão traduz-se numa atenuação relativa dos superpoderes do governo e do Presidente face ao Parlamento, reduzindo a ostensiva marca antiparlamentar que caracterizava o guallismo constitucional originário. Se se acrescentarem outras mudanças, como a criação de um "provedor dos direitos" e a admissão da "excepção de inconstitucionalidade" contra qualquer norma numa causa judicial (fiscalização concreta da constitucionalidade), então teremos de concluir que se verificou um razoável ganho em termos de democracia parlamentar e de Estado de direito em França.

Ao longo deste meio século não foram poucos os que preconizaram uma nova Constituição e uma VI República. A nova revisão constitucional nos 50 anos da Constituição de 1958 mostra que a V República está bem viva e se recomenda.

(Publico, 3ª-feira, 29 de Juhlo de 2008)

30 de julho de 2008

Carências artificiais 

Por Vital Moreira

Parece provado que o SNS padece de escassez de médicos em diversas áreas, quer por défice na sua produção desde há muito tempo, quer por efeito da recente migração para o sector privado. Mas se o primeiro factor não tem solução a curto prazo, já o segundo não tem de ser aceite passivamente sem medidas activas de contenção.

Antes de mais, há que desconfiar da dimensão da escassez, tal como é apresentada. Os rácios de médicos no SNS são comparativamente razoáveis, porém com níveis de produtividade e de eficiência em muitos casos bem abaixo dos melhores exemplos estrangeiros, e até nacionais. A recente demonstração de que os crónicos atrasos nos serviços de oftalmologia do SNS afinal podem ser supridos com a "prata da casa", mediante adequadas medidas organizatórias e remuneratórias, revela que a história da escassez de médicos, embora real, é propositadamente exagerada em alguns casos, nem sempre sem segundas intenções.

Quanto ao real défice de médicos, estamos a pagar há vários anos a malvada contingentação das vagas nos cursos de Medicina nos anos 80 e 90, que ministros e universidades irresponsavelmente conceberam e executaram. Apesar da correcção iniciada há uma década, com a criação de duas novas faculdades e a progressiva ampliação do "numerus clausus", que vem até hoje, as vagas continuam a ser comprovadamente insuficientes para as futuras necessidades do sector, tanto mais que se mantêm longos períodos de formação pós-graduação. Neste ponto, portanto, só resta continuar a apostar na importação de médicos - o que desde há muito sucede com os médicos espanhóis -, um bem que todavia não abunda em muitos lados.

Por último, não há nenhuma razão para facilitar a saída de médicos para o sector privado. Cabendo ao SNS a responsabilidade da formação médica, é perfeitamente justificável não somente a exclusividade com horário prolongado durante o internato - até para não obnubilar, logo no início da carreira, a necessária cultura de separação de interesses entre o público e o privado (mesmo que à custa de algum aumento de remuneração) -, mas também a imposição de um período razoável de vinculação ao sector público após a conclusão do internato, como compensação da formação adquirida e dos respectivos encargos. Não é aceitável que o SNS forneça gratuitamente médicos especialistas ao sector privado, sem nenhuma contrapartida dos beneficiários, ou seja, os médicos e as empresas privadas.

Apesar da evidência funesta da contingentação artificial dos cursos médicos e afins, há quem continue a defendê-la -, aliás, sempre os mesmos. O presidente da Ordem dos Médicos acha suficiente o actual número de vagas - o que os dados existentes não confirmam - e opõe-se ao seu aumento, para não pôr em causa o futuro emprego dos médicos. Mais radical é o bastonário da Ordem dos Dentistas, que invoca um suposto excesso de profissionais para propor mesmo a redução das actuais vagas, alinhando assim com a generalidade dos demais responsáveis pelas organizações profissionais.

É natural (sem por isso ser aceitável) a tentação das profissões organizadas para restringirem o acesso às mesmas e para levantarem barreiras à entrada, seja a pretexto de garantir a qualidade dos serviços profissionais, seja para assegurar o emprego a todos. Podendo fazê-lo, ninguém abdica de limitar a oferta, para desse modo ter procura garantida e remuneração mais elevada, pois onde a oferta é rarefeita, os preços necessariamente sobem. Não é por acaso que em Portugal, apesar do menor poder de compra comparado, os preços dos serviços de saúde privados, a começar nas consultas, são mais elevados do que em vários outros países mais ricos. A explicação está principalmente na escassez da oferta e na míngua de concorrência.

Todavia, a contingentação do acesso às profissões médicas não gera somente escassez de profissionais e preços mais elevados, que condicionam a gestão financeira dos serviços de saúde públicos e reduzem a procura de cuidados de saúde privados. Está em causa também a liberdade individual de escolha de profissão, que é um direito fundamental constitucionalmente garantido e que não deveria ser restringido por razões alheias à capacidade e à opção dos interessados.

Até se pode admitir (e a Constituição nem sequer proíbe) que o Estado não queira financiar mais alunos de Medicina do que os previsivelmente necessários, de acordo com estudos de prospectiva credíveis, tanto mais que esses cursos são os mais caros e o Estado suporta quase inteiramente os respectivos custos, dada a exiguidade das propinas. Todavia, mesmo que assuma essa opção - o que, de resto, não tem sucedido noutros cursos -, nada autoriza o Estado a vedar o acesso a esses cursos a quem tenha condições para o fazer e esteja disposto a suportar os respectivos custos, seja em universidades públicas (desde que tal opção exista), seja em universidades privadas.

Não se compreende a espécie de tabu, ou simples preconceito, que existe entre nós contra a admissão de cursos privados de Medicina, caso único no panorama português do ensino superior. É certo que há alguns anos uma comissão "ad hoc" reprovou todas as candidaturas então existentes, por alegada falta de qualidade. No entanto, independentemente de saber se não foi utilizada uma grelha demasiado exigente, que teria chumbado qualquer outro curso privado em qualquer área, não é de excluir a possibilidade de agora poder haver candidaturas mais consistentes.

