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17 de julho de 2011

Reforma Administrativa 

Por Maria Manuel Leitão Marques

Actualmente, em cada concelho, encontramos, quase sempre, pelo menos um tribunal, uma conservatória de registos, uma repartição de finanças e uma delegação da segurança social, além dos respectivos serviços municipais.
Mais do que discutir se devemos ter menos 5, 10 ou 30% das actuais freguesias ou concelhos, embora essa discussão não seja em si despicienda, importa olhar para o território com toda a atenção para saber como reorganizar esta rede de serviços públicos da Administração central de uma forma mais racional e eficiente.
É por demais evidente, com a Troika ou sem ela, que manter alguns destes serviços abertos no seu actual formato, para servir muito esporadicamente 5000 ou 4000 habitantes ou até menos do que isso, dificilmente pode ser justificado. Não se trata de serviços de urgência nem tão pouco de serviços de uso frequente. Quantas vezes por ano um cidadão vai a uma conservatória, a um tribunal ou a uma repartição de finanças?
Os meios e vias de comunicação oferecem hoje condições de mobilidade que não existiam quando esta rede de serviços foi pensada, no século passado, facilitando a sua reorganização por áreas de influência. (Uma reorganização de resto extensível a equipamentos municipais, como pavilhões multiusos e parques industriais, que também deviam ser partilhados).
Além disso, as novas tecnologias permitem desenvolver outro tipo de formatos para prestar aqueles serviços, mantendo-os na proximidade dos seus utentes, talvez até maior, sem os custos excessivos que implica a rede na sua actual configuração. Serviços partilhados em Lojas do Cidadão, incluindo lojas móveis que vão às freguesias, como acontece em Palmela; serviços de diferentes entidades prestados no mesmo balcão de atendimento, como os balcões multi-serviços; utilização dos meios das juntas de freguesia para disponibilizar serviços públicos da Administração central, como já sucede com as declarações de IRS, ou para o uso apoiado de outros serviços electrónicos; são apenas algumas das soluções que estão aí já experimentadas e ao alcance de quem as entender replicar. E não são as únicas.
Parece tudo simples, não é? Seria a última a dizer que sim. Sei, por experiência própria, que nunca é fácil mudar o que, de tão enraizado, parece ter sido feito para sempre. Mas também sei que são reformas possíveis e que não devem ser adiadas só porque são difíceis ou porque os seus efeitos na despesa não são tão imediatos como outras medidas já anunciadas.
Veremos o que vai acontecer.
[Publicado em Diário As Beiras - 16-7-2011]

10 de julho de 2011

Em graça 

Por Maria Manuel Leitão Marques

Foi com algum espanto e admiração que vi como grande título de primeira página de um jornal diário a história da viagem do Primeiro-Ministro para Bruxelas em classe económica.
Não porque ache errada a opção, mas porque de todo não é novidade no Governo.
Em 2005, mesmo sem todas as exigências de contenção em que vivemos, essa foi essa a regra definida pelo então Ministro António Costa para os voos inferiores a 4 h, creio, mas não o posso jurar, seguida também por outros membros do Governo.
A excepção foram os voos cedidos pela TAP. Neste caso, a companhia disponibiliza lugares em classe executiva, mesmo quando expressamente são solicitados em económica (foi essa a minha experiência). Penso e compreensivelmente que será por se tratar da classe onde tem mais lugares vagos, visto que a cedência depende sempre dessa disponibilidade. Quando assim acontece e ao contrário o que foi dito por aí, mesmo suportando as taxas aeroportuárias, o custo da viagem é inferior ao de adquirir um voo normal em classe económica. Só uma grande irracionalidade, existindo tal acordo, levaria assim alguém a desprezá-lo.
Devo acrescentar que no meu caso levei até mais longe o estipulado e viajei em económica mesmo em voos de longa duração. O meu princípio foi o de não fazer o Estado pagar por uma viagem oficial um preço que eu não pagaria se a viagem fosse a título pessoal. Esta não é, contudo, uma recomendação. Ainda que não se morra disso, é bastante cansativo fazer um voo de mais de 12 h, coordenar uma reunião de 7 h e voltar de seguida ao trabalho demorando outras 14h.
Enfim, acho que a dita história valerá pelo exemplo. O que me pareceu excessiva foi a pompa e circunstância em torno dela. Alguma discrição pode ser conveniente sob pena de o feitiço se virar contra o feiticeiro na primeira oportunidade e por mais justificada que ela seja. Atribuamos este excesso à intensidade da graça do Governo. Longa seja ela, que alguma paz ajuda a uma boa governação.
[Diário As Beiras - 2 de Julho 2011]

9 de julho de 2011

"Depois de mim virá..." 

Por Vital Moreira

No passado, vários governos violaram os seus compromissos eleitorais de não subir impostos. Nenhum, porém, o fez tão celeremente como Passos Coelho, que logo na discussão do programa do Governo, ainda antes de começar a governar, anunciou um imposto especial que não estava previsto no programa de reajustamento da troika e cuja eventualidade negara antes das eleições. Com a agravante de que desta vez, depois do intenso escrutínio da situação económica e financeira nacional pela UE e pelo FMI, não podia haver nenhum motivo para surpresas nessa área.

