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26 de fevereiro de 2009

Comunicado à imprensa da REPRIEVE 

For Immediate Release

Memorandum re: Portuguese Assistance
Case: Binyam Mohamed
Date: February 25, 2009
From: Reprieve / Clive Stafford Smith (clivess@mac.com)

The assistance of the Portuguese prosecutors has been valuable to Reprieve in its representation of Binyam Mohamed. Reprieve wrote to the Prime Minister who referred us to the prosecutors, suggesting that this was the appropriate forum for us to seek information. While it is not appropriate for Reprieve to release the correspondence from the prosecutors themselves, it is entirely proper for Reprieve to reveal the information that was derived from these communications.

The Information provided

The Portuguese authorities provided Reprieve with information concerning a very important CIA flight circuit in mid-September 2002. The flight involved the CIA aircraft N379P – this was nicknamed the “Rendition Express”, because it was involved in so many renditions. This was the aircraft that originally delivered Binyam Mohamed to Morocco overnight on July 21-22, 2002. This was also the aircraft that rendered Mr Mohamed from Rabat to the “Dark Prison” in Kabul, Afghanistan, on January 22, 2004.

On the September circuit, N379P arrived in Rabat (Morocco), indirectly from Diego Garcia. This is an important link in the case involving CIA operatives who used the British base on Diego Garcia.

From Rabat, the flight went on to Porto on September 14, 2002.

The flight went back to Rabat on September 15, before returning to Porto. After stopping over there, the aircraft proceeded to Kabul on September 17. From Kabul, the plane returned to Jordan on the same day. The flight to Amman carried at least one other Guantánamo prisoner – juvenile Hassan bin Attash – and he was subsequently subjected to 16 months of torture in Jordan. Mr bin Attash remains in Guantánamo Bay and, despite being a juvenile, he continues to face the death penalty to this day. The Portuguese information is of assistance to us in providing legal assistance to Mr bin Attash.

The aircraft went on to Rabat the same day, staying overnight before flying back to the US via Ireland on September 18, 2002.

Thus this circuit included three stops in Morocco, delivering prisoners there and bringing US agents to take part in the torture and abuse of Binyam Mohamed.

The Portuguese prosecutors provided Reprieve with information concerning their review of airport records, as well as the records of the local hotels that were generally used on the rendition flights.

The Portuguese prosecutors specifically identified one of the US personnel on board the entire flight circuit – providing physical evidence that will assist in ensuring full disclosure of all the facts concerning this rendition flight.

Finally, the Portuguese prosecutors responded to Reprieve’s request concerning Binyam Mohamed’s transfer to Guantánamo Bay – involving the flights that demonstrate specifically that the Portuguese government was complicit in his rendition there.

The consequences

Reprieve is very appreciative of the assistance lent by the Portuguese prosecutors. This assistance was provided in the highest tradition of justice.

It should be emphasised that Reprieve has no interest in pursuing a witch-hunt concerning the misconduct of official personnel, Portuguese or otherwise. Reprieve has only two goals: First is to secure justice for those held beyond the effective reach of the law in Guantánamo Bay. Thanks in part to the cooperation of the Portuguese prosecutors, Binyam Mohamed is now free; Hassan bin Attash is not.

Reprieve’s second goal involves ensuring that such misconduct does not happen in the future. The current Portuguese government should be applauded for its response to the disclosure of prior misconduct. The Portuguese government has been the leader in efforts to secure a home for Guantánamo prisoners who are refugees and are unable to be returned to their native countries. Since every one of these prisoners was rendered to Guantánamo Bay through Portuguese jurisdiction – with, therefore, Portuguese government consent – this is a sensible and admirable step for the current Portuguese government to take to make up for the earlier Portuguese complicity.

Other European states have been equally – and, in some cases, more – culpable in the rendition programme. Portugal is leading the way for redressing the mistakes of the past. For this, Reprieve wishes to acknowledge the current government.

(Note: Reprieve has consistently taken the position that the suppression of evidence of official misconduct by European governments is inconsistent with the open administration of justice.)

February 25, 2009

23 de fevereiro de 2009

Conferência no Instituto de Estudos Superiores Militares 

A Política Europeia de Segurança e Defesa - Complementaridade com a NATO
· Gostaria de começar por agradecer o convite que me foi dirigido pelo Capitão-de-Fragata António Luís dos Santos Madeira para vir hoje falar ao vosso Curso; esta é a minha segunda visita aqui ao IESM e já tive o prazer de receber o Curso de Promoção a Oficial General de 2007 em Bruxelas;
· Devo dizer que aceitei imediatamente o convite, por duas razões principais: primeiro, porque penso que não há grupo de indivíduos mais decisivo para as tomadas de decisão estratégicas do futuro do que os nossos oficiais generais; segundo, porque sinto que aquilo que tenho aprendido em Bruxelas, como vice-presidente da Subcomissão de Segurança e Defesa do PE e como coordenadora do Grupo Socialista para estes temas, me habilita a contribuir para os trabalhos do vosso Curso;
· A minha intervenção de hoje, e o debate que se seguirá, inscrevem-se num dos mais importantes exercícios da democracia: o diálogo constante entre os políticos e os militares; um diálogo em que ambos os lados conhecem bem o seu papel nas instituições da República, mas que, quando levado a cabo com a franqueza e a honestidade intelectual necessárias, é decisivo para a construção de uma visão e de um discurso estratégico comuns, e portanto verdadeiramente nacionais;
· O que nos leva directamente ao tema que me propuseram: a Política Europeia de Segurança e Defesa e a sua complementaridade com a NATO;

· Vou dividir a minha intervenção em três partes:

1. Primeiro, a dimensão política e institucional;
2. Segundo, as capacidades;
3. Terceiro, a dimensão operacional.

· Em relação à dimensão política, devo começar por dizer uma coisa que talvez não vos preocupe muito, a vós militares, mas que para nós, políticos, não deixa de ser fundamental: as pesquisas do Eurobarómetro revelam sistematicamente um apoio popular considerável - na ordem dos 70% - a uma União Europeia mais activa em questões de defesa e de relações externas;
· Independentemente, portanto, de discussões doutrinárias sobre o papel da UE e da OTAN, devemos ter consciência das expectativas dos cidadãos, no que diz respeito a algumas áreas que antes eram do domínio reservado da Aliança Atlântica;
· Para usar um vocabulário muito na moda, as pressões do lado da "procura", isto é, das expectativas dos cidadãos, às vezes expõem as limitações do lado da "oferta", isto é, da capacidade da União de demonstrar a sua utilidade no domínio da gestão de crises com meios militares;
· Mas a "procura" de uma União mais envolvida em questões militares não vem só dos nossos eleitores: ela vem - talvez até com mais intensidade - de fora; a União Africana tem actualmente 30.000 soldados envolvidos em cinco operações de manutenção de paz; as Nações Unidas têm 75.000 e a própria NATO tem 55.000 soldados no Afeganistão; ora a União Europeia, em Dezembro do ano passado, tinha apenas 6.000 soldados em operações militares, essencialmente na Bósnia e no Chade/República Centroafricana;
· Não quer isto dizer que a UE deva necessariamente tomar parte em operações de grande dimensão para provar a sua relevância; pelo contrário, diversos actores internacionais, e principalmente a ONU, já vêem a União como um actor indispensável na gestão de crises: não há cenário de crise - no Darfur, na Somália, no Congo, na Palestina, no Sul do Líbano - em que, mais cedo ou mais tarde, não se considere, ou se tenha considerado, a possibilidade de pedir à União Europeia que envie tropas;
· Mas perante as necessidades globais de tropas expedicionárias para a gestão de crises, a União Europeia tem demonstrado que nem sempre é capaz de responder adequadamente às expectativas das Nações Unidas, das populações nas regiões em conflito e dos cidadãos europeus;
· Por outras palavras, para além de ser um passo fundamental no processo de integração europeia, a Política Europeia de Segurança e Defesa é a resposta - incompleta, imperfeita e ainda embrionária - às pressões convergentes, internas e externas, para que a Europa assuma as suas responsabilidades globais no domínio da gestão de crises;
· E porque é que não pode ser a NATO a enviar tropas para o Congo, para a Palestina, para o Líbano ou para a Somália? Por duas razões igualmente importantes: porque não pode e porque não quer;
· Porque é que não pode? Porque é frequente a NATO esbarrar na baixa aceitação da sua presença militar entre os principais actores das zonas de conflito - a razão é conhecida de todos: o papel determinante dos EUA na NATO tem, por vezes, o efeito de inquinar a legitimidade política da Aliança Atlântica como actor político e operacional;
· Porque é que não quer? Porque, mais uma vez, as prioridades estratégicas da NATO são indissociáveis das dos EUA. E se Washington decidir, como a Administração Bush decidiu, que as eleições na República Democrática do Congo, ou os massacres no Leste daquele país, não justificam o envio de tropas americanas, a Europa não pode ficar de braços cruzados: tem de arranjar um contexto institucional alternativo à NATO para satisfazer os pedidos de ajuda das Nações Unidas ou os apelos da região;
· A primeira conclusão em relação ao tema da complementaridade é, portanto, a seguinte: NATO e UE são organizações com perfis políticos e estratégicos diferentes; apesar de todos os debates sobre o futuro da Aliança, e apesar das operações no Kosovo e no Afeganistão, a NATO continua a ser, acima de tudo, uma aliança militar, cuja identidade ainda é indissociável da defesa colectiva e territorial dos seus membros e da necessidade de ancorar firmemente os EUA no contexto estratégico europeu;
· Já a União Europeia é um actor internacional sui generis que só no Tratado de Lisboa vai adquirir os primeiros contornos de uma comunidade de defesa colectiva, e cuja prioridade, no domínio da segurança e defesa, é a de ser capaz de acrescentar uma opção militar credível às ferramentas necessárias para uma gestão de crises eficaz;