Não há nenhuma razão para pensar que não existe uma única instituição privada em condições de criar e sustentar um curso decente de Medicina, sem perder, antes pelo contrário, na comparação com os cursos médicos que muitos jovens portugueses hoje pagam no estrangeiro, desde a Espanha e a República Checa até ultimamente à República Dominicana, como foi recentemente noticiado!

(Publico, 3ª-feira, 15 de Julho de 2008)

26 de julho de 2008

Um voto de vencido 

Como documento de apoio a este meu post do Causa Nossa, sobre a vigilância especial da GNR sobre os nómadas, eis a transcrição do meu voto de vencido no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 452/89, publicado no Diário da República de 22 de Julho de 1989:

«1 - Votei a alínea A) da decisão, em que se declara a inconstitucionalidade de parte do n.º 2 do preceito em questão [que permitia a livre entrada da GNR nas caravanas], por infracção da garantia da inviolabilidade do domicílio; mas fiquei vencido quanto à alínea B), que não declarou a inconstitucionalidade dos vários números do preceito (incluindo o n.º 2) [que estabelece a vigilência especial sobre os nómadas], por violação do princípio da igualdade.

Na minha opinião, verifica-se tal inconstitucionalidade, pois as normas em questão estabelecem uma discriminação de tratamento constitucionalmente infundada, visto que, no meu entendimento (contrariamente ao do acórdão), elas visam especificamente os ciganos nómadas e não se mostra haver justificação razoável para o concreto regime de desigualdade instituído pelas normas que se encontram sujeitas a controlo de constitucionalidade.

2 - O regime de «especial vigilância» da GNR previsto no artigo 81.º da parte III do Regulamento daquela força de segurança incide sobre «grupos e caravanas de pessoas que habitualmente se deslocam de terra em terra fazendo comércio, participando em feiras ou desenvolvendo outras actividades próprias da vida itinerante» (n.º 1 do referido preceito).

O elemento diferenciador deste regime relativamente ao regime geral da vigilância do comum dos cidadãos pela GNR é, assim, aparentemente, o modo de vida itinerante próprio dos nómadas em geral, independentemente de qualquer especificação.

Mas uma análise mais detida do «programa normativo» do preceito logo mostra que ele visa atingir especificamente os ciganos. Desde logo, é fácil ver que o preceito só abrange os nómadas que vivem e se deslocam em grupo e que têm nisso o seu modo de vida habitual (é o que se deduz claramente da expressão introdutória da norma, que fala em «grupos e caravanas de pessoas que habitualmente se deslocam de terra em terra»). Ficam assim excluídos os errantes individuais ou que se reúnem em grupos ocasionais, bem como os nómadas eventuais.

Ora, em Portugal, quem diz grupos nómadas diz essencialmente ciganos. Para além desses, só poderia integrar-se naquela categoria, não sem alguma dificuldade, a gente dos circos, que também se desloca em caravana, isto é, em comboio ou fila, que é o sentido tradicional desse termo (o que, registe-se, já não ocorre com a generalidade dos demais feirantes itinerantes). Sucede, porém, que existem no preceito elementos que inequivocamente pressupõem que os grupos nómadas que na ocorrência se têm especialmente (se não exclusivamente) em vista são as comunidades ciganas, como mostra a parte final do n.º 2, quando refere «os principais chefes dos grupos». É evidente que esta referência só pode valer para as comunidades ciganas, com as suas estruturas de hierarquia e chefia comunitárias próprias, que não possuem qualquer correspondência nas restantes categorias de nómadas.

Por conseguinte, as categorias de pessoas submetidas ao referido regime de «especial vigilância» da GNR continuam a ser as mesmas a que se dirigiam os artigos 182.º a 185.º do Decreto n.º 6950, de 1920, a seu tempo declarado inconstitucional, por violação do princípio da igualdade. Não se deu qualquer modificação no campo de incidência do regime especial para certos grupos humanos definidos pelo seu modo de vida tradicionalmente errante. Neste aspecto, a alteração foi de ordem meramente formal: antes, os ciganos eram a categoria referencial à qual se equiparavam expressamente todos os nómadas aparentados (artigo 182.º e § único do Decreto n.º 6950); agora, são os nómadas o conceito omnicompreensivo de todas as gentes errantes, conceito que, todavia, na sua formulação concreta no preceito em causa, abrange em primeira linha, especificamente, os grupos nómadas de ciganos, como se mostrou acima. A não referência expressa aos ciganos ter-se-á devido, principalmente, a um propósito de tentar tornear as previsíveis objecções de inconstitucionalidade, tendo em conta a declaração de inconstitucionalidade das correspondentes normas do Regulamento de 1920.

Mas, mesmo limadas as arestas mais agudas desse regime e evitadas referências expressas aos ciganos, é demasiado flagrante a identidade do actual regime quanto ao seu «programa normativo», que, de resto, se denuncia em várias formulações idênticas ou aproximadas. Por mais que se sustente que há mais nómadas além dos ciganos - como o acórdão se esforça por mostrar -, tem-se por incontestável que são os grupos nómadas ciganos que o Regulamento da GNR tem em mente e que, não fora pelos ciganos, seguramente não existiria tal norma, pois, como se mostrou, para além deles só poderiam acrescentar-se grupos em número relativamente irrelevante (gente do circo) e aos quais - o que é mais importante - a consciência popular vulgar não liga nenhum juízo de perigosidade criminal que «justificasse» um regime de vigilância policial agravada.

Agora, como antes, a razão de ser do estabelecimento de um regime de «vigilância especial» policial radica na ideia preconcebida (culturalmente ainda enraizada) de que os ciganos, sobretudo quando nómadas, são delinquentes potenciais, por atavismo rácico ou idiossincrasia étnica. Ora, como se demonstrou no parecer n.º 14/80 da antiga Comissão Constitucional (Pareceres, vol. 12) - que fundamentou a referida declaração de inconstitucionalidade das normas afins do Regulamento de 1920 -, a discriminação em função do modo de vida errante dos ciganos, enquanto tais, não tem um fundamento material razoável, já que assenta tão-só num juízo de suspeição dirigido a certos grupos de pessoas pelo facto de viverem segundo determinados usos e costumes que lhes são próprios - em termos de tradições étnicas e culturais - e que merecem ser havidos como legítimos numa sociedade aberta ao pluralismo de concepções e práticas de vida, em que aqueles usos e costumes, ainda que socialmente heterodoxos, não são, todavia, censuráveis como comportamentos «desviantes» e muito menos podem ter-se por ilícitos ou, sequer, apenas como penalmente «tolerados».