Tendo sido a mais rápida quebra de um compromisso de não subir impostos, também foi aquela em que a justificação invocada foi a mais "esfarrapada". De facto, o pretexto invocado - a publicação do saldo orçamental do primeiro trimestre - é duplamente falso. Primeiro, como o semanário Expresso informou, a decisão sobre o novo imposto já tinha sido tomada antes dessa notícia. Segundo, como o próprio INE bem explicou, o referido saldo orçamental não compara receitas e gastos efetivos mas sim receitas efetivas (aliás, nem todas) com compromissos de gastos, incluindo os que só vão ser efetuados posteriormente. Por isso o défice apresentado é artificialmente empolado em relação à situação real.

Sendo descarado o argumento, o Governo teria feito bem melhor se tivesse referido a verdadeira razão, a saber, a vontade de "ir além do programa da troika" em matéria de austeridade orçamental, de modo a apresentar no fim do ano o brilharete de um défice orçamental inferior ao previsto, ou para utilizar a receita adicional do imposto para financiar a prometida benesse ao patronato, de redução da sua contribuição para a segurança social (TSU), cujo modo de financiamento nunca foi esclarecida. Qualquer que seja a explicação verdadeira, a falsidade do pretexto invocado constitui uma forma pouco escrupulosa de fazer política.

Também nunca um novo imposto foi anunciado de forma tão incompleta nem tão confusa, revelando amadorismo político e falta de respeito pelo Parlamento e pela opinião pública. Apresentado como uma espécie de IRS suplementar, não se deram a conhecer porém alguns dos traços essenciais de qualquer imposto, como os rendimentos que lhe ficam sujeitos ou as taxas do imposto. Só se sabe a receita que o imposto há de gerar (equivalente a metade da receita do 14.º mês) e a dedução de base (equivalente ao salário mínimo nacional), o que é francamente pouco. Desconhece-se também como é que vai ser respeitada a regra constitucional da irretroatividade fiscal (que não admite exceções), que obriga a que o novo imposto só possa incidir sobre rendimentos futuros, e não sobre os já recebidos. Acima de tudo, não se sabe a que propósito se invocou o subsídio de Natal, que gerou na imprensa, mesmo a da área económica, as mais absurdas especulações, calculadas exclusivamente sobre o valor do 14.º mês de cada pessoa. Não havia necessidade de tanto atabalhoamento nem de tanta inépcia. Se isto é a forma de trabalhar deste Governo, bem podemos ficar preocupados.

Não se conhecendo os principais contornos do novo imposto, há todavia sérias razões para duvidar da sua equidade. Em primeiro lugar, trata-se de um imposto sobre o rendimento e não sobre o consumo ou sobre o património (na Grécia, lançou-se um imposto extraordinário sobre sinais manifestos de riqueza, como piscinas, iates e aeronaves, obviamente bastante mais justo e fácil de aplicar, mas trata-se de um Governo socialista...). Em segundo lugar, o primeiro-ministro nada disse sobre a progressividade das taxas do imposto, o que é extraordinariamente grave, desde logo por violação da regra constitucional da progressividade da tributação do rendimento, para mais num imposto especial de (alegada) emergência nacional, onde a justiça fiscal se justifica mais ainda. Em terceiro lugar, se o novo imposto se aplica aos rendimentos englobados em IRS, parece seguro que ele vai isentar os rendimentos de capital - como dividendos, juros de depósitos e de obrigações -, o que é uma iniquidade, não somente porque tais rendimentos já gozam do privilégio de uma baixa "taxa liberatória" proporcional (não contando eles sequer para o cálculo da taxa sobre os demais rendimentos), mas também por se tratar de um imposto extraordinário, onde a solidariedade coletiva exigia que eles também dessem a sua contribuição.

Batendo este imposto especial recordes de celeridade na quebra de compromissos eleitorais, de inconsistência da sua justificação, de confusão na sua apresentação e, tudo o indica, de iniquidade fiscal, não pode deixar de causar enorme espanto o conformismo, se não aplauso, com que o anúncio foi recebido pela generalidade da imprensa e pelos grupos de interesse, que não teriam perdoado tal veleidade ao anterior Governo, que teria sido obviamente crucificado se tivesse avançado com algo de semelhante, como muitos propuseram. Há governos fadados assim, "os nossos", a quem tudo se aceita.

Pelo mesmo padrão, também se não estranha a ausência de qualquer comentário do Presidente da República, que, no discurso da sua tomada de posse, com o qual declarou guerra ao Governo socialista e desencadeou o processo do seu derrube, proclamou retoricamente que "há limites aos sacrifícios que se podem pedir aos cidadãos". Pelos vistos, os sacrifícios que não eram tolerados ao anterior Governo podem agora ser superados, com magnânimo aplauso, pelo novo Governo. Há governos assim, os diletos, a quem tudo se consente.

Razão tinha José Sócrates quando advertiu em devido tempo que, em matéria de austeridade, "ainda iríamos ter saudades do PEC IV" (onde nenhum imposto desses aparecia). Também nesta área se pode dizer que "depois de mim virá..."

[Público, terça-feira, 5 de Julho de 2011]

Tirar partido das crises 

Por Vital Moreira

A julgar pela opinião dominante, há um espetro que ensombra a Europa - a ameaça da desagregação do euro e do reforço político dos movimentos antieuropeístas em vários países, com risco para a própria União Europeia. Há obviamente quem deseje tal desenlace, por ser contra um e contra outra, ansiando por que os seus desejos se tornem realidade. Mas há também muitos genuínos europeístas que temem que a atual situação de dificuldade da moeda única e de crescimento do antieuropeísmo se deteriore sem recuo e sem remédio. Urge questionar o bem fundado das esperanças dos primeiros e dos temores dos segundos.