· As duas organizações são, assim, compatíveis e complementares, do ponto de vista político e identitário;

· Para perceber porque é que elas são politicamente complementares, e se têm tornado mais complementares nos últimos anos, é importante debruçarmo-nos sobre a evolução dos EUA em relação a este tema;
· No seguimento da Declaração de Saint-Malo de 1998, do Reino Unido e da França, que lançou os alicerces políticos da PESD, as condições de Washington para apoiar esta iniciativa foram articuladas em três D's, ou melhor ND's: que não fossem duplicados os meios da NATO, que não se discriminasse os membros da NATO que não fossem membros da União Europeia e, finalmente, que não se desligasse a União Europeia da arquitectura transatlântica de segurança;
· Foram estes três princípios que estiveram na base dos Acordos de Berlim Plus de 2003, e que motivaram, no mesmo ano, a recusa dos EUA e dos países mais atlanticistas da União Europeia, em apoiar a criação de um Quartel General Operacional, autónomo, da UE em Tervuren, na Bélgica;
· Entretanto, a situação alterou-se significativamente. E o Presidente Obama já herda uma posição americana mais flexível; há um ano, em Fevereiro, a Embaixadora dos EUA na NATO, a senhora Victoria Nuland, proferiu um discurso que indicou uma alteração de estratégia dos EUA - disse o seguinte:

"Estou aqui em Paris para dizer que nós concordamos com a França - a Europa precisa, os EUA precisam, a NATO precisa, a comunidade das democracias precisa - de uma capacidade de defesa europeia mais forte e mais capaz. Uma PESD só com soft power não chega..."

E continuou:

"... O Presidente Sarkozy tem razão. A NATO não pode estar em todo o lado."

· A este discurso seguiu-se a Declaração de Bucareste de 2008 da NATO, em que os Aliados declararam que:

"Reconhecemos o valor de uma defesa europeia mais forte e mais capaz, que contribua com capacidades para lidar com os desafios comuns que enfrentam a NATO e a União Europeia."

· Esta mudança de atitude demonstra que vão longe os dias em que John Bolton considerava as propostas francesas para o Tratado de Nice na área da PESD "um punhal apontado ao coração da NATO"!;
· De ambos os lados do Atlântico, em Washington, talvez até mais do que em Londres ou em Varsóvia, já se compreendeu que o processo político e institucional da União Europeia, da PESD, pode acrescentar valor, porque pode servir como catalisador para a mobilização das capacidades europeias existentes e para o desenvolvimento de novas capacidades. E estes avanços beneficiam a União Europeia e a NATO por igual;
· Uma coisa fica clara para nós europeus: agora que caiu o veto americano que pairava sobre a PESD, agora que de ambos os lados do Atlântico se vai gerando um consenso sobre a complementaridade política de ambas as organizações, agora que Paris parece disponível para abandonar a sua posição intransigente em relação à estrutura militar da Aliança, agora que as estrelas mais importantes no firmamento político transatlântico estão alinhadas - a Europa, a UE, as nações europeias já não têm desculpas;
· Já não têm desculpas para ter 2 milhões de cidadãos fardados nas suas Forças Armadas, dos quais apenas uns parcos 5% são verdadeiramente projectáveis; já não têm desculpas para gastar tão mal os €200 mil milhões que gastam na defesa; já não têm desculpas para investir apenas 1,5% dos orçamentos de defesa em R&D [Research and Development], enquanto os EUA gastam 9%; já não têm desculpas para resistir à abertura dos mercados nacionais de equipamento de defesa aos seus parceiros europeus, de forma a poderem continuar a sustentar programas industriais nacionais que resultam em redundâncias e em desperdícios; já não têm desculpas para adquirir equipamentos dispendiosos que nada têm a ver com os compromissos multilaterais de cada país - e que por vezes são adquiridos em processos opacos que servem para encher os bolsos de alguns decisores políticos, mais do que os interesses nacionais, caso dos submarinos, dos helicópteros EH 101, etc, etc...;
· Enfim, já não há desculpas políticas, em Portugal ou em qualquer outro país normalmente apelidado de atlanticista e já não nos podemos esconder atrás das saias de Washington, ou de Londres: chegou a hora de apostar sem inibições na União Europeia como força catalisadora e modernizadora da defesa europeia;
· Os EUA decidiram tratar a UE como um actor político, económico e estratégico autónomo; agora só falta nós, europeus, nos levarmos a sério;
· Mas na verdade vai ser difícil pôr fim a anos de debates simplistas, em que PESD e NATO eram apresentadas como religiões em guerra, cada uma alistando os seus sacerdotes e os seus acólitos para as trincheiras de um combate sem sentido, cada uma envolvida em ferozes campanhas proselitistas e acusando os seguidores da outra de heresia contra os interesses da Europa;
· E nenhuma instituição reflecte melhor o vasto espectro de opiniões neste debate do que o Parlamento Europeu: temos lá de tudo, dos pacifistas que vêem, tanto a União Europeia (através da PESD), como a NATO, como organizações belicistas ao serviço do imperialismo capitalista, àqueles que têm vergonha de ser europeus e que anseiam por sair da União Europeia para estabelecer uma confederação com os EUA...;
· Por isso tem sido particularmente interessante participar no debate sobre o primeiro relatório do Parlamento Europeu que lida com a questão das relações entre a União Europeia e a NATO e que votaremos em Plenário na próxima semana; juntamente com outro colega, fui incumbida de acompanhar este relatório em nome do Grupo Socialista;
· Curiosamente o relator responsável por este relatório é um homem certamente conhecido de muitos de vós: Ari Vatanen, o antigo piloto de ralis!;
· A versão original do relatório, antes das emendas socialistas e de outros colegas, ainda reflectia a visão clássica atlanticista da UE como organização menor e insignificante para a defesa europeia; enfatizava a importância, e passo a citar, da "perspectiva da integração euro-atlântica das democracias", ignorando as especificidades europeias em matéria de segurança e defesa e aquilo que, por vezes, nos separa dos nossos Aliados americanos:
· O relator queria deixar consagrada especificamente a ideia de que, e, mais uma vez passo a citar, "a única forma lógica de organizar a futura defesa colectiva da UE é no seio da Aliança";
· Uma maioria das forças políticas do PE achou inaceitáveis estas expressões categóricas de subordinação da União Europeia à NATO nas questões de segurança e defesa;
· O resultado das negociações, na base de centenas de emendas apresentadas ao relatório original, foi bastante satisfatório para aqueles que, como eu, acreditam numa relação de autonomia e de complementaridade entre as duas organizações;
· Por exemplo, o primeiro parágrafo da resolução contém agora a seguinte passagem importante:

"A capacidade da União Europeia de construir a paz depende do desenvolvimento da estratégia de segurança apropriada, incluindo a capacidade para agir autonomamente e uma relação eficiente e complementar com a NATO";

· Quanto à defesa colectiva da União, a linguagem que ficou é bem melhor do que a original:

"[o Parlamento] defende que o futuro da defesa comum da União Europeia deve ser organizado em cooperação com a NATO tanto quanto possível"

· Mais interessante ainda, é, talvez, uma passagem que faz parte do parágrafo sobre Berlim Plus, mas que tem um alcance político bem mais ambicioso do que esses acordos:

"[o Parlamento] considera, portanto, necessário o fortalecimento da relação entre NATO e União Europeia, através da criação de estruturas permanentes de cooperação, sem prejuízo da natureza independente e autónoma de ambas as organizações, e sem excluir a participação de qualquer membro da NATO e da União Europeia que se queira associar"

· Em suma, a versão deste relatório que será votada em plenária na semana que vem reflecte de uma forma muito mais fidedigna o actual estádio do debate europeu sobre o futuro das relações EU-NATO - que pode ser resumido nos seguintes pontos:

1. Primeiro, NATO e União Europeia são organizações autónomas, independentes e de natureza distinta, com razões de ser diferentes; apesar das novidades contidas no Tratado de Lisboa, a defesa colectiva da Europa continua a ser apanágio da Aliança Atlântica; já a União Europeia suplanta a NATO na gestão de crises complexas, em que importa aplicar paralelamente uma série de instrumentos de acção externa, incluindo a força militar;
2. Segundo, os acordos de Berlim Plus são o mínimo denominador comum para as relações entre as duas instituições, mas é preciso ir muito mais longe, tendo em conta a presença de ambas as organizações no teatro de operações afegão e a importância de estabelecer um diálogo entre as duas instituições em domínios tão diversos como a luta contra o terrorismo e a segurança energética;
(A propósito de Berlim Plus, uma pequena nota sobre a disputa cipriota-turca, que tem contribuído bastante para o impasse em que se encontram as relações entre a NATO e a UE; acima de tudo ela é resolúvel: os Estados Membros da União têm que convencer o Chipre a desistir das suas objecções a uma participação mais intensa da Turquia nos instrumentos da PESD; por seu lado, os EUA e a UE devem pressionar a Turquia no sentido de não bloquear a assinatura, por parte do Chipre, de um acordo de Partnership for Peace com a NATO. Tendo em conta a détente transatlântica a que assistimos e o consenso crescente sobre a necessidade imperativa de um aprofundamento do diálogo entre NATO e a EU, penso que nem Nicósia nem Ancara vão poder continuar a defender, durante muito mais tempo, as suas posições irredutíveis. E acima de tudo não se pode continuar a permitir que turcos ou cipriotas tomem a comunidade transatlântica refém de uma disputa bilateral, independentemente do mérito das suas respectivas posições.)
3. Terceiro, os Estados Membros da União Europeia têm agora de provar que são capaz de vencer a tradicional inércia europeia no que diz respeito às questões de defesa e têm que criar as condições para que, gradualmente, a União Europeia vá sendo capaz de assumir mais responsabilidades; para isso vai ser necessário mudar radicalmente a abordagem europeia na área das capacidades. E é assim que passamos para a segunda parte desta intervenção;