Refira-se, aliás, que entre os princípios constantes da Recomendação R (83) 1 do Comité dos Ministros do Conselho da Europa figura o da não discriminação relativamente às pessoas tradicionalmente habituadas a um modo de vida itinerante, devendo os Estados membros abster-se, no direito e na prática aplicáveis à circulação e à residência destas pessoas, de qualquer medida conducente a uma discriminação fundada sobre o seu modo de vida. Já anteriormente, através da Resolução (75) 13, o mesmo Comité de Ministros havia recomendado aos Estados membros a adopção de todas as medidas necessárias para pôr fim a quaisquer formas de discriminação contra as populações nómadas, no seguimento da Recomendação 563 (1969) da Assembleia Consultiva do Conselho da Europa, que referia a existência de uma situação de «discriminação contra os ciganos, devida à sua pertença a um grupo étnico particular, que é incompatível com os ideais próprios da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da Declaração dos Direitos do Homem das Nações Unidas», e preconizava as medidas a tomar para pôr fim a tal situação.

A discriminação em função da raça está expressamente proibida no artigo 13.º, n.º 2, da CRP. Mas, mesmo que se entendesse que o motivo da discriminação contra os ciganos não é propriamente a sua raça (visto não se abrangerem os ciganos sedentários), mas sim o seu modo de vida errante, conforme às suas tradições culturais, a verdade é que é unanimemente entendido que a enumeração dos motivos de não discriminação constantes do n.º 2 do artigo 13.º da Constituição é meramente enunciativa. A este propósito, pode ler-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 203/86 (Diário da República, 2.ª série, n.º 195, de 26 de Agosto de 1986):

Ao quadro do n.º 2 do artigo 13.º, dado o seu carácter simplesmente indicativo, terão por força de ser acrescentados [...] quaisquer outros motivos que, na perspectiva dos direitos considerados, se revelem, em análise objectiva da situação comparativa, irrazoáveis e arbitrários.

Ter-se-á, pois, de concluir que, inexistindo elementos objectivos razoavelmente justificativos de uma discriminação negativa contra os ciganos nómadas, o artigo 81.º do Regulamento em causa, que os submete a um especial regime de vigilância policial, viola o princípio da igualdade, garantido no citado preceito da lei fundamental.

3 - Intenta o acórdão demonstrar que o regime de «especial vigilância» dos nómadas - conceito que na concepção que fez vencimento não se refere especificamente aos ciganos - se justifica por se tratar de situações de «perigosidade social» ou de «pré-criminalidade» ou de «perigosidade criminal que os nómadas por onde passam, e em maior ou menor grau, quase sempre suscitam». E em defesa desta tese aduz que o mesmo Regulamento da GNR prescreve regimes de «especial vigilância» para outras situações de similar «perigosidade social», o que mostraria que não se verifica nenhuma discriminação ou tratamento desigual dos nómadas.

Independentemente de, à partida, não se poder compartilhar da concepção que faz dos nómadas em geral factores de «perigosidade social», de «pré-criminalidade» ou de «perigosidade criminal», há que dizer que o regime de «especial vigilância» previsto para os nómadas não é equiparável ao das demais situações de «especial vigilância» previstas no mesmo Regulamento da GNR.

É que, por um lado, na maior parte dos casos elencados no acórdão, trata-se de vigilância» especial não sobre certas pessoas, mas sim sobre certos locais (pontos e instalações «sensíveis», incluindo certas povoações, arraiais, mercados e feiras, praias, locais de convívio da juventude e imediações de estabelecimentos de ensino, festas e locais similares), e com objectivos concretos e determinados (v. g., «garantir a ordem pública e a livre circulação de pessoas e viaturas» nas feiras e mercados, «prevenir roubos e outros crimes» nas praias, prevenir o tráfico e o consumo de droga nos locais de convívio da juventude, reprimir os jogos ilícitos nas festas, feiras e romarias). Não estão, pois, em causa certas categorias ou grupos particulares de pessoas, como sucede com os ciganos, nem a vigilância» visa um certo modo de vida em geral.

O único dos casos mencionados em que o objecto da «especial vigilância» é também uma certa categoria de pessoas ou um específico «modo de vida» é o dos «mendigos e vadios» (artigo 82.º), a que se poderia ter acrescentado também o das «prostitutas» (artigo 83.º).

Ora, sucede, justamente, que todas essas situações - mendicidade, vadiagem e prostituição - eram tradicionalmente consideradas como situações ilícitas, estando expressamente previstas no antigo Código Penal como situações de perigosidade (artigo 71.º), susceptíveis de aplicação de medidas de segurança (artigo 70.º). A despenalização desses factos pelo actual Código Penal (de 1982) não terá eliminado (e, antes, terá reforçado) a justificação para a vigilância» policial particular dessas situações «associais». Tais situações, porém, são essencialmente distintas da do nomadismo, pois esta, ao contrário daquelas, não é tradicionalmente considerada ilícita nem se contava entre os estados de perigosidade susceptíveis de aplicação de medidas de segurança. Quer isto dizer, em conclusão, que não se dá por demonstrada a alegada «conexão comum» que no acórdão se estabelece entre a «especial vigilância» sobre os grupos nómadas e as demais situações de vigilância» especial previstas no mesmo Regulamento da GNR.

Acresce que, no caso em apreço - o do artigo 81.º, relativo aos nómadas (que, repita-se, no meu entender, visa especificamente os ciganos) -, a norma particulariza alguns elementos da referida «especial vigilância» designadamente «buscas e revistas», identificação dos «principais chefes dos grupos» (n.º 2), identificação e comunicação do destino das deslocações dos grupos (n.º 3); destas medidas especiais de vigilância foi declarada inconstitucional, por violação do artigo 34.º da Constituição, apenas a das buscas nas habitações dos grupos nómadas.

