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1 de maio de 2011

A primeira condição do Estado social 

Por Vital Moreira

Embora por razões diferentes, há uma coisa em que o radicalismo de esquerda concorda com o neoliberalismo - na suposta incompatibilidade entre consolidação orçamental e Estado social. Os neoliberais acham que não é possível equilibrar as contas públicas sem descartar o Estado social. A esquerda radical entende que o saneamento das finanças públicas é uma receita para acabar com o Estado social. Tão pouca razão têm uns como os outros.

Face ao crescente desequilíbrio das finanças públicas, que a grande crise financeira e económica global de 2007-2009 só agravou, a generalidade dos Estados europeus passa por programas de intensa austeridade financeira, como única via para reduzir os défices orçamentais e conter o crescimento da dívida pública, sob pena de degradação do seu crédito internacional e de incapacidade para se financiarem nos mercados financeiros internacionais a custo aceitável.

Nesse "estado de necessidade financeira" é difícil fugir à tentação de cortar a eito na despesa pública, incluindo na educação, na saúde e na proteção social, até por constituírem grandes agregados nos gastos públicos. Só uma grande convicção política e uma forte determinação governativa podem resistir a essa tentação. A Irlanda é um bom exemplo daquela via, sacrificando o próprio salário mínimo e a generalidade das pensões, ao passo que o generosamente baixo imposto sobre lucros das empresas se manteve intocado! Mas não tem de ser assim. Mesmo quando é imperiosa uma redução substancial da despesa, sempre é possível minorar os cortes na despesa social, como sucede entre nós.

Todos os dias, porém, a nossa esquerda radical proclama a "destruição do Estado social" às mãos da austeridade orçamental. É evidente que a redução substancial da despesa pública, conjugada com a estreita margem de aumento da receita (desde logo pelo débil crescimento da economia), não pode deixar de incluir a contenção ou mesmo a diminuição da despesa social, bem como a busca de uma maior eficiência financeira dos serviços públicos e das prestações públicas. Mas nem por isso se pode falar responsavelmente de "ataque ao Estado social", desde que os seus traços essenciais se mantenham, como é o caso.

Antes de mais, o Estado social não tem um programa absoluto nem uma dimensão canónica. O perímetro concreto não é intangível. Muito menos pode ser insensível às crises orçamentais. Por exemplo, as prestações conferidas a título transitório para atenuar os efeitos sociais de uma crise económica, como sucedeu recentemente, não podem dar-se por intocáveis, uma vez passadas as circunstâncias que as justificaram.

Entre nós, quase todos os casos de redução de prestações sociais decorrem da descontinuação de prestações extraordinárias criadas em 2008 e 2009 para atenuar o impacto social da severa recessão económica (o que conseguiram). Terminada a crise económica - visto que Portugal voltou ao crescimento este ano, aliás acima do esperado -, não havia razão para manter essas medidas conjunturais, sobretudo tendo em conta a necessidade de redução do grande défice público herdado de 2009. Se não pode aceitar-se sem condições a ideia de irreversibilidade do "acquis social" em geral, muito menos se pode dar por adquirido aquilo que foi concedido a título excecional em circunstâncias especiais.

Muito menos se pode considerar como "ataque ao Estado social" a retirada de prestações àqueles que a elas não têm direito, como sucede com quem beneficia indevidamente de subsídio de desemprego (por estar efetivamente a trabalhar) ou do "rendimento social de inserção" e outras prestações não contributivas, por não passar no teste da "condição de recursos". As notícias relativas ao número dos que indevidamente recebiam tais prestações sociais devem ser saudadas como um avanço na redução de abusos e não como uma censurável demonstração da impiedade das medidas de austeridade.

Tampouco podem ser consideradas como lesivas do Estado social as medidas relativas ao setor público, mesmo quando se traduzem numa redução de remunerações. A verdade é que tal redução poupa as remunerações mais baixas e que o nível de remunerações no setor público é em média mais elevado do que no setor privado, sem contar a inestimável mais valia que é a segurança reforçada no emprego. De resto, se há que reduzir a sério a despesa pública, uma das áreas onde isso não pode deixar de suceder é justamente a despesa com o pessoal, comparativamente elevada entre nós. A alternativa à redução de remunerações só poderia ser o despedimento de uma parte do pessoal. Poucos contestarão que a opção escolhida foi a menos nociva.

O mesmo se diga finalmente da atualização das tarifas dos serviços básicos de caráter económico, como a água, os transportes públicos, a energia, etc. Não há nenhuma razão para que esses "serviços de interesse geral" sejam maciçamente deficitários, à custa do orçamento. As únicas imposições do princípio do Estado social nesta matéria são as "obrigações de serviço universal", de modo a garantir a todos o acesso a esses serviços, bem como a obrigação de tarifas sociais, destinadas aos utentes de mais baixos rendimentos. Mas nenhuma razão existe para que os demais utentes não paguem o custo real do serviço que recebem.

O Estado social é garantia de um mínimo de bem-estar para todos e de acesso a um conjunto de serviços essenciais a uma vida condigna (alimentação e habitação, água e energia, educação, saúde e segurança social). Mas não se exija ao Estado social que ele proporcione também o que ele não pode dar, nem é suposto dever dar, sob pena de insustentabilidade financeira.

Muito menos se peça que seja custeado pelo endividamento público. A primeira condição do Estado social é a capacidade das finanças públicas de o pagarem. No dia em que estas claudicassem, ele seria a primeira vítima.

(Público,terça-feira, 21 de Dezembro de 2010)

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