· AS CAPACIDADES são o tendão de Aquiles europeu; a equação estratégica é simples: enquanto a Europa não tiver as capacidades militares necessárias para assumir as suas responsabilidades na gestão de crises, todo o edifício institucional da PESD e as resmas de documentos estratégicos e doutrinários entretanto produzidos, não servem para grande coisa;
· A dimensão civil da PESD é importante e tem avançado bem. Mas a incapacidade dos Estados Membros da União Europeia em levar a cabo reformas orçamentais, militares e administrativas essenciais, põe em perigo as aspirações da União a ser vista, e respeitada, como um actor autónomo nas relações internacionais, onde infelizmente a força militar continua a ter a sua utilidade;
· Mesmo o Reino Unido e a França, nos seus Livros Brancos para a Defesa, de 2003, e 2008, respectivamente, reconhecem que não há nenhuma nação europeia que consiga comprar, desenvolver ou sustentar no terreno todas as categorias de armamento de que precisa;
· No presente contexto estratégico, em que nenhum Estado europeu quer desistir completamente das capacidades necessárias para a defesa territorial, mas em que as forças armadas europeias se envolvem cada vez mais em missões expedicionárias, e em que as pressões sobre os orçamentos de defesa não param de aumentar, só há soluções multinacionais: a partilha, ("pooling") de capacidades existentes e da sua manutenção, o desenvolvimento e aquisição conjuntos de capacidades novas, o investimento conjunto em R&D etc;
· Bem sei que programas como o A400M ou o Eurofighter têm revelado os defeitos de programas multinacionais, mas a solução não pode ser o 'cada um por si' do costume: a Europa - e com ela a PESD, mas também o pilar europeu da NATO - será reduzida à insignificância militar no futuro muito próximo se não começarmos a planear, a desenvolver e a comprar capacidades colectivamente;
· Por outras palavras, a construção da Europa da Defesa é a condição sine qua non para a sobrevivência da Defesa na Europa;
· Claro que o desenvolvimento de capacidades é uma área onde NATO e União Europeia têm a obrigação de trabalhar em conjunto. Infelizmente, as duas organizações não coordenaram suficientemente os seus respectivos planos de desenvolvimento de capacidades; o desfasamento entre o European Capability Action Plan, da União Europeia, e o Prague Capabilities Commitment, da NATO, acabou por ter o efeito de desencorajar os Estados Membros de cumprir qualquer um deles...;
· Mas na verdade o problema fundamental não está em Bruxelas, nas duas instituições - a NATO há mais tempo, a União Europeia, através da Agência Europeia de Defesa, mais recentemente - que tentam desesperadamente convencer os Estados Membros a mudar os velhos hábitos do autismo ao nível da aquisição de capacidades;
· As lacunas europeias são conhecidas de todos. E só uma REAFECTAÇÃO AMBICIOSA DOS ORÇAMENTOS NACIONAIS pode preenchê-las:
1. Primeiro, há uma abundância de algumas capacidades pouco úteis e uma falta crónica de outras - por exemplo, não precisamos de milhares de tanques pesados por essa Europa fora, preparados para a "vaga vermelha" que, felizmente, acabou por nunca vir;
2. Segundo, há uma duplicação desnecessária de alguns programas industriais de armamento; um dos casos clássicos é o dos carros blindados de combate, os Armored Fighting Vehicles, dos quais há mais de 20 modelos na Europa;
3. Terceiro, há uma lacuna crónica de 'capacidades de projecção', como o transporte estratégico, ou capacidades C3 [comando, controlo, comunicações];
4. Quarto, há uma tendência perigosa para a canibalização dos já de si modestos orçamentos militares para fins não-militares;
· Em suma, vinte anos depois da queda do Muro de Berlim a Europa continua a efectuar a transição entre capacidades do tempo da Guerra Fria para capacidades do século XXI, e dos imperativos materiais da defesa territorial para os das missões militares expedicionárias - mas a um ritmo lento, terrivelmente lento; tão lento, que pode vir a ser fatal para as forças armadas europeias; vou ser muito franca com as senhoras e os senhores: a dramática erosão dos orçamentos de defesa nacionais à escala continental vai continuar enquanto os contribuintes não compreenderem para que servem as Forças Armadas;
· É verdade que somos nós, os políticos, que temos que explicar aos cidadãos a importância de ter umas Forças Armadas modernas e preparadas para defender os interesses nacionais e infelizmente não há muitos capazes, ou sequer interessados, em fazê-lo; mas sem a ajuda das chefias militares não vamos lá: é preciso que as Forças Armadas se queiram modernizar e queiram participar na inevitável construção de uma Europa da Defesa;
· Porque os interesses nacionais portugueses hoje em dia, sejamos realistas, não são a defesa da fronteira nacional contra uma invasão russa, ou mesmo espanhola; Portugal, como país de dimensão média, tem todo o interesse em se afirmar perante os seus pares europeus com uma forças armadas relativamente pequenas, especializadas, modernizadas, altamente expedicionárias e abertas a iniciativas de colaboração com as suas congéneres europeias;
· Nesse sentido só posso exprimir o meu apoio incondicional às medidas anunciadas no seguimento da XXIV Cimeira Luso-Espanhola:
1. Primeiro, a Declaração de Intenções sobre o intercâmbio académico no domínio militar, uma medida que não só contribuirá para a interoperabilidade entre as duas Forças Armadas, como reforçará a participação de Portugal e Espanha no Erasmus militar europeu;
2. Segundo, a Declaração de Intenções entre os Ministérios da Defesa de Portugal e Espanha relativa à Cooperação no domínio do Armamento e Indústrias de Defesa: fala-se em particular nas áreas da aeronáutica (com um pacote que contempla os helicópteros EC 135 e a aeronave A400M), do sector naval, da manutenção de viaturas blindadas e mecanizadas, do estudo comum de identificação e aprofundamento das possibilidades de cooperação no domínio dos UAVs, dos programas internacionais de observação terrestre e dos assuntos europeus;
3. Terceiro, uma Declaração Comum entre o CEMGFA português e o seu congénere espanhol, no sentido de reforçar a cooperação entre as Forças Armadas de ambos os países;
· Tudo isto é muito animador e espero sinceramente que haja vontade de ambos os lados da fronteira para passar rapidamente das declarações aos actos, custe o que custar;
· E parece-me que é aqui que entra a UE; não foi a NATO que criou o clima de aproximação entre Lisboa e Espanha que permite este tipo de colaboração; só a União Europeia consegue unir os seus membros com laços económicos, culturais, políticos e históricos num destino europeu partilhado; temos que fazer uso do embalo da integração política e da partilha de soberania que só a UE oferece, para guiar os Estados Membros nas escolhas difíceis que se impõem ao nível da defesa e das capacidades;
· Eu posso estar enganada, e a União Europeia pode vir a falhar onde a NATO nunca triunfou - no desafio da especialização e da modernização das Forças Armadas e da partilha das capacidades;
· Mas a União Europeia merece o benefício da dúvida; com a panóplia de instrumentos institucionais, legais e políticos à nossa disposição - da Agência Europeia de Defesa, à Comissão Europeia, com as suas crescentes responsabilidades na construção de um mercado europeu de equipamento de defesa, passando pelo diálogo político no âmbito da Política Europeia e de Segurança Comum e pela inevitável peer pressure que o acompanha - se a União Europeia não consegue convencer os seus Estados Membros a pensar, planear, desenvolver e empregar colectivamente capacidades militares, se a União não consegue cortar este nó górdio, ninguém consegue;
· Chegamos agora à última parte da minha intervenção: AS OPERAÇÕES;
· Não me vou debruçar aqui sobre todas as operações militares da UE desde 2003; no entanto uma coisa fica clara: ninguém hoje põe em causa a sua utilidade; lembro apenas que a missão Artémis no verão de 2003, serviu como 'ponte operacional' entre a MONUC I e a MONUC II no Leste do Congo e contribuiu substancialmente para pôr fim às maiores atrocidades que se cometiam na região à volta de Bunia, perto da fronteira entre a República Democrática do Congo e o Uganda;
· Que sem a missão EUFOR RDC de 2006 e as manobras de interposição robustas e atempadas dos contingentes europeus em Kinshasa, as primeiras eleições livres daquele país teriam certamente degenerado em mais uma guerra civil sangrenta;
· Que, finalmente, neste momento, estão nos territórios do Chade e da República Centro-africana mais de 3.300 soldados europeus a contribuir para a criação de espaço humanitário numa região devastada por guerras civis e interétnicas e, claro, pela catástrofe do Darfur;
. Claro que a presença da PESD no terreno não trouxe automaticamente a paz para onde antes havia guerra; a razão é simples: estas operações não têm vocação para resolver conflitos políticos, pôr fim à miséria, ou combater as injustiças económicas e políticas que tanto contribuem para o sofrimento das populações civis;
· Nada disto nos deve surpreender: nós todos sabemos que a força militar - apesar de às vezes ser indispensável - não faz milagres; ela não passa de um instrumento de utilidade limitada, em qualquer situação de gestão de crises; se, como europeus, temos falhado nas regiões de crise, isto tem mais a vez com a timidez com que fazemos uso das nossas outras ferramentas de acção externa na resolução de conflitos, do que com as falhas da dimensão militar da PESD;
· Mas uma coisa é clara: a dimensão militar da PESD provou ser um valor acrescentado; e, como eu já aqui disse, a UE - através da PESD - tem-se mostrado disponível para agir militarmente em áreas onde os nossos aliados americanos - e portanto a NATO - não querem, ou não podem agir;
· Mas falemos agora de uma questão que, apesar de ser de natureza institucional e de ter estado na origem de consideráveis atritos políticos, tem fortes implicações operacionais e militares: a questão do Quartel-general Operacional permanente da União Europeia;
· Como todos sabem, neste momento a União Europeia não possui uma capacidade própria, autónoma de planear e conduzir missões militares; tem um Operations Center embrionário em Bruxelas, que só é activado quando duas condições são preenchidas:
1. Primeiro, a operação militar em causa não é feita no âmbito dos acordos de Berlin Plus (já que, se fosse esse o caso, a operação seria planeada e conduzida a partir de estruturas da NATO);
2. Segundo, nenhum dos cinco Quartéis-Generais nacionais postos à disposição da PESD está disponível.
· De facto, a maior parte das missões militares da PESD tem sido planeada e conduzida a partir de um dos tais cinco Quartéis-Generais nacionais; este 'nomadismo operacional' tem funcionado na prática, mas a que preço: dominam a improvisação, a ausência de memória institucional e operacional e o desperdício de dinheiro e talento; isto sem sequer mencionar as implicações simbólicas de um actor militar como a UE estar desprovido de um órgão permanente e autónomo para levar a cabo as suas operações;
· Os nossos aliados americanos já abandonaram as suas reticências em relação à criação de um Quartel-General permanente para a PESD; parece que neste momento as objecções principais vêm do Reino Unido e tudo indica que se inverteram os papéis tradicionais - agora é Washington a tentar influenciar Londres no sentido de permitir a aquisição, por parte da União Europeia, desta importante peça institucional-operacional que falta ao puzzle da PESD;
· E o que se responde àqueles que temem a duplicação das estruturas de planeamento e condução de operações já existentes na NATO?;
· Simplesmente isto: uma das soluções possíveis seria a de oferecer à NATO a opção de conduzir missões conjuntas com a PESD nos casos em que ambas as organizações se sintam vocacionadas para ir para o terreno - ocorre-me uma possível operação no Darfur onde, no passado, ambas as organizações se mostraram disponíveis para intervir; e nessas missões conjuntas a NATO poderia liderar o planeamento, fazendo também uso dos recursos postos à sua disposição pelo Quartel-general permanente da UE;
· Mas para aquelas operações em que a PESD age autonomamente, a Europa faria uso das suas próprias capacidades de planeamento e das suas próprias capacidade de condução das operações; a razão é simples e já a referi mais acima: a União Europeia é um animal político diferente da NATO, com objectivos diferentes da NATO, que merece ser equipado com os meios institucionais e operacionais de que necessita para fazer o seu trabalho bem feito;
· Termino com algumas palavras sobre a velha questão da divisão de tarefas entre NATO e União Europeia - essencialmente a questão "quem intervém onde?";
· Em relação a este debate parece-me importante evitar atitudes rígidas, baseadas num dogma qualquer, decidido longe das realidades políticas e operacionais no terreno;
· Volto a referir o relatório do Parlamento Europeu sobre as relações entre a União Europeia e a NATO para ilustrar os termos do debate;
· O relator, Ari Vatenen, reduzia originalmente a partilha de tarefas entre NATO e UE a uma simples questão de capacidades militares e defendia que as organizações (e passo a citar):

"...desenvolvessem uma cooperação mais profunda assente num espectro de acção combinado, em que cada uma das organizações cobriria partes do espectro para as quais a outra actualmente não tem capacidade de resposta"