Ora, mesmo que, na lógica do acórdão, fosse de considerar razoável a existência de um regime de «especial vigilância» policial sobre os ciganos (e outros nómadas), sempre haveria de verificar se a «perigosidade criminal» que o acórdão imputa aos ciganos (e aos demais nómadas) justifica aquelas particulares formas de vigilância policial. É que, mesmo que fosse legítimo aplicar aqui o princípio «para-situações-desiguais-tratamento desigual», sempre haveria que verificar se - estando em causa (como está) um tratamento desfavorável - ele não ultrapassará desmedidamente aquilo que a alegada desigualdade de situações justificaria ... - Vital Moreira».

11 de julho de 2008

Intervenção sobre a pena de morte nos EUA e o caso de Troy Davis na Plenária do Parlamento Europeu, Estrasburgo, 10 de Julho de 2008 

Senhor Presidente, o primeiro dos direitos humanos é o da inviolabilidade da vida. A pena de morte é o mais insolente dos desdéns à dignidade, à civilização e ao progresso. Neste instante, neste exacto minuto em que respiramos e falamos livremente, há um homem fechado numa cela, Troy Davis, que vive contando os minutos que lhe restam de vida. Ele está há mais de 15 anos no corredor da morte e sempre negou ter cometido o crime de que foi acusado. Parte dos que testemunharam contra ele desmentiram ou apresentaram contradições nos seus depoimentos, obtidos mediante pressão policial. Neste caso não existem provas claras, objectivas e convincentes. A aplicação da pena de morte a Troy Davis, pelas autoridades do Estado da Geórgia, é totalmente contrária à moratória à pena de morte aprovada no passado mês de Dezembro pela Assembleia Geral das Nações Unidas.
Embora não seja legalmente penalizante, esta moratória carrega um enorme peso moral e político. Cabe hoje aos Estados que não o fizeram, rever a sua política no sentido de abolir a pena capital e de respeitar os direitos humanos na sua íntegra. O Estado da Geórgia, com este caso, tem agora a oportunidade de voltar a dar substância merecida aos valores mais essenciais da democracia. Recentemente, o Comissário Louis Michel ouviu da boca do Presidente do Sudão, Omar al-Bashir, que não entregaria os indiciados por crimes contra a humanidade ao Tribunal Penal Internacional, tal como os Estados Unidos não o faziam. O exemplo dos Estados Unidos nestas duas matérias é uma desgraça, e nós temos que, por todos os meios, fazer sentir aos Estados Unidos que não podemos aceitar esta posição e que exemplo terrível é dado ao mundo em matéria de direitos humanos.
Por isso, como se pede na resolução, é essencial que a Presidência da União Europeia, que a delegação da Comissão Europeia em Washington, sem demora, façam diligências para evitar a condenação de Troy Davis e para que os Estados Unidos efectivamente revejam a sua posição em relação à pena de morte.

Estrasburgo, 10 de Julho de 2008

Intervenção (em inglês) sobre a China e os Jogos Olímpicos na Plenária do Parlamento Europeu, Estrasburgo, 9 de Julho de 2008 

Mr President, I support the Olympic Games being held in Beijing, but I also urge the European governments and institutions to demand that China abide by its commitments regarding human rights, namely those undertaken in order to have the Olympic Games in Beijing.
This requires that the European representatives who will – or will not – be attending the Olympic Games use this opportunity to draw attention to the situation of human rights in China. It is very serious. There are many people in jail, including Hu Jia, who was jailed after speaking to us here in the European Parliament via a video conference. We cannot accept that these people will continue to be kept in jail for no account by the Chinese authorities.

Estrasburgo, 9 de Julho de 2008

Intervenção sobre o espaço e a segurança na Plenária do Parlamento Europeu, Estrasburgo, 9 de Julho de 2008 

Senhor Presidente, saúdo o colega Karl von Wogau por este relatório e pela forma incansável com que tem defendido o aprofundamento do projecto europeu através da construção de uma Europa da defesa. O relatório reflecte o equilíbrio apropriado entre aqueles que devem ser os objectivos principais de uma política europeia na área do espaço e da segurança: primeiro, a importância capital de impedir, por todos os meios diplomáticos e políticos, a colocação de armas no espaço, como sublinhou o Comissário Verheugen, para que o espaço possa continuar a ser utilizado como propriedade comum de toda a humanidade; segundo, o de equipar a Europa com as políticas espaciais, os recursos financeiros e os equipamentos necessários para assegurar a sua autonomia estratégica na cena internacional.
Em relação ao primeiro objectivo, importa sublinhar que não se trata aqui de combater o uso do espaço para fins militares. Sabemos que, desde os primórdios da exploração espacial, os satélites têm servido para apoiar as Forças Armadas de diversos países, nomeadamente no domínio das comunicações. Alguns dos nossos colegas teimam em confundir este tipo de funções, compatíveis com o direito internacional, com as tentativas recentes de alguns, especialmente dos Estados Unidos da América, de colocar armas no espaço, transformando-o assim na quarta dimensão do campo de batalha, para além da terra, do mar e do ar. É esta estratégia belicista e outras iniciativas inaceitáveis, como o teste anti-satélite da China, em Janeiro de 2007, que devem ser combatidas.
O relatório responde a estas ameaças com a exigência de um papel diplomático pró activo da União Europeia. Cabe à Europa liderar uma estratégia global que vise equipar a comunidade internacional com uma arquitectura jurídica e eficaz que garanta a exclusão total de armas do espaço, nomeadamente através da revisão e do fortalecimento do Outer Space Treaty.
Em relação ao segundo objectivo, o relatório faz um apelo para que não seja descurada a importância crucial do espaço para a autonomia estratégica da Europa. Tomando o exemplo do projecto GALILEO, uma maioria esmagadora dos membros deste Parlamento acredita que a partilha de recursos financeiros, tecnologias e equipamentos entre europeus é a única maneira de a Europa não depender dos Estados Unidos da América, da Rússia ou da China para actividades estrategicamente vitais, como a navegação.
O relatório também sublinha a importância, frequentemente ignorada ou temida, do GALILEO e de outros programas nacionais europeus para uma política externa e de segurança comum séria. Sem uma utilização pacífica e eficaz do espaço, as nossas economias, os nossos transportes, a meteorologia, enfim, o nosso modo de vida hoje, seriam impossíveis. Cabe à Europa pensar estrategicamente esta área de importância estratégica, como já se faz em Washington, Pequim e Moscovo. Pensar e agir. E, nesta perspectiva, tenho a lamentar que a Presidência do Conselho não esteja hoje aqui presente, neste debate.