Se esta é sem dívida a curva mais apertada da curta história do euro, não é menos verdade que não é a primeira situação de crise da integração europeia. Pelo contrário, ao longo do meio século desta não faltaram situações de impasse e de incerteza sobre o futuro, desde a "birra" de De Gaulle em 1966 ("crise da cadeira vazia") até à rejeição do Tratado Constitucional em 2005. Em todos os casos, com mais ou menos demora e dificuldades, a Europa "deu a volta por cima", conseguindo sair mais forte e mais coesa do que antes. Não falta quem desde há muito tenha defendido uma teoria da virtude das crises europeias. É na resposta e superação das dificuldades que se lhe têm deparado que a integração europeia tem dado os seus mais largos passos em frente. Sem os obstáculos que tem sido obrigada a superar, a União Europeia (nos seus diversos avatares ao longo do tempo) não seria o que é hoje.

O mesmo se pode dizer da presente crise, cuja primeira fase se traduziu na crise bancária (e logo depois económica) importada dos Estados Unidos em 2008, tendo afetado quase todos os países da União, e cuja segunda fase se desencadeou com a crise da dívida soberana grega de 2010, tendo depois passado à Irlanda e a Portugal, mantendo sob pressão outros países menos vulneráveis mas ainda assim sob a mira dos mercados. Ao longo dos dois últimos anos a União foi tomando um conjunto de medidas políticas e legislativas para responder a estas duas crises que antes ninguém imaginaria pudessem vir a ser tomadas, mesmo que muitas delas já tivessem sido defendidas por espíritos mais avisados e mais precavidos desde o lançamento do mercado interno, há vinte anos, e da moeda única, vai para dez anos.

Em resposta à crise bancária de 2009, foi lançado um vasto pacote de medidas, de onde se destaca o sistema de supervisão financeira a nível da União (autoridades europeias de supervisão para a banca, seguros e valores mobiliários), juntamente com um reforço da própria regulação substantiva, incluindo as agências de notação de crédito, os fundos de investimento alternativos, o aumento dos requisitos de capital dos bancos, os prémios dos gestores, etc. É evidente que todas essas iniciativas se traduzem num reforço da integração financeira europeia, colmatando o défice de regulação e supervisão pan-europeia que a integração dos mercados e a união monetária tinham tornado evidente mas que só a crise tornou insustentável.

O mesmo se está a passar com a necessária resposta à crise da dívida pública, ainda que com mais hesitações, divisões e resistências. Embora também aqui houvesse desde há muito quem alertasse para o facto de que uma união monetária não poderia dispensar um nível exigente de integração das políticas orçamentais e económicas, a verdade é que as dificuldades não poderiam deixar de ser maiores, primeiro porque uma maior integração nesta matéria afeta mais claramente domínios sensíveis da soberania orçamental e política dos Estados-membros e em segundo lugar porque a crise da dívida pública não atingiu a maior parte dos Estados-membros nem obedeceu ao mesmo padrão em relação aos que afetou mais diretamente, ou seja, Grécia, Irlanda e Portugal. Se é verdade que todos os casos foram desencadeados pela crise financeira e pela subsequente crise económica, não faltam, porém, fatores peculiares assaz distintivos em cada um deles.

Ainda que com imperdoável demora, a União tomou primeiro medidas de emergência para socorrer a Grécia, seguidas da criação (em associação com o FMI) de um mecanismo específico de ajuda a outros países em dificuldades de financiamento no mercado, o que veio a suceder com a Irlanda e com Portugal. E não tardou a preparar as iniciativas necessárias para reforçar no futuro os mecanismos de disciplina orçamental e da sua coordenação a nível europeu (o chamado "semestre europeu"), bem como as propostas de reforço da supervisão e das sanções por incumprimento dos limites ao défice orçamental e à dívida pública. O mesmo se verificou com o novo programa de medidas para a competitividade (programa Euro+), visando a correção dos défices da balança externa desses países e o crescimento económico, sem o qual nenhuma disciplina orçamental poderá ser suficiente.

Por tudo isto, nunca será de mais pôr em relevo a importância do chamado pacote legislativo da "governação económica" que a Comissão Europeia propôs e que o Parlamento Europeu acaba de aprovar. Ele visa em geral suprir o défice de meios da União em matéria de "enforcement" da disciplina orçamental, bem como o défice de coordenação "federal" das políticas económicas e sociais, que a união monetária desde o início reclamava.

Pode suceder que desta crise não se possa já sair sem baixas, ainda que controladas. Se a União não fez o necessário para prevenir a crise e talvez não tenha feito o suficiente para a superar sem perdas, não se pode dizer, porém, que não tenha feito o que tinha de ser feito para tirar lições dela e para evitar a sua repetição futura. Mais uma vez, a crise foi parteira de novos passos em frente na integração europeia. Há crises assim, como as doenças: quando não sejam fatais, ajudam a criar antídotos para o futuro.

[Público, terça-feira, 28 de Junho de 2011]

Tudo, menos radioso 

Por Vital Moreira

A fragorosa derrota eleitoral do Bloco de Esquerda (BE), com perda de quase metade do eleitorado e de metade do grupo parlamentar em relação a 2009 (há menos de dois anos), não requer somente uma explicação para esta dêbácle, antes coloca também em questão o seu próprio futuro.