· Esta abordagem é redutora e ignora as questões fundamentais da utilidade da intervenção, da vontade política das respectivas organizações e da aceitação das organizações no teatro de operações; por isso propus uma emenda que, julgo, reflecte melhor a complexidade desta questão; felizmente esta emenda colheu o apoio quase unânime dos meus colegas deputados e esta passagem - fundamental para a questão da complementaridade da PESD com a NATO ao nível operacional - passou a defender que a NATO e a União Europeia pugnassem por (e passo a citar):

"...uma cooperação em operações de gestão de crises assente numa divisão de tarefas pragmática; [o Parlamento Europeu] considera que a decisão sobre qual das organizações deve ser chamada a empregar forças deve basear-se na vontade política exprimida pelas duas organizações, nas necessidades operacionais, na legitimidade política no terreno, e na respectiva capacidade de contribuir para a paz e para a segurança;"
· Tomemos o exemplo de Gaza; imaginemos que amanhã, no contexto de umas tréguas a longo prazo entre o Hamas e Israel, é decidido o envio de uma força militar de interposição internacional e que ninguém, para além da Europa e dos Estados Unidos mostra grande entusiasmo em arriscar as suas tropas no vespeiro do conflito israelo-palestiniano; parece-me evidente que a NATO - baseando-se nas capacidades americanas - seria capaz de mobilizar mais tropas e meios; também não seria difícil de imaginar que a NATO estaria disposta a empregar regras de empenhamento [rules of engagement] mais robustas que a UE;
· Mesmo assim, é infinitamente mais provável que, entre as duas, fosse a União Europeia a escolhida para intervir; a identificação da NATO com os EUA e as consequências de oito anos de desequilíbrio na acção diplomática e militar americana na região condenariam uma missão da NATO no terreno ao fracasso; já falámos da questão da legitimidade no contexto da relevância política da PESD, agora abordamo-la da perspectiva operacional;
· Julgo que, mutatis mutandis, as mesmas conclusões se aplicam a uma possível intervenção ocidental no Darfur;
· Concluindo, a divisão de tarefas entre União Europeia e NATO não pode depender de dogmas político-militares cozinhados em Bruxelas, ou em Washington, mas antes dos imperativos políticos e operacionais no terreno;
· A questão que temos que ser capazes de responder em situações de crise é sempre a seguinte: qual das duas organizações vai ser útil no terreno?; e estou convencida que diferentes situações, diferentes conflitos, suscitarão respostas diferentes;
· Fico à disposição para as vossas perguntas ou pedidos de esclarecimento.

Lisboa, 13 de Fevereiro de 2009

Intervenção (em inglês) sobre a Política de Desenvolvimento Europeia na Plenária do Parlamento Europeu, Bruxelas, 18 de Fevereiro de 2009 

It is crucial to solve the current legislative gap concerning the financing of non-ODA actions in countries covered by the DCI.
This proposal for an instrument to address this gap must preserve the DCI unequivocally as an instrument for ODA. And it must allow for a clear separation between financial sources allocated to pure ODA development cooperation and those allocated to other types of non-ODA development cooperation with developing countries. This separation is a very relevant political message in itself and would give proper visibility to the EU's development cooperation policy.
The new or revised instrument should also be sufficiently broad to cover a wide range of actions that do not comply with the OECD DAC guidelines but are indeed crucial for the EU's cooperation with developing countries, as Commissioner Ferrero-Waldner highlighted: for instance, the AKA gas fields in Iraq, or cooperation for aviation security with India.
This is why I am not am not in agreement with the restrictive legal base proposed in the report. However, I am not convinced either by the alternative presented with the amendment that we are supposed to vote tomorrow.
That is why I suggest that, under the guidance of the rapporteur Thys Berman, we would consider to give more time to a thorough discussion on the legal basis and to find a better solution, namely along the lines of article 181a, as suggested by the Commissioner Ferrero-Waldner.