Estrasburgo, 9 de Julho de 2008

Intervenção sobre o papel da União Europeia na estabilização do Afeganistão na Plenária do Parlamento Europeu, Estrasburgo, 8 de Julho de 2008 

Saúdo o relator André Brie pelo seu trabalho de análise séria dos graves problemas com que nos defrontamos no Afeganistão e, em particular, pelos seus esforços na procura de linguagem que permita a todos os grupos políticos votar a favor das alterações de compromisso.
Infelizmente, aquando do voto em comissão, duas ideias importantes que constavam das alterações de compromisso foram vítimas do preconceito político de colegas que preferem ignorar os problemas com que a comunidade internacional se vê confrontada no Afeganistão, problemas horrificamente ilustrados pelo ataque assassino ontem cometido contra a Embaixada da Índia em Cabul. Assim, a referência à necessidade de a comunidade internacional reexaminar a sua estratégia militar e civil caiu, como caiu também a passagem que sublinhava o crescente descontentamento popular com a corrupção que grassa nas instituições governamentais.
Neste sentido, apelo aos colegas que apoiem as alterações que o PSE reintroduz com o objectivo de reequilibrar o relatório. Como é que um relatório desta casa sobre o Afeganistão pode abster-se de mencionar o papel do Paquistão e do regime militar que tantos anos desgovernou aquele país? Como é que nós, deputados europeus, podemos ignorar as prisões secretas dos nossos aliados americanos em Cabul e não só? Por que é que alguns colegas rejeitam críticas legítimas ao sistema judicial afegão? A posição do PSE é clara: é possível apoiar a presença acrescida de tropas internacionais no Afeganistão e, ao mesmo tempo, defender a necessidade de reexame da estratégia militar da ISAF. É possível ser a favor de uma estreita cooperação entre a Europa e os Estados Unidos no Afeganistão, sem fechar os olhos aos crimes cometidos pela Administração Bush, em nome da luta contra o terrorismo.
Finalmente, é possível apoiar as instituições afegãs, ao mesmo tempo que se chama a atenção para as suas graves limitações. A Europa só poderá assumir um papel estratégico no Afeganistão quando deixar de ter medo de apresentar uma visão própria para o futuro do país. Por que não começar aqui e agora, com este relatório?

Estrasburgo, 8 de Julho de 2008

10 de julho de 2008

Hostilidade assimétrica 

Por Vital Moreira

A oposição ao Tratado de Lisboa confirmou que existem duas grandes motivações para a hostilidade ao aprofundamento da UE. Uma tem a ver com a questão da “perda da soberania”, outra tem a ver com o modelo económico-social subjacente à integração europeia. Mas por que é a oposição à integração europeia é muito mais ampla e profunda à esquerda do que à direita do espectro político?

As posições soberanistas contra a integração europeia não existem só à direita, ainda que sejam mais visíveis nesse quadrante, visto que a esquerda, pelas suas tendências tradicionalmente “internacionalistas”, tende a reprimir ou a esconder as pulsões nacionalistas, mesmo quando elas existem. Por isso, é na direita, e nos sectores da direita mais nacionalistas em especial, que normalmente encontramos a hostilidade mais “vocal” contra uma maior integração europeia. Daí a oposição de direita nacionalista ao Tratado Constitucional como, em menor medida, ao Tratado de Lisboa, pelos seus avanços suspeitamente federalizantes.

Já o modelo-económico social da UE suscita naturalmente mais objecções à esquerda (melhor dizendo, na “esquerda da esquerda”) do que à direita. A razão é fácil de entender.

A “constituição económica” da UE assenta desde o princípio numa “economia de mercado social”, baseada no casamento entre a economia de mercado (regulada) e o Estado social. Contra este “mix cosntitucional” estão tanto os liberais radicais, adeptos do “capitalismo de mercado livre” (‘laissez-faire capitalism’), como a esquerda radical, partidária de uma qualquer forma “socialismo económico”, baseado na socialização dos meios de produção e na direcção pública da economia. Os primeiros condenam toda a ingerência do Estado na economia e rejeitam liminarmente o Estado social, como atentados qualificados contra a liberdade individual e o desempenho da economia. Os segundos são por definição contrários ao capitalismo e à economia de mercado, por mais regulada ou por mais social que seja.

Sendo a rejeição da esquerda antiliberal da UE muito mais visível do que a hostilidade neoliberal, há uma dupla explicação para essa assimetria.

Em primeiro lugar, existe uma evidente diferença de peso na Europa entre o liberalismo radical (neoliberalismo) e a esquerda antiliberal. A Europa não se tem revelado terreno propício para os defensores do modelo de “economia de mercado livre” e para a indiferença social do Estado. Com a conhecida excepção britânica, as economias europeias integram-se no modelo das “economia de mercado coordenada”; e, em geral, com maiores ou menores variantes, quase todos os Estados europeus compartilham do “modelo social europeu”. Coisa diferente sucede com as correntes da esquerda radical, que por razões históricas e sociais, mantêm significativa influência em vários países, disputando aos partidos social-democratas e socialistas tradicionais uma parte do voto de esquerda. Para além dos partidos comunistas, de obediência leninista, há também as correntes troskistas, “altermundistas”, verdes radicais, etc. Todos eles compartilham uma concepção anticapitalista e antiliberal em matéria económica, visceralmente hostil à economia de mercado.