Teoricamente, as condições favoreciam o crescimento eleitoral do BE, tal como do PCP. Quando o PS está no Governo e é forçado a medidas de austeridade, ainda por cima em situação de recessão económica e de aumento do desemprego, a consequente punição eleitoral não costuma beneficiar somente a direita mas também a "esquerda de protesto", por causa das alegadas "políticas de direita" do PS. Assim sucedeu por via de regra anteriormente. Por que é que desta vez o BE não beneficiou dessa onda, tendo antes sido penalizado, comparativamente ainda mais do que o próprio PS?

Há duas explicações principais, uma conjuntural, tendo a ver com a atitude com que o BE se apresentou a estas eleições, outra estrutural, que põe em causa a razão de ser de um partido de esquerda radical sem base social nem ideológica consistente.

Quanto à primeira, parece evidente que grande parte do eleitorado perdido pelo BE voltou ao PS (assim ajudando a atenuar a pesada derrota deste...), de onde, aliás, tinha saído. Em 2009, capitalizando o seu protagonismo na oposição ao programa de modernização do Estado social adotado pelo Governo do PS, o BE foi capaz de beneficiar do relativo castigo imposto aos socialistas e do objetivo de lhes retirar a maioria absoluta, não havendo então um risco sério de vitória da direita. Em 2011, tudo foi diferente. Por um lado, em vez de aproveitar a oportunidade para entrar na esfera do poder, o BE extremou a sua oposição ao Governo minoritário do PS, não hesitando em alianças espúrias com a direita e em apresentar uma moção de censura já depois das eleições presidenciais (quando era evidente que a direita se aprestava para tomar o poder), culminando tudo com uma aliança com a direita para precipitar a queda do Governo. Por outro lado, nestas eleições o que estava em causa era a iminência de uma vitória absoluta da direita liberal-conservadora, sob a égide da deriva neoliberal do PSD. Colocado perante essa ameaça, o eleitorado que em 2009 tenha empolado a votação "bloquista", resolveu naturalmente voltar em socorro do PS, sancionando o extremismo e o sectarismo do BE.

Decididamente, o BE fez uma leitura errada da situação política resultante das eleições de 2009 e do posterior avanço da direita, preferindo explorar juntamente com esta a condição minoritária do Governo do PS e cavalgar os efeitos devastadores da crise da dívida pública. Exacerbando a sua hostilidade visceral ao PS, o BE transformou-se no principal aríete da direita contra o Governo. O seu volátil eleitorado retirou as devidas ilações, recusando-se a alinhar no massacre do PS às mãos da direita.

A falha do Bloco na sua aposta em ocupar progressivamente o espaço político do PS revela também a fragilidade estrutural e os limites eleitorais do radicalismo de esquerda desprovido de base social.

Nascido como federação improvável de três pequenas famílias políticas tradicionalmente desavindas - trotskistas, maoístas e comunistas dissidentes -, o Bloco herdou delas a sua postura anticapitalista, revolucionária e antipoder, para disputar o voto da esquerda insatisfeita com a progressiva reconversão social-democrata do PS, que o dogmatismo e o conservadorismo do PCP não conseguiam atrair.

Trazia ademais uma novidade assaz apelativa para um eleitorado urbano sem compromissos partidários, a saber a luta por causas alternativas pouco cultivadas pela esquerda tradicional, ligadas à liberdade individual (despenalização das drogas leves, descriminalização do aborto, legalização das relações entre pessoas do mesmo sexo) e à luta contra as discriminações e pelos direitos das minorias (direitos das mulheres, dos homossexuais, dos imigrantes, das minorias étnicas).

As duas apostas políticas do Bloco pagaram dividendos eleitorais enquanto não se esgotaram. A aposta anti-PS perdeu força quando se verificou que não existe outra alternativa de Governo à esquerda e quando se mostrou que a esquerda de protesto, por mais forte que seja, é incapaz de assumir qualquer responsabilidade de Governo, não hesitando pelo contrário em alianças oportunistas com a direita, que só o sectarismo antissocialista pode justificar. Protesto por protesto, merece mais confiança e consistência o do PCP, o qual - diferentemente do Bloco, simples "partido de eleitores" - possui uma sólida base social e sindical, que vai resistindo à sua lenta erosão. Por sua vez, a aposta nas causas alternativas cedeu quando a maior parte delas foi realizada mercê da sua cooptação pelo PS (despenalização do aborto, casamento de pessoas do mesmo sexo, etc.), assim mostrando que o BE só ganha causas... com o PS no Governo.

Se o presente do Bloco não aconselha otimismo, o futuro é tudo menos radioso. Na verdade, além de privado de objetivos mobilizadores - por esgotamento da sua agenda originária -, acresce que a vida dos partidos de protesto não é propriamente fácil quando a direita ocupa o poder, aliás como nunca anteriormente (presidência da República, maioria parlamentar absoluta e Governo), e quando o PS protagoniza naturalmente a oposição às políticas de direita. Por via de regra, a esquerda radical, que funda a sua estratégia na hostilidade ao PS e não tem projeto de Governo alternativo, não medra com a direita no Governo.

O atual ciclo protagonizado pela direita mais radicalmente liberal-conservadora que já tivemos desde 1976 não favorece os antípodas do radicalismo de esquerda, mas sim uma alternativa de esquerda moderada, responsável, e de Governo, que só o PS pode representar.