Bruxelas, 18 de Fevereiro de 2009

19 de fevereiro de 2009

Diana dixit 

Começo por agradecer à Ana Gomes o ter-se lembrado de mim como “convidada especial” deste encontro da rede informal de mulheres portuguesas activas nas áreas de Segurança e Defesa. E digo bem, “lembrado”, visto que há tanto tempo deixei de ser jornalista nestas áreas que é precisa uma boa memória para ainda o recordar. Sobretudo numa altura em que (felizmente!) há já muitas outras jornalistas a tratar estes temas e a distinguir-se como correspondentes de guerra., como, entre muitas outras, a Alexandra Lucas Coelho, a Márcia Rodrigues ou a Cândida Pinto.
Ao preparar a intervenção que aqui viria fazer, surgiu-me a pergunta: como é que o meu nome surge ligado a estas áreas? Por simples acaso, consequência natural de fazer noticiário internacional?
Talvez não. Há, provavelmente, uma explicação mais antiga, que se prende com o facto de ter nascido em Angola, pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial, no ano em que a “jóia da Coroa” do império britânico conseguia a independência e num clima mundial em ebulição. Algumas das pessoas que conhecia tinham fugido de países ocupados pelas tropas de Hitler. A África e a Ásia clamavam por independência e o fim do colonialismo. Ao longo da minha primeira década de vida, via o meu pai seguir atentamente na BBC notícias sobre a Revolta dos Mau-Mau, a guerra da Coreia, a crise do Suez. Apesar de viver numa pequena vila, tudo – incluindo, naturalmente, o facto de os seus habitantes terem diferentes cores de pele, e essa diferença condicionar o seu quotidiano – me mostrava que o mundo era grande e diverso e nada nele nos devia ser estranho. O meu primeiro e único romance, escrito aos 9 anos, foi sobre um soldado chinês que lutava contra os invasores japoneses. Com 14, seguia atentamente as notícias da Argélia e de Angola e sentia-me dividida entre a angústia dos pieds-noirs e a razão dos colonizados. Aos 16, emocionava-me com o sonho de Luther King. Aos 22 era acusada de conspirar contra a segurança interna e externa do Estado português. Aos 27, via as Forças Armadas do colonialismo impor o programa dos 3 Ds, dos quais um era o de descolonização.
Creio, portanto, não admirar que, enquanto jornalista, gostasse de trabalhar no sector internacional. Ora isso implica, normalmente, noticiar conflitos. Quando comecei a trabalhar na RTP, no final dos anos 70, início dos 80, notícias não faltavam: para lá das guerras nas antigas colónias portuguesas, como Angola, Moçambique e Timor-Leste, do derrube do Xá do Irão por uma revolução islâmica e da invasão soviética do Afeganistão, na Nicarágua, a Frente Sandinista punha fim à ditadura de Anastácio Somoza, em El Salvador a Frente Farabundo Marti combatia o Governo de Napoléon Duarte, na Guatemala, o Exército, em nome da Segurança Nacional, massacrava milhares de índios mayas e opositores ao regime; na Ásia, os khmers vermelhos combatiam o novo regime de Phnom Penh e milhares de vietnamitas abandonavam o seu país e faziam-se ao mar em frágeis embarcações, em busca de refúgio.
Estou certamente a esquecer-me de vários outros conflitos, a favor daqueles que tive oportunidade de acompanhar mais de perto, ou por lhes dedicar programas especiais – caso do Vietname e do Irão – ou por vir a conhecer os seus efeitos no decurso de uma repportagem sobre refugiados, em 1983.
Gostava de vos falar sobre essa, porque foi muito importante para mim. O representante em Lisboa do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, Phillipe Lavanchy, tinha proposto à RTP a realização de um programa sobre refugiados, para sensibilizar a opinião pública portuguesa para os dramas dos que nos demandavam em busca de asilo – e, nomeadamente, dos “boat people” que aportavam a Macau. Talvez por ser um tema muito coberto pelas agências internacionais, ninguém mostrou vontade de pegar na proposta, que me foi entregue como um “frete” pouco interessante.
A mim, pareceu-me desde logo fascinante, sobretudo se fosse possível aproveitar o auxílio do ACNUR para falar de diversas situaçoes geeradoraas de refugiados e não apenas dos “boat people”.
É que, a meu ver, a insistência nesses servia a tese de que as violações dos Direitos Humanos eram um exclusivo dos regimes ditos “comunistas” – o que as notícias da América Central, por exemplo, todos os dias desmentiam. Então, porque não tentar saber mais sobre os resultados dos conflitos em curso na América Central? E por quê deixar de fora os refugiados internos criados pela guerra em Angola, país que nos é tão próximo?
Apoiei a minha sugestão com um aspecto prático: filmar os “boat people” implicava dar a volta ao Mundo. Como, na altura, o preço das viagens não aumentava demasiado em função das paragens, porque não criarmos uma rota que permitisse filmar essas outras situações?
Phillipe Lavanchy concordou com a proposta. Dado o apoio do ACNUR, a RTP também não levantou objecções.
Foi assim que comecei por encontrar, nos Estados Unidos, refugiados salvadorenhos e guatemaltecos; na Costa Rica, sobretudo salvadorenhos; nas Honduras, salavadorenhos e também índios miskitos e outros fugitivos dos dois lados do conflito que opunha os Contra ao Governo de Manágua; no México, sobretudo guatemaltecos, índios Maya, catequistas católicos; no Japão, em Macau e Hong-Kong, “boat-people” fugidos do Vietname; na Tailândia, além de vietnamitas, cambojanos e laocianos; no Paquistão, refugiados afegãos; em Angola, uma vez que entrei legalmente, populações fugidas aos ataques da UNITA.
Essa viagem, inesquecível, tornou-me evidentes algumas coisas que já sabia, outras de que suspeitava, algumas em que ainda não pensara.
Desde logo, foi patente como, por diferentes que fossem as culturas, as crenças, a forma de vestir e de saudar, eram iguais as preocupações dos diversos refugiados: o desejo de segurança, para si, mas, sobretudo, para os seus; as saudades de casa e o desejo de um lugar a que pudessem chamar seu; a vontade de trabalhar e se integrar num novo mundo que se dispusesse a aceitá-los – mas, mais forte ainda, a vontade de voltar para casa, se ali tivessem cessado as razões que os tinham levado a fugir.
Depois, que não havia, no que respeitava à violação de direitos humanos, grande diferença entre regimes pró-soviéticos e regimes pró-americanos. Ambos tendiam a olhar os que discordavam como subversivos, perigosos e indignos de serem vistos como iguais.
Também que os grupos de refugiados eram muitas vezes usadas como carne para canhão dos interesses geo-estratégicos das super-potências: o caso dos miskitos refugiados nas Honduras, que recebiam regularmente a visita de diplomatas norte-americanos, tinham armas no interior dos campos e de quando em quando desapareciam às centenas dos campos do ACNUR para ir combater os sandinistas, enquanto que os refugiados salvadorenhos eram estreitamente vigiados, as armas à vista nos campos de refugiados afegãos no Paquistão, também eles sistematicamente recrutados para a Jihad no interior do Afeganistão, eram os mais evidentes, mas talvez não os únicos..
Finalmente, que havia uma imensa ignorância no Ocidente em relação a estes países e estes povos, não por falta de estudos e especialistas – mas sim por falta de consideração por eles e de vontade de os ouvir. (Compreenderão como fiquei contente há uns dias, quando o novo presidente dos EUA declarou ter dito a Geotge Mitchell, enviado ao Médio Oriente, que “começasse por ouvir, porque muito frequentemente os Estados Unidos começam por dar ordens.”)
Como explicar-vos o que em 1983 senti na Costa Rica, quando, ao chegar a um campo de refugiados normalmente descritos como “comunistas”, os vi reunidos numa celebração da Sexta Feira de Paixão? Ou ao ver nesses campos posters, não de Marx, não de Lenin, sequer de Fidel ou Che Guevara, mas de João Paulo II e de Monsenhor Oscar Romero? Ou como senti, mais tarde – como continuo a sentir hoje – que caíram no vazio as palavras do professor norte-americano, especialista em Afeganistão, que contava que, após a invasão soviética, muitas jovens universitárias de Cabul, até aí habituadas à mini-saia, vestiram voluntariamente burkas, como forma de contestar a ocupação?
Estar no terreno, nesses campos de refugiados, ensinou-me muito mais sobre política internacional do que as leituras que até então fizera das notícias das agências internacionais, onde os rótulos seguiam a lógica da guerra fria. Até porque há algo que nenhum jornalista, por melhor que seja, nos pode dar: o contacto directo com outros seres, as suas dores, as suas lágrimas, a sua necessidade de consolo impossível de satisfazer.
Eu teria, sobre outros observadores, uma vantagem: eu própria fora acusada de atentar contra a segurança interna e externa de um Estado cujo governo nenhuma pessoa de bem, se informada, poderia não querer derrubar. Aprendera como as autoridades de um país podem mentir sobre factos, enviezá-los, para mais facilmente perseguirem os que se lhe opõem, ou os que consideram descartáveis. Por isso, muito do que aquelas pessoas me diziam fazia sentido para mim e não aceitava com facilidade os rótulos que lhes eram apostos. (Como imaginar “subversiva” a senhora de idade que me dizia que sim, tinha ocupado com outros uma embaixada estrangeira – mas é que tinha medo, muito medo, por que na sua terra matavam tanta gente? Ou a jovem grávida que me dizia, como única explicação para a morte do marido, que “era estudante – e, na Guatemala, matavam muitas vezes os estudantes”... Ou a sindicalista salvadorenha, professora, que os militares tinham abandonado numa vala, julgando-a morta, após vária sessões de tortura – incluindo a violação com o cano de uma espingarda – e um simulacro de enforcamento? )
A verdade é que muito nos é dito a nós, jornalistas, sem que o oiçamos correctamente. E muito mais ainda é dito por nós, sem que alguém nos oiça. Quando uma palestiniana, responsável do Crescente Vermelho, diz “A nossa principal preocupação é cuidar das crianças, porque, se não, quem nos substituirá?”, qualquer jornalista intui que essa substituição é na luta e que nesses campos de refugiados – como não pode deixar de ser – se perpetua a revolta e se preparam novas Intifadas. Mas quantas pessoas, quantos políticos portugueses a terão ouvido, quando, no início dos anos 80, a RTP emitiu as suas palavras?
Em 1985, durante a guerra Irão/Iraque, no Iraque, tornou-se-me evidente o carácter ditatorial do regime de Saddam Hussein. Mas ao regressar, houve quem duvidasse. Quem se interessava então pelos direitos humanos dos opositores, ou dos curdos? O inimigo era, nessa altura, o Irão...