Em segundo lugar, a criação do “mercado único europeu” desde final dos anos 80 do século passado – incluindo a liberalização dos antigos serviços públicos económicos (utilities), bem como a livre prestação de serviços transfronteiras (Directiva serviços) – tem dado argumentos à esquerda antiliberal na sua rejeição da UE, na medida em que o mercado único implica por definição a abertura ao mercado e à concorrência de actividades anteriormente prestadas em regime de exclusivo público (ou de concessão exclusiva), bem como a concorrência no mercado único de prestação de serviços, até agora segmentado e protegido dentro fronteiras nacionais. Daí que as esquerdas antiliberais não se cansem de denunciar como “deriva neoliberal” os referidos mecanismos de construção do mercado único.

A acusação não tem fundamento, dado que a liberalização dos serviços – que de resto tem poupado os serviços sociais – não põe em causa nem a regulação económica nem, muito menos, as garantias do Estado social. Não é por acaso que a construção do mercado único foi acompanhada da “internalização” e reforço da dimensão social nos próprios Tratados da UE, como é evidente no Tratado de Amesterdão e do Tratado de Lisboa. Em certo sentido, a UE torna-se simultaneamente mais economia de mercado (regulada) e mais social. O que sucede é que o problema da esquerda antiliberal é justamente a economia de mercado, qualquer que ela seja.

Diário Económico, 4ª feira, 2 de Julho de 2008

A grande mistificação 

Por Vital Moreira

Pode haver várias razões contra os investimentos públicos em geral ou contra certos investimentos públicos em concreto. Mas argumentar que eles não podem ser feitos por "falta de dinheiro" constitui uma grande mistificação política, que não resiste à mais elementar análise.

Para começar, a afirmação de que "não há dinheiro para nada" é duplamente errada: primeiro, porque com o saneamento das finanças públicas - um triunfo inegável deste Governo -, há finalmente margem de manobra orçamental para retomar o investimento público; segundo, porque para haver investimento em infra-estruturas públicas não é necessário ter dinheiro público disponível nem sequer recorrer ao endividamento público, bastando optar pelo investimento privado no quadro de "parcerias público-privadas". Ora, a quase totalidade dos investimentos previstos - novo aeroporto, nova travessia do Tejo, rede ferroviária, estradas, barragens, portos, e mesmo hospitais, escolas e prisões - será feita com dinheiro privado.

Acresce que, ressalvadas as infra-estruturas de uso gratuito - caso das escolas, dos hospitais, etc. -, em que a remuneração do investimento privado terá de sair do orçamento do Estado, ao longo do prazo acordado, as demais infra--estruturas públicas são totalmente ou em grande parte auto-sustentadas financeiramente, através das receitas que elas mesmas geram na sua exploração. E se em alguns casos essas receitas não chegam para remunerar integralmente o investimento - caso tradicional dos transportes ferroviários -, já noutros casos é de esperar um considerável saldo líquido, como sucede no caso das auto-estradas pagas e das barragens hidroeléctricas. Consideremos essas duas áreas, que muitos observadores desatentos têm incluído entre os casos de investimentos duvidosos.

Um dos temas que a elite lisboeta sempre aborda com enorme desprezo é o investimento rodoviário (fora da região de Lisboa, bem entendido). Bastam-lhe as pontes sobre o Tejo e as auto-estradas para Cascais e para o Algarve. Ora, todos os investimentos rodoviários projectados fazem parte do Plano Rodoviário Nacional - que o PSD aprovou -, o qual está em boa parte por realizar por esse país fora, incluindo algumas ligações básicas, sobretudo no interior. Quanto ao financiamento, o sector deixou de depender do orçamento do Estado e dos impostos no novo sistema de gestão rodoviária, devendo a Estradas de Portugal recorrer ao investimento privado em regime de PPP e remunerá-lo depois com recursos próprios, designadamente a "contribuição rodoviária" e, sobretudo, as portagens das novas auto-estradas (e das antigas, quando cessarem as actuais concessões). O Estado deixa, portanto, de ter encargos orçamentais com as estradas.

No caso das barragens hidroeléctricas - que alguns credenciados comentadores políticos não pouparam -, o argumento da "falta de dinheiro" é verdadeiramente surrealista. De facto, para além da preciosa contribuição das novas barragens na diminuição da dependência energética do país em combustíveis fósseis, elas não só não custam um cêntimo aos contribuintes como ainda por cima rendem ao Estado muitos milhões de euros, quer a título de pagamentos à cabeça por cada concessão, quer a título da nova taxa de recursos hídricos, que as empresas eléctricas terão de pagar pela água turbinada. Por conseguinte, além de não envolverem nenhum encargo orçamental, as barragens hidroeléctricas são uma verdadeira mina de ouro para o Estado.

Como é que se pode argumentar politicamente assim, na base do preconceito e da irresponsabilidade?

A resposta passa por três factores. Primeiro, o nosso debate político prefere muitas vezes o slogan ou a frase assassina, em vez do argumento racional e das propostas alternativas. Há uma atávica recorrência nestes métodos. A frase de Manuela Ferreira Leite sobre "não haver dinheiro para nada" ecoa a frase de Durão Barroso sobre o "país de tanga", que serviu de "leit motiv" para adiar todos os investimentos públicos - mas não para se não comprometer com eles, como sucedeu com o TGV -, sem ao menos ter conseguido disciplinar as finanças públicas.

O segundo factor tem a ver com o défice de informação e investigação da generalidade dos nossos media, incluindo os de serviço público. Perante a impugnação global dos investimentos públicos programados, com o fundamento invocado (alegada falta de dinheiro), uma imprensa responsável deveria ter-se lançado na pesquisa dos custos e do financiamento de cada um dos investimentos em causa. Em vez disso prevaleceu a repetição acrítica dos artigos de fé da cruzada contra os investimentos em infra-estruturas públicas, sem discussão nem contestação.

Por último, era de esperar que, posta em causa a comportabilidade financeira dos seus projectos, o Governo se apressasse a compilar e a disponibilizar todos os dados sobre a fiabilidade financeira dos investimentos já assumidos ou em vias de o serem. Não basta dizer que os estudos existem e estão publicamente disponíveis. Um apanhado sistematizado não custaria muito nem demoraria muito tempo a elaborar e poderia acabar com muitas das especulações que o desconhecimento e a má fé alimentam.