[Público, terça-feira, 21 de Junho de 2011]

O principal obstáculo 

Por Vital Moreira

A principal batalha política da União Europeia nos próximos tempos é provavelmente a decisão sobre as perspetivas financeiras de médio prazo para período 2014-2020. Por um lado, o Tratado de Lisboa veio alargar as suas competências e logo as suas necessidades financeiras; por outro lado, porém, as dificuldades orçamentais de uma boa parte dos Estados-membros, bem como a emergência de forças antieuropeias em vários outros, torna assaz árdua a ideia de aumentar as contribuições nacionais para o orçamento da União.

O nível de financiamento da União continua refém do sistema de recursos financeiros em vigor, que consistem essencialmente em contribuições de cada Estado-membro, calculadas de acordo com o respetivo RNB, sendo exíguos os recursos endógenos da União (taxas aduaneiras, imposto de rendimento dos funcionários da União, etc.). A dependência do orçamento da União de contribuições financeiras nacionais tem vários efeitos negativos, constituindo um poderoso travão ao aumento das receitas daquela, apesar da comprovada mais-valia das despesas da União.

Antes de mais, essas contribuições figuram como despesa orçamental nas contas nacionais, pelo que pesam no défice orçamental nacional. Segundo, favorecem psicologicamente a tentação de uma comparação entre o que cada país dá e aquilo que recebe da União, estabelecendo uma fatal divisão entre "contribuintes líquidos" e "beneficiários líquidos". Terceiro, a ideia de "justo retorno" de cada país proporciona às forças antieuropeias e à imprensa populista uma poderosa campanha dentro dos países mais ricos sobre o "custo da União". Foi aliás na base dessa perversa lógica que a Grã-Bretanha conseguiu a célebre redução da sua contribuição ("rebate") que perdura há muitos anos.

Dificilmente poderá ser contestado que a União precisa de mais recursos financeiros - que atualmente não superam 1% do RNB agregado - para desempenhar as suas missões. Não faz sentido que os Estados-membros lhe confiem novas tarefas e depois lhe recusem os meios de as cumprir. As novas competências da União após o Tratado de Lisboa (ação externa, energia, turismo, proteção civil) e os compromissos entretanto assumidos com a "Estratégia 2020" para a economia e o emprego não podem ser alcançadas sem reforço dos meios financeiros. Basta recordar, entre outras, os seguintes missões: a criação do "serviço de ação externa", implicando a instalação de representações diplomáticas da União em muitos países; os projetos relativos aos programas de investigação e de infraestruturas da União, essenciais para a competitividade europeia; os compromissos financeiros resultantes da criação dos mecanismos de estabilidade orçamental dentro da União; os encargos para os fundos de coesão resultantes da provável adesão de novos países.

A insuficiência de recursos constitui o principal obstáculo à realização dos objetivos da União. Como poderão esses encargos acrescidos ser financiados sem sobrecarregar os orçamentos nacionais, como pretendem muitos Estados-membros, alguns dos quais pretendem mesmo a sua redução?

A resposta vem sendo adiantada desde há muito, incluindo em relatórios e recomendações do Parlamento Europeu. Trata-se de criar, em complemento ou substituição das contribuições nacionais, recursos financeiros genuinamente próprios da UE, nomeadamente de origem tributária, proporcionando à União a autonomia financeira de que ela carece e conferindo ao Parlamento Europeu o devido papel na definição das receitas, que ele até ao momento não tem.

Recentemente a própria Comissão Europeia veio anunciar publicamente um estudo e uma reflexão sobre as diferentes vias para esse fim, elaborando sobre a vasta panóplia de ideias dos últimos anos. Tudo passaria pela "consignação" direta ao orçamento da União das receitas provindas de impostos ou taxas existentes ou a criar a nível europeu, estando entre as alternativas mais frequentemente citadas um imposto sobre as transações financeiras, uma parte do IVA ou o imposto sobre as empresas, taxas sobre o consumo de energia ou sobre produção de CO2, etc.

Qualquer que seja a alternativa escolhida, é fácil ver as suas vantagens. A mais importante seria justamente a autonomia financeira, e se possível a autossuficiência, da União em relação aos Estados-membros. Depois, o financiamento da União deixaria de representar um encargo orçamental dos Estados-membros, não permitindo a sua exploração demagógica a nível nacional pelas forças inimigas da integração europeia. Terceiro, retirar-se-ia alimento à lógica do balanço entre a contribuição nacional e os benefícios recebidos por cada país, que envenena cada vez mais o debate sobre as finanças da União.

Não se desconhecem as dificuldades a ultrapassar para fazer vingar estas ideias. Qualquer decisão nesta área precisa da unanimidade dos Estados-membros, todos tendo poder de veto. O clima dominante de escasso entusiasmo pelo aprofundamento da integração europeia cobraria mais uma vez o seu tributo através do velho argumento da "perda de soberania", neste caso de soberania tributária.

Na semana passada, o Parlamento Europeu teve oportunidade de defender mais uma vez os seus pontos de vista nesta matéria, a favor do reforço do financiamento da União (aliás nuns modestos 5%) e da criação de genuínos recursos próprios, à margem das contribuições orçamentais do Estados-membros. O larguíssimo apoio dado ao "relatório Garriga" (nome do seu autor) testemunha o amplo consenso sobre este assunto entre os representantes dos cidadãos europeus. Resta saber se, mais uma vez, os deputados europeus não passam de vozes clamando no deserto, sem esperança de serem ouvidos por quem neste ponto continua a ter o poder de decidir, ou seja, os governos dos Estados-membros.