O problema é que, demasiadas vezes, os seres humanos são considerados factores descartáveis nas questões geo-estratégicas. Como me tornou claro, em 1983, um embaixador norte-americano, ao falar-lhe dos massacres levados a cabo pelos indonésios em Timor-Leste: “Compreende”, disse ele, “o problema dos timorenses é terem nascido numa zona de grande importância geo-estratégica”. Subentendendo que não se podia deixar o contrôlo de uma área tão importante para o conflito das super-potências nas mãos de um bando de jovens rotulados de comunistas.
Tudo isto foi há muito tempo, as coisas mudaram muito entretanto, mas a sensação com que fiquei, da experiência no terreno, é que a primeira coisa necessária a um mundo mais seguro é combater a ignorância e o deconhecimento do Outro. E temo que isso não tenha mudado. Não foram poucas as vezes em que, nestes últimos anos, me recordei de Kissinger dizer a Mário Soares, a propósito de alguns erros da política externa norte-americana, que só 17 congressistas tinham passaporte... Talvez a recomendação de Obama a George Mitchell tenha afinal a ver com essa coisa tão simples que é conhecer outros países e outras culturas. E creio que todo o caminho para a paz tem de passar por aí – o que implica, também, um grande trabalho dos media.
Alguns meses depois do 11 de Setembro – e gostava que pensassem por um momento como foi fácil levar a opinião pública a sentir-se norte-americana depois desse 11 de Setembro – pediram-me uma intervenção sobre terrorismo. Senti-me ainda mais insegura do que para falar sobre segurança e defesa. Foi então que me lembrei de um livro, que muitas de vós terão lido, “A Condição Humana”, de André Malraux, da solidão de Tchen no quarto do homem que deve matar, preparando o gesto que o separará para sempre dos outros homens, nauseado por esse gesto que deve cumprir, esse gesto não de um combatente, mas de um assassino. “Assassinar não é só matar...” A dificuldade de tocá-lo mais que de matá-lo, porque tocando a sua carne o homem que dorme retoma a sua natureza humana, e já não é apenas um obstáculo a eliminar, nem mesmo um inimigo, mas alguém que faz parte do mesmo grupo a que o seu sacrificador pertence. Lembrei-me do momento em que, sob o medo do acordar do homem que dorme, Tchen logra fazer o movimento que o levara até aí, o golpe do punhal que busca o coração, e do momento seguinte, aquele em que fica irremediavelmente só, confrontado com o silêncio e essa espécie de vertigem em que mergulhou, para sempre separado do mundo dos vivos, esmagado simultaneamente pelo horror e o gosto do sangue. Senti com ele a vontade de tocar alguém vivo e a necessidade de olhar-se ao espelho, onde a sua face reflectida não mostrava o horror do acto acabado de cometer. (“A criança que se sabia possuída pelo Demónio ia ver no espelho se nada transparecia”, escreveu Guillevic.) E compreendi como, para Tchen, que a morte do intermediário separara para sempre dos outros homens, o terrorismo se impôs como um sentido de vida, o único capaz de o fazer sentir-se na posse completa de si mesmo.
Sei que muitos defendem que é preciso condenar o terrorismo e não compreendê-lo, mas discordo: acho que é preciso ler “A Condição Humana” e compreender Tchen, porque Tchen, como o sabem tantos homens traumatizados por actos cometidos na guerra, tantos assassinos que se não reconhecem no seu crime, vive afinal em cada um de nós.
É em nome de Tchen – ou em nome de Malraux e desse livro admirável sobre a solidão, o absurdo, o horror e a nobreza da condição humana – que cada acto de terrorismo me merece uma reflexão outra que a simples condenação. É fácil condenar, mas não me basta. Preciso de mais, preciso de compreender por que é que alguém escolhe cortar-se assim da Humanidade, por que é que em alguém a Humanidade se esvaíu a tal ponto que se torna capaz de negá-la.
Compreendo assim melhor os atentados suicidas: a solidão de Tchen, a terrível, dolorosa solidão de Tchen, ensinou-me que é mais fácil morrer com o seu crime que sobreviver com ele. E não só para o próprio, porque a violência que se desperta num ser humano pode tornar-se incontrolável mesmo para aquele que a despertou. E a náusea de Tchen, o seu horror, perante os sinais de vida que lhe chegam desse homem que deve matar, que sabe que matará, ensinou-me aquilo que todos os carrascos sabem: como são importantes as vendas e os capuzes colocados sobre aqueles que se devem abater, para que nunca um sorriso, um olhar, uma cumplicidade possa estabelecer-se entre o que vai ser morto e o que deve matá-lo. Como tão bem o mostra uma outra obra, “Jogo de Lágrimas” (“The crying game”), de Neil Jordan, em que, aos poucos, para aquele que deve matar, se torna insuportável abater alguém que viu comer, chorar, rir, ter medo, que lhe mostrou a fotografia da namorada, porque a Humanidade, em nós, é algo que custa matar, que, até onde o consigo compreender, só pode ser morto por qualquer coisa ainda mais forte: a recusa, pelo outro, dessa Humanidade em nós.
Há alguns anos, nas ruas de Bordéus, um homem que Aristides Sousa Mendes salvara dos campos de concentração explicou-me claramente esse processo: depois de uma passagem por Portugal, seguira com os pais e irmãos para os Estados Unidos e, aos 18 anos, fora integrado, como tradutor, no Exército norte-americano e enviado de novo para a Europa. “Era muito jovem”, disse-me, “e quando via soldados mortos não conseguia deixar de chorar. Mas um dia percebi que só chorava quando os mortos eram das tropas aliadas: se fossem nazis, não chorava. Foi quando percebi que também eu podia ser um nazi.” Sim, não é uma questão de ser ariano ou semita: apenas uma questão de negar no Outro aquilo que tem em comum connosco, a sua Humanidade. Os nazis tinham destruído a sua inocência, a sua fé no Homem; tinham-lhe implantado o ódio; e, por esse ódio, assemelhava-se a eles.
Foi por esse judeu belga, que hoje se diz apenas “novaiorquino”, que percebi melhor a (condenável) actuação de Israel em relação aos palestinianos e também os (igualmente condenáveis) atentados em nome da Palestina.
Foi por ele – a primeira pessoa a quem telefonei a 11 de Setembro de 2001 – como por Malraux e por essa personagem trágica que é Tchen, que os atentados suicidas contra as Torres Gémeas de Manhattan não me impuseram sómente a (natural, evidente) condenação, mas a necessidade de perceber. E não creio que haja nessa necessidade, na posição daqueles que, face aos atentados, tentam compreendê-los pela acumulação da violência silenciosa que é a humilhação, qualquer conivência com o terrorismo. Pelo contrário: só entendendo as suas causas é possível, se não erradicá-lo, ao menos diminui-lo significativamente.
Há frases que, nos últimos e (aparentemente) apolíticos anos parecem ter desaparecido das nossas memórias. Frases que, há uns anos, todos citávamos, possívelmente sem mesmo nos apercebermos do seu real significado. Frases como “nada mais tendes a perder que as vossas grilhetas” ou “onde há opressão, há resistência”. Em países onde o consumidor substituiu o cidadão, onde é a obesidade, mais do que a fome, a merecer alertas médicos (até porque os que sentem a fome não interessam porque não consomem), essas frases parecem hoje destituídas de sentido, próprias apenas a dinossáurios incapazes de entender que os tempos mudaram e só o sucesso individual interessa. E, porque nos parecem destituídas de sentido aqui, julgamo-las aplicáveis a todo o Mundo. E, porque nos parecem destituídas de sentido no nosso conforto, julgamo-las sem sentido para outros, que se sentem afastados do nosso Mundo por razões de miséria, normalmente, mas também de cor da pele, de costumes ou de religião.
Isolados no nosso bem-estar, desatentos de todos os valores que não os do dinheiro, tornámo-nos incapazes de perceber os outros, e só estremecemos quando vemos que – tão perto de nós, nos Balcãs – a violência pode irromper por razões que se nos afiguram anacrónicas, como a religião ou a vingança da morte de antepassados ou membros do clã. Ou o orgulho ferido, como na Irlanda do Norte ou no País Basco.
Porque já não reagimos às afrontas com o duelo, deixámos de compreender que o orgulho ferido gera a violência, e que só nessa violência, na vingança sangrenta, excessiva, sobre o Outro que o humilha, pode o humilhado reencontrar-se, readquirir a posse completa de si-mesmo.
É isso, afinal, o terrorismo. O ódio feito acção, a humilhação vingada pelo sangue e a humilhação do Outro, por quem nos sentimos negados na nossa Humanidade.
Temo que, não compreendendo isso, estejamos a criar o aumento do terrorismo, não a sua diminuição. Como os conflitos no Médio Oriente ou na Europa de Leste sobejamente o demonstram – para não falar de outros, menos mediáticos – o ódio e a violência que este gera não se extinguem numa geração ou em décadas de aparente paz. A opressão e a humilhação continuam a vingar-se com sangue, e não há bombardeamento norte-americano que garanta que, daqui por uns anos, uma criança afegã ou iraquiana não vingue num qualquer cidadão dos Estados Unidos a morte dos seus pais – como nenhuma violência israelita conseguiu pôr fim aos atentados suicidas de jovens palestinianos. Como não há pena, por mais pesada que seja, que evite que, algures num país do Ocidente, alguém vingue num patrão a humilhação de ter sido despedido e privado de trabalho e de salário, ou nos carros dos burgueses a humilhação de viver num bairro periférico e andar de maus transportes públicos.
O terrorismo é a ponta visível, o grito do mal-estar absoluto – algo que nos é tanto mais dificil perceber quanto os tempos nos parecem de relativização. E provoca-nos, a nós que tentámos afastar de nós todo o desconforto, que remetemos a morte para os Hospitais, tomamos pílulas para suportar o absurdo do Mundo e postergamos a velhice, o horror absoluto. É essa a vantagem dos terroristas sobre nós: numa vida sem sentido, o suicídio em nome de uma causa pode ser a única coisa que os justifica; e nós, de tanto que nos afastámos deles, deixámos de ser seus semelhantes, para sermos apenas os que os olham e os julgam. [1]Os que os descrevem como tendo todos os males e todas as taras.
Já alguma vez repararam como usam ser estrangeiros os maus dos filmes de Hollywood? Já repararam como têm cor e origem os bandidos dos muitos programas de televisão sobre a acção policial? Já repararam como nós, os defensores do Estado de Direito e da Convenção de Genebra, achamos normal que se matem Bin Laden e os membros da El-Qaeda? Já repararam como, sem disso darmos conta, continuamos a dividir o Mundo entre os Homens e os Outros?
O terrorismo é o mal absoluto? Talvez. Mas como perante Tchen, perante a náusea que o invade ao saber que vai matar, não consigo deixar de me perguntar: e qual é a minha, a nossa responsabilidade nesse mal?
E só tentando responder a essa pergunta poderemos, creio, caminhar para a paz. Talvez a crise que agora atravessamos e que abalou os alicerces da nossa falsa segurança possa vir a ser uma oportunidade nesse caminho.