De resto, conviria igualmente esclarecer convincentemente o eventual impacto da actual crise financeira e petrolífera internacional sobre os investimentos públicos programados. Importa saber concretamente se o Estado continuará a manter capacidade orçamental para assegurar a sua parte nos investimentos que exigem alguma contribuição pública (caso do TGV) e se o aumento exponencial do preço dos combustíveis poderá alterar a equação financeira de alguns investimentos em infra-estruturas de transportes (por exemplo, favorecendo o transporte ferroviário em prejuízo do rodoviário e do aéreo).

Só a informação responsável pode afastar a demagogia irresponsável.

Publico, terça-feira, 8 de Julho de 2008

O contrário da credibilidade 

Por Vital Moreira

Depois de seis anos desprestigiantes no governo e na oposição, o PSD decidiu iniciar um novo ciclo partidário com uma ofensiva contra as "obras públicas" e com a proposta de desviar recursos públicos do investimento produtivo para transferências sociais. Todavia, com essa proposta - que ficaria bem na esquerda radical ou num partido populista -, o PSD põe em risco toda a credibilidade política de que um partido de centro-direita necessita para disputar o poder.

Comecemos pelo óbvio. O investimento em infra-estruturas, a começar pelas de transportes (aeroportuárias, portuárias, ferroviárias e rodoviárias), constitui uma condição de modernização e de desenvolvimento económico, em especial entre nós, dado o nosso atraso estrutural e a situação periférica do país. Sucede que, por várias razões, tais investimentos sempre dependeram do poder público, directa ou indirectamente, independentemente do maior ou menor papel do Estado na economia, desde Fontes Pereira de Melo, em pleno liberalismo oitocentista, até Cavaco Silva, em pleno movimento de desintervenção do Estado na economia, há duas décadas.

O investimento público em infra-estruturas torna-se ainda mais importante nos períodos de défice de investimento privado e de abrandamento económico, como o actual, provocado pelo crash do crédito imobiliário nos Estados Unidos e pelo disparo do preço do petróleo nos mercados internacionais. Embora programados desde antes, os investimentos públicos que estão a ser lançados neste momento em Portugal podem constituir um forte contributo para moderar o impacto negativo da dupla crise, em termos de sustentação e dinamização do crescimento e do emprego.

A súbita investida da nova liderança do PSD contra tais investimentos padece de dois vícios fatais. Primeiro, significa que o PSD decidiu cavalgar oportunistamente as actuais dificuldades económicas e sociais - que não pode imputar ao Governo -, para apostar no "quanto pior melhor", tentando impedir os efeitos virtuosos que tais investimentos podem ter na resposta ao duplo choque externo. Em segundo lugar, esta atitude oportunista faz incorrer o PSD numa série de contradições que só podem reduzir, e não recuperar, a sua credibilidade.

A primeira contradição tem a ver com a herança modernizadora do PSD, sobretudo na sua versão "cavaquista". Numa liderança que valoriza a obra do antigo primeiro-ministro, que protagonizou durante uma década (1985-1995) um claro impulso "neofontista" na modernização e no desenvolvimento económico, haverá algo de mais "anticavaquista" do que o ataque aos investimentos em infra-estruturas, bem como a proposta de trocar investimento de capital por transferências sociais, que aliás não estão em risco?

A segunda contradição decorre da óbvia incompatibilidade com a crítica reiterada que o PSD fez ao PS ao longo destes três anos de governação, por estar a sacrificar o investimento público em favor da disciplina orçamental (que o PSD deixara em estado comatoso). Fará algum sentido que apareça agora a criticar esse mesmo investimento, justamente quando a folga orçamental conseguida com a disciplina financeira já o permite fazer sem riscos para a consolidação das finanças públicas nem para a necessária protecção social?

A terceira contradição - porventura a mais comprometedora em termos de credibilidade política - tem a ver com a selecção do projecto ferroviário do TGV como alvo privilegiado da fatwa contra os investimentos públicos em "infra-estruturas supérfluas". De facto, não será evidente que o actual projecto de TGV não passa de uma versão compactada do ambicioso programa acordado em Janeiro de 2004 com Espanha pelo Governo de Durão Barroso - do qual fazia parte, como ministra das Finanças, a actual líder do PSD! -, quando as condições financeiras do país eram incomensuravelmente menos confortáveis e quando as razões a favor da rede de bitola europeia de alto desempenho eram menos evidentes do que hoje, por causa do impacto negativo dos preços dos combustíveis e dos seus custos em emissões de CO2 sobre o transporte rodoviário e aéreo?

Não é menos contraditório, nem menos oportunista, o pretexto invocado para o cancelamento dos investimentos, ou seja, uma alegada situação de "emergência social", propositadamente empolada para tentar justificar essa proposta de fácil cariz populista, que é mais própria de um partido "peronista" ou "chavista" do que de um partido de centro-direita com orientações liberais em matéria económica e falta de antecedentes em matéria de "justicialismo" ou de assistencialismo social.

Sucede que nunca houve um volume de transferências orçamentais para fins sociais tão elevado como agora, incluindo medidas destinadas às camadas mais vulneráveis (que aliás não se devem ao PSD), como o rendimento social de inserção (RSI), o complemento de rendimento para pensionistas pobres, o aumento do abono de família para as famílias pobres, os apoios à maternidade, a elevação do salário mínimo acima da inflação, etc. As próprias IPSS, que o PSD agora pretende instrumentalizar em seu benefício político, nunca beneficiaram de tantas ajudas do Estado como agora.

Acresce que, como se viu, só o investimento público (e o investimento privado que ele arrasta) é que pode atenuar e abreviar o agravamento da situação social. O melhor remédio para a crise social é estimular o crescimento económico, criando emprego e rendimento, bem como gerando receitas fiscais para melhor responder às carências sociais, de forma sustentada e não somente efémera.