Seria interessante, obviamente, saber o que pensa disto o novo Governo do nosso país...

[Público, terça-feira, 14 de Junho de 2011]

O que fica 

Por Vital Moreira

Assumindo inteiramente a derrota nas eleições de domingo passado, José Sócrates não tardou a tirar as consequências. Se bem que com mal disfarçada emoção, fê-lo sem dramatismo, num discurso sem ressentimentos nem passa-culpas, antes com grande dignidade e elevação. É nestas ocasiões que se mede a fibra e o caráter dos políticos.

O desaire do PS é tudo menos surpreendente, ainda que a sua expressão tenha sido mais pesada do que era geralmente previsto. Cumpriu-se a regra de que em tempos de crise e de austeridade, os partidos "incumbentes", qualquer que seja a sua orientação e o seu desempenho, pagam pesada fatura eleitoral. Portugal e o PS não são exceção nesta "lei de bronze" dos julgamentos eleitorais. O mesmo sucedeu recentemente no Reino Unido e na Irlanda e assim vai acontecer, segundo tudo indica, em Espanha dentro de poucos meses. Para esperar um resultado diferente teria sido necessário mudar toda a sociologia eleitoral.

Para mais, Sócrates teve de travar esta disputa eleitoral nas condições mais adversas que algum líder socialista algum dia enfrentou, tanto pela inesperada crise económica e financeira que não conseguiu travar como pela verdadeira frente de rejeição e de ódio "ad hominem", protagonizada pelos demais partidos, com a prestimosa cooperação da generalidade dos media, que nunca lhe perdoaram ele ter resistido à sistemática operação de "character assassination" a que se dedicaram durante anos sucessivos, a pretexto dos processos judiciais em que debalde o tentaram envolver.

Por mais que, nas atuais circunstâncias, haja tendência para reduzir a herança de Sócrates aos fatores que ditaram a derrota eleitoral socialista - ou seja, a crise económica, social e financeira e as políticas de austeridade tomadas para a combater -, o que a história política destes seis anos de governação socialista vai reter é necessariamente diferente, valorizando devidamente os resultados do primeiro mandato, antes do surgimento da crise, resultado que os dois anos seguintes, a lutar contra a crise, aliás em situação de governo minoritário, não podem de modo algum apagar. Se, por causa da crise e dos seus devastadores efeitos, não temos um país mais próspero, temos seguramente um Estado mais eficiente e uma sociedade mais livre e mais decente.

Em termos de governação, o que fica da era de Sócrates é desde logo a afirmação de uma notável convicção reformista na gestão do Estado e da administração pública e de determinação no combate às corporações e grupos organizados que desde há muito tinham colonizado o Estado. Basta referir, pela sua importância intrínseca e pelas resistências que foi preciso vencer, a eliminação dos injustificados regimes especiais no setor público, as profundas reformas na organização e ação da Administração, onde avulta a redução e racionalização das estruturas administrativas e os impressionantes progressos na modernização e na simplificação administrativa.

Em termos de políticas públicas, o que avulta é o profundo espírito de modernização da sociedade e do País e de valorização do capital humano e material, que inspirou tanto as reformas das relações de família como as políticas sociais (na educação, de saúde e de segurança social), bem como as orientações no campo da economia e das infraestruturas materiais.

A despenalização do aborto, a agilização do divórcio e a legalização do casamento das pessoas do mesmo sexo ficarão a marcar indelevelmente um verdadeiro avanço civilizacional no que respeita ao aumento da liberdade e autonomia pessoal e ao fim de tabus atávicos e de interdições arcaicas.

Também nunca se tinha sido tão ambicioso no aprofundamento e na busca de sustentabilidade do Estado social, na reforma do sistema de pensões, no alargamento e racionalização do SNS, na valorização e qualificação da escola pública, no alargamento do sistema de proteção social, incluindo no combate à pobreza.

E tampouco se tinha sido tão ousado no investimento na ciência, na inovação e na tecnologia, na reorientação da política energética e na melhoria das infraestruturas de transportes, se bem que o resultado quanto a estas tenha ficado longe dos objetivos, por efeito de um populismo atávico e das supervenientes constrições financeiras trazidas pela crise. Decididamente temos agora uma economia mais apetrechada para a competividade.

Não será porventura menos marcante a mudança no próprio PS. O que sai da liderança de Sócrates é um partido genuinamente social-democrata moderado e reformista, tão distante da esquerda de protesto ortodoxa e radical como da direita neoliberal e conservadora, um partido empenhado na harmonização da "economia social de mercado" com o Estado social e com a justiça social e apostado em assegurar a igualdade de oportunidades por meio da educação e da qualificação profissional. Quem quer que seja o seu sucessor na liderança partidária, dificilmente o PS deixará de trilhar a via traçada por Sócrates.

Sem nunca ter deixado de ter uma "má imprensa", flagelado permanentemente por acusações tão graves quanto infundadas, vilipendiado frequentemente por críticos e adversários, nunca nenhum governante, desde provavelmente Afonso Costa na I República, foi alvo de tanto ódio e tanto ressentimento político. Não precisarão, porém, de passar muitos anos para que uma avaliação serena reconheça os méritos da sua ação governativa. "Depois de mim virá..."

A crise económica e financeira que vitimou Sócrates passará a seu tempo, e também passarão os seus efeitos. Fechado o ciclo político que ele protagonizou, o que dele fica para o futuro é a contribuição para o progresso da liberdade pessoal, da condição social e do desempenho do Estado. Não há nenhuma "diabolização" pessoal capaz de apagar a história.