Diana Andringa
6 de Fevereiro de 2009


[1] “Les hommes ne sont pas mes semblables. Ils sont ceux qui me regardent et qui me jugent.” André Malraux, “La Condition Humaine”

Intervenção sobre a Política Europeia de Segurança e Defesa e a NATO na Plenária do Parlamento Europeu, Bruxelas, 18 de Fevereiro de 2009 

Agradeço aos relatores Ari Vatanen e Karl von Wogau o seu trabalho e esforço de consenso, em especial no difícil tema das doutrinas nucleares, que é urgente que a UE e a NATO revejam num tempo em que o Presidente Obama ressuscita o objectivo de libertar o mundo de armas nucleares e dois submarinos europeus com armas nucleares quase provocaram uma catástrofe.
Os relatórios Vatanen e Von Wogau apontam a necessidade de uma União Europeia política, estratégica e operacionalmente autónoma através de uma PESD ambiciosa; precisamos dos instrumentos institucionais, financeiros e operacionais para concretizar estes objectivos.
Por isso exigimos estreita colaboração entre NATO e UE baseada no respeito pela autonomia política de cada uma das organizações, que são complementares; por isso exigimos a criação de um Quartel-General permanente da UE em Bruxelas capaz de planear e conduzir autonomamente operações militares da PESD; por isso exigimos que os Estados Membros da União intensifiquem os seus esforços para gastar melhor, de forma mais eficiente, e mais europeia, uns orçamentos nacionais de defesa que, isoladamente, pouco podem.
A mensagem deste Parlamento é inequívoca e serve de aviso: sem a Europa da Defesa a Defesa na Europa fica posta em causa. Em causa poderão ficar as nossas indústrias de defesa; em causa poderão ficar as capacidades de que a Europa precisa para exercer a sua responsabilidade de proteger populações civis e evitar massacres e genocídios; e em causa poderá ficar a Europa como actor global na gestão de crises.
A extensão da integração política europeia à segurança e à defesa, como previsto no Tratado de Lisboa, é urgente e deve ser acelerada: não só no interesse da União Europeia, mas também no da NATO, já que ambas as organizações colherão os frutos de uma Europa mais bem equipada para lidar com os crescentes desafios à segurança dos europeus e à segurança global.

Bruxelas, 18 de Fevereiro de 2009

14 de fevereiro de 2009

No jantar de aniversário do General Ramalho Eanes 

"Este jantar que nos reune aqui todos os anos é uma festa de aniversário e é também uma homenagem a uma pessoa que tem um significado especial para nós. Mas é mais coisas, além disto. A verdade é que é, também, um reencontro baseado na saudade.
Eu gostava de começar por este lado, mesmo que não seja o mais importante. Penso que temos o nosso direito à saudade. À medida que os anos passam, e fazemos esta viagem de volta às nossas memórias, encontramos num lugar muito especial o período em que tivémos o gosto, e o privilégio, e a honra de fazer parte da equipa que o Presidente da República, General Ramalho Eanes, escolheu para o acompanhar no Palácio de Belém.
Esta saudade não é lamechas. Nestas coisas é sempre possível dizer que temos saudade do tempo em que éramos mais novos. É claro que temos, e temos direito a ter. Mas não é só isso.
Esse tempo - que não foi macio, que vinha de uma instabilidade ainda muito recente, que foi de esforço de consolidação democrática, e de crispação política muitas vezes - esse tempo que passámos juntos desenvolveu entre nós relações de confiança e de camaradagem, que se tornaram, naturalmente, relações de amizade pessoal. Temos saudades disso tudo. Mas há mais.
As diversas situações que vivemos nesse tempo desenvolveram também aquilo a que se chama, em linguagem desportiva, “amor à camisola” - ou, em linguagem mais militar, “espírito de corpo”.
Pelo lado do desporto, nós tivémos o privilégio de ser escolhidos pelo treinador, que nos ensinou a marcar e que nos desculpou eventuais faltas de coesão e concentração como equipa.
Pelo outro lado, do “espírito de corpo” - que é uma expressão curiosa, muito forte de sentido - aprendemos o gosto de seguir uma liderança em que se pode confiar, que se impõe pelo prestígio do comandante, resultando naquela lealdade espontânea que nos torna combatentes da mesma unidade.
De uma forma ou de outra, a verdade é que nós fizémos parte dessa equipa, e somos veteranos grisalhos dessa companhia - e essa medalha já ninguém nos tira. A verdade é que nós estivémos lá - e gostámos de estar! E ficamos gratos ao Senhor General Ramalho Eanes, nosso Presidente, por nos ter convocado. Estas coisas nunca mais se esquecem!
Agora falando do presente. Bem, o presente não está famoso e o que vem aí pode ser muito complicado. No final de Outubro, lembro-me de ter lido uma notícia que me deixou estupefacto, mas esclarecido. O antigo presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos, Alan Greenspan, foi chamado ao Congresso e teve de reconhecer que já não acreditava em coisas em que tinha acreditado durante 40 anos. Nomeadamente, que o mercado livre era capaz de se regular a si próprio, mesmo quando alimentava fortunas baseadas na especulação financeira. E teve a coragem de reconhecer o que aí vem: mais desemprego e menos consumo das famílias.
O problema é que enquanto ele falava os protagonistas desta irresponsabilidade toda continuavam a sair para reformas chorudas. Afundavam os bancos que tinham dirigido e recebiam prémios de boa prestação de serviços.
Não me cabe fazer neste local um discurso sobre a crise, nem tenho competência para tanto. Mas isto vem a propósito de outra coisa. É que pouco antes destas notícias sobre a perplexidade (e a indignação) que nos causam aqueles comportamentos, apareceu na nossa Imprensa uma outra, sobre um comportamento completamente diferente. E aqui é que voltamos a “jogar em casa”.
Há um País em que a classe política, ao fim de bastante tempo, lá conseguiu pôr-se de acordo para corrigir uma “injustificada diferença de tratamento” e uma “iniquidade” - foi assim, nestes termos, que foi classificada pelo Provedor de Justiça - praticada no caso da subvenção vitalícia atribuída a um Presidente da República. Ora esta simples reposição da justiça implicava, naturalmente, o pagamento dos retroactivos em falta - de mais de vinte anos em atraso... Mas este Presidente, o nosso Presidente, dispensou beneficiar desse direito legítimo.
Há coisas que não mudam o mundo, mas ficam como exemplo e como lição de superioridade moral. São exemplos e são atitudes que se comunicam por efeito de contágio. Do lado oposto da ganância, da especulação e da irresponsabilidade, também há quem cultive uma ética de frugalidade, de sobriedade e de solidariedade.
São estes valores que importa redescobrir, no “perigoso mundo novo” em que estamos a entrar. Senhor General Ramalho Eanes, nosso Presidente, o senhor não tem meios para meter este mundo na ordem - e nós temos pena. Mas queremos dizer-lhe que sabemos ver a diferença de qualidade, onde ela está, e temos orgulho em ter trabalhado consigo.
Senhor General, nosso Presidente, muito obrigado por estar vivo, muito obrigado por fazer anos, e contamos consigo aqui, no mesmo local e à mesma hora, para o ano que vem. Muito obrigado!"

Silas Oliveira
13.2.2009

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