Com a sua cruzada demagógica e populista contra os investimentos públicos - mesmo quando eles envolvem pouco ou nenhum gasto público -, o PSD começa muito mal a sua pré-campanha eleitoral antecipada, na visível ânsia de voltar ao poder a qualquer custo.

Publico, terça-feira, 01.07.2008

O espantalho e a sereia 

Por Vital Moreira

A tradicional agitação, à esquerda, do perigo de um governo de "bloco central" não passa de um conveniente espantalho para tentar "vender" na opinião pública uma suposta alternativa governamental de "esquerda plural". Mas, ao contrário do ponto de vista de André Freire no seu artigo de ontem aqui no PÚBLICO, esta hipótese é tão irrealista como a outra. E no dia em que o PS admitisse uma aliança de governo com o PCP ou o BE, não ficaria somente refém da sua irresponsável agenda extremista, mas também começaria a cavar o seu insucesso eleitoral, por efeito da perda do voto ao centro, sem o qual não é possível vencer eleições, nem governar. Dando o anel, o PS ficaria também sem os dedos.

Não é preciso grande dose de argumentação para demonstrar que não tem a mínima verosimilhança a reedição de um coligação PS/PSD, a 25 anos de distância, caso algum deles ganhe as eleições sem maioria absoluta. Primeiro, as condições de abissal desequilíbrio orçamental e das contas externas que justificaram a solução de 1983-85 não se colocam agora no horizonte. Ganhador das eleições sem maioria absoluta, após o rotundo fracasso do precedente governo da Aliança Democrática (AD), e sem garantia de solidariedade política do Presidente da República, o PS entendeu que não poderia solucionar a crise sozinho nem assumir os pesados sacrifícios financeiros e sociais (que incluíram um imposto especial retroactivo e a retenção do 13.º mês de remuneração dos funcionários públicos...). Em segundo lugar, o PS pagou muito caro essa experiência, quando o PSD, pela mão de Cavaco Silva, rompeu a coligação logo que lhe conveio, depois das dificuldades ultrapassadas, e quando o PRD, animado pelo ainda presidente Ramalho Eanes, tirando partido do descontentamento popular, arrebatou uma enorme fatia do voto de centro-esquerda (e até de esquerda), que desertou o PS, cobrando-lhe a factura dos sacrifícios impostos.

A lição de 1983-85 não pode ser esquecida pelos socialistas. Quando se aliam à direita no governo, beneficiam tanto a mesma direita, porque contribuem para "pagar as favas" da política desta, como os partidos à sua esquerda, que se aproveitam do compromisso de direita do PS para ocuparem o espaço político que ele desampara. Para dar campo livre ao radicalismo político, nada melhor do que equacionar a ideia de uma aliança de governo com a direita. Não pode haver ilusões sobre isso, nem o PS deveria deixar dúvidas a esse respeito.

O PS e o PSD são desde o 25 de Abril os partidos "naturais" da alternância governativa entre nós, suficientemente distintos entre si para significarem políticas alternativas em muitas áreas, não muito distantes entre si, para que a mudança de governo não seja encarada como um salto político no escuro. Por isso, quando um é governo, o outro deve liderar a oposição, sob pena de, ambos no governo, alimentarem a centrifugação política e darem alento aos extremos do arco político-parlamentar.

Mas entre a má memória do bloco central e a tentação de um governo da "esquerda plural", venha o diabo e escolha. Com o PCP e o BE que temos - assumidamente partidos de protesto anti-sistema -, a tentação de uma federação de governo à esquerda não seria menos deletéria para o PS, apesar da sua aparente lógica política. Não é por acaso, nem por qualquer anátema, que ao longo dos 32 anos de regime constitucional nunca se formou nenhum governo de "maioria de esquerda", embora tenham existido vários governos de coligação de direita (aliás em geral pouco duradouros). Fora da oposição, as alianças à esquerda sempre se limitaram a medidas políticas avulsas. Não é necessário dramatizar para verificar que subsistem as enormes diferenças doutrinárias e políticas de origem entre o PS e os partidos à sua esquerda, que aliás o tempo não tem ajudado a reduzir.

Pode convir aos defensores dessa solução tentar desvalorizar essas diferenças quando lhes interessa - isto, apesar de os dois putativos (mas nunca assumidos) candidatos ao matrimónio governativo com o PS não se cansarem de sublinhar as suas abissais divergências com este, a ponto de o elegerem como seu inimigo principal. Mas, mesmo que focássemos essas diferenças exclusivamente na questão crucial da integração europeia - esquecendo as fundas diferenças de atitude face à economia de mercado e à disciplina das finanças públicas, por exemplo -, só uma enorme candura ou oportunismo é que permite pensar que ela seria superável. Basta ver as alianças do BE e do PCP no Parlamento Europeu, bem como a sua recente reacção de júbilo face à rejeição do Tratado de Lisboa na Irlanda, para concluir que não é possível nenhum discurso comum nesta matéria central e transversal a todas as políticas, impossibilitando um mínimo de coerência e de solidariedade governativa.

Enquanto as "esquerdas da esquerda" não conseguirem distinguir entre a natural oposição às concretas políticas europeias - resultado do actual predomínio da direita no Parlamento Europeu e na Comissão, bem como nos órgãos intergovernamentais (Conselho de Ministros e Conselho Europeu) - e a necessária convergência nas opções "constitucionais" ditadas pela busca de uma maior integração europeia - como sucede quando estão em causa os tratados -, não se pode esperar nenhuma cumplicidade entre "europeus" e "antieuropeus" a nível de soluções governativas domésticas.

Ao contrário do que defende André Freire, não é verdade que uma votação reforçada no PCP e no BE torne um governo de bloco central "muito mais difícil". Primeiro, em qualquer caso, o bloco central é uma carta fora do baralho e uma "inventona" conveniente para o canto de sereia esquerdista; segundo, o que o reforço eleitoral dos partidos à esquerda do PS pode acarretar é, sim, a derrota deste e... a vitória da direita. Resta saber, aliás, se não é esta a hipótese que no fundo mais acalentam!

Publico, terça-feira, 24.06.2008.

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