[Público, terça-feira, 7 de Junho de 2011]

Troca de posições 

Por Vital Moreira

A frase de Paulo Portas, há dias, segundo a qual o CDS se encontra agora "mais à esquerda do que o PSD", nunca poderia ter sido proferida até agora sem ser tomada como simples "boutade" política. O que a tornou inesperadamente credível não foi nenhuma deslocação do primeiro para a esquerda, mas sim uma notória deriva do segundo para a direita. Quais são as implicações desta transfiguração política?

Do projeto de social-democracia nórdica que alegadamente Sá Carneiro sonhava para Portugal só restam hoje "resquícios", como reconheceu o próprio Passos Coelho numa recente entrevista. Começou aliás cedo o distanciamento do PSD em relação ao modelo de que reivindicou o nome, sem nunca ter feitio jus a ele. Todavia, ao longo das três primeiras décadas de regime constitucional, se o PSD sempre contestou o excessivo intervencionismo económico do Estado, nunca porém se demarcou do modelo de Estado social garantido na Constituição de 1976, baseado num elevado grau de proteção dos direitos laborais e na responsabilidade pública pela efetivação do direito à saúde, à educação e à segurança social. Mesmo sem ter tomado nenhuma iniciativa relevante nessa área, tendo-se mesmo oposto a algumas (como o rendimento mínimo garantido), a verdade é que posteriormente, uma vez no Governo, o PSD absteve-se em geral de as revogar ou reformular drasticamente

Sem grande simplificação, pode dizer-se que ao longo de todos estes anos de rotativismo governativo entre o PS e o PSD (com o CDS à mistura por vezes), se o PS se conformou com as medidas de privatização e de liberalização económica antes tomadas pelo PSD, este por sua vez foi-se conformando com as iniciativas daquele no plano social, como a criação do SNS, a instituição do sistema geral de segurança social, o alargamento e expansão do serviço público de educação, entre outras. Por isso, se a Constituição foi sendo profundamente reconvertida no que respeita à ordem económica - que sofreu uma verdadeira metamorfose, como escrevi noutro lugar -, já tal não ocorreu nem no capítulo dos direitos laborais nem na "constituição social".

Tudo mudou com a chegada da Passos Coelho à liderança do PSD. Embora os sinais viessem de trás, designadamente desde a proposta de Marques Mendes, há uns seis anos, de privatização substancial do sistema de pensões, foi com o atual líder que apareceu uma agenda caracterizadamente neoliberal na esfera social (e não somente na esfera económica). Desde o polémico projeto de revisão constitucional de há um ano até ao presente programa eleitoral em vista das eleições de 5 de Junho, tornaram-se claros os contornos da ofensiva "laranja" contra o "acquis social" pós-revolução de 1975. Dela fazem parte, entre outros aspetos, o estabelecimento de um teto nas contribuições para o sistema público de pensões, desviando o resto para fundos de pensões privados, a redução do SNS a um programa básico de cuidados de saúde, lançando o resto no mercado, ao mesmo tempo que se propõe a chamada liberdade de opção entre o sistema público e o privado, à custa do orçamento, o mesmo se propondo para o ensino, que seria rapidamente privatizado a expensas do Estado.

Quando o líder do PSD se permite dizer, aliás sem receio de contestação, que o seu programa eleitoral é bem mais radical do que o programa da troika, ele não quer referir-se somente às medidas de ajustamento orçamental e financeiro mas também ao programa de privatizações e, bem entendido, à referida reconfiguração dos três pilares básicos do Estado social que são a educação, a saúde e a segurança social. O PSD conseguiu o que desde o verão de 2010 era o seu objetivo prioritário, ou seja, fazer tudo para forçar o pedido de ajuda externa, para depois utilizar as condições políticas daquela para alavancar uma ofensiva em forma contra o nosso Estado social. Antes de combater a crise orçamental, o PSD está sobretudo interessado em servir-se dela para acionar o seu próprio programa económico, social e ideológico.

Como se não bastasse o fundamentalismo liberal em matéria económica e social, o líder do PSD resolveu inesperadamente juntar uma dose de reacionarismo ideológico, ao ensaiar um despudorado flirt com a cruzada da direita católica contra a despenalização do aborto. Este deprimente episódio não revela somente oportunismo na disputa desse eleitorado ao CDS, antes mostra também que para tentar ganhar mais uns votos (ainda que provavelmente à custa da perda de outros...) o PSD está disponível para reabrir a "guerra do aborto" entre nós. Não se conhece lá fora nenhum caso de retrocesso nesta matéria. Mesmo quando não foi a própria direita a despenalizar o aborto (como em França), ela respeitou em geral como irreversível essa mudança, quando da responsabilidade da esquerda. Aparentemente, o PSD quer assumir a responsabilidade de abrir um triste precedente entre nós, retrocedendo numa questão-chave para a liberdade individual. E que se seguirá depois: rever a lei do divórcio, questionar a lei do casamento de pessoas do mesmo sexo, repensar a despenalização das drogas leves?!

Ao ultrapassar o CDS pela direita, o qual adotou posições menos aventureiras e mais prudentes em qualquer dos referidos domínios, o PSD não questiona somente a dimensão social e o liberalismo moderado da sua herança política e doutrinária, por mais indefinida que esta fosse. Reposiciona-se também no nosso espetro político-partidário, baralhando as tradicionais fidelidades ideológicas e sociológicas. Decididamente, o nosso sistema político não precisava de mais este fator de imprevisibilidade e de instabilidade...

[Público, terça-feira, 31 de Maio de 2011]

Cavalgar a crise 

Por Vital Moreira

A proposta de redução da contribuição patronal para a segurança social pode parecer uma boa ideia para aliviar os custos salariais e aumentar a competitividade das empresas. Mas nem tudo o que é positivo para as empresas é, só por isso, bom para o país.

Antes de mais, importa esclarecer que os nossos encargos para a segurança social estão longe de ser dos mais elevados e que, nesse ponto, o programa de ajuda externa da UE e do FMI é assaz cauteloso, deixando em aberto o ritmo e o alcance da sua redução. A substancial redução em 4 pontos percentuais adiantada pelo PSD - que Eduardo Catroga quer duplicar e que algumas associações empresariais pretendem ainda mais funda - traduz um óbvio aproveitamento oportunista do programa da ajuda externa para forçar a conhecida agenda política contra o sistema público de segurança social.

Em segundo lugar, o impacto de uma tal redução da contribuição social nos custos de produção, embora sensível nas empresas com elevados encargos salariais, seria assaz limitado em termos globais. O congelamento de salários durante dois anos seria seguramente muito mais eficaz, imputando todos os aumentos de produtividade à melhoria da competitividade.

Em terceiro lugar, há a incógnita sobre como compensar o sistema de segurança social pela perda de receita (a não ser que se opte pelo seu asfixiamento...). O PSD mantém sobre isso o mais intrigante mistério. Recorrer somente ao IVA importaria um enorme aumento da cobrança deste. A eliminação pura e simples da atual taxa intermédia de 13% não compensaria senão uma pequena parte da perda de receita resultante da pretendida redução na TSU. Subir ainda mais a taxa geral do IVA, que já está nos 23%, aprofundaria o diferencial em relação à Espanha e à média da UE, pressionando o desvio de consumo para fontes externas (nomeadamente o comércio eletrónico).

Todavia, o principal impacto negativo da redução da contribuição das empresas para a segurança social e da sua compensação por via de subida de impostos - sobretudo se pensada como solução definitiva - estaria na subversão da filosofia do financiamento da segurança social.

A característica essencial do modelo "bismarckiano" da segurança social é o seu financiamento por via de contribuições das empresas e dos trabalhadores, bem como dos profissionais independentes, à margem do sistema fiscal, o que lhe garante uma independência financeira e uma autonomia de gestão que, de outro modo, não teria. As contribuições sociais constituem uma espécie de seguro coletivo para as eventualidades cobertas pelo sistema, nomeadamente doença, maternidade, desemprego e, obviamente, aposentação. O sistema contributivo de pensões, em que todos concorrem para um fundo comum, constitui seguramente a maior invenção do chamado "modelo social europeu".

Não é por acaso que, entre nós, tal como em outros países, existe uma separação entre o orçamento da segurança social, dotado de receitas próprias, e o orçamento geral do Estado, alimentado por impostos. E também não é por acaso que se estabeleceu também uma distinção clara entre a segurança social e o sistema de proteção social sem base contributiva, este à conta do Orçamento do Estado. Por isso, a redução dos recursos financeiros próprios daquela, compensando a perda com receitas fiscais - ou seja, por via do orçamento -, constitui uma profunda mudança na natureza e na própria perceção pública da segurança social.

A primeira vítima é obviamente a independência financeira da segurança social. A partir do momento em que ela passa a depender de impostos, mesmo só parcialmente, ela tornar-se-ia dependente anualmente das necessidades financeiras do Estado e da disputa política sobre a carga fiscal, passando a competir com outros ramos da despesa pública (defesa, segurança, justiça, etc.). Dado que uma diminuição no financiamento da segurança social pode não ter nenhum impacto sensível a curto prazo, a tentação para cortar na respectiva transferência orçamental seria enorme.

A segunda vítima seria a própria equação financeira da segurança social - que visa compensar parcialmente a perda de rendimento, por inatividade (desemprego, doença, aposentação), pelas contribuições dos que estão no ativo. Com o financiamento da segurança social por via fiscal, tudo se alteraria, visto que todos, incluindo os inativos, passariam a contribuir para o fundo de segurança social. Há uma óbvia incoerência em colocar os que estão a cargo da segurança social, como por exemplo os pensionistas, a financiar o próprio fundo de pensões por via de impostos.

A terceira vítima seria a equidade fiscal. No atual sistema de contribuições sobre a massa salarial, há uma certa proporcionalidade na carga tributária (ressalvadas algumas isenções e reduções), sendo aquelas tanto maiores quanto maiores forem os salários. Se o financiamento dependesse do IVA, como se propõe, toda a gente passaria a contribuir, mas em termos socialmente pouco justos. Na verdade, o IVA é um imposto caracteristicamente regressivo, penalizando relativamente mais quem tem menores rendimentos, e consome tudo o que recebe, face aos que dispõem de rendimentos mais elevados, que consomem somente uma parte deles, tanto menos quanto maiores eles forem. Desse modo, em termos relativos, os maiores contribuintes para a segurança social, além dos ativos com baixos rendimentos, seriam os próprios beneficiários da segurança social, que por via de regra perdem rendimento em relação às remunerações correspondentes.

Compreende-se bem que, defendendo os seus interesses privativos, as associações empresariais aplaudam a redução das contribuições patronais para a segurança social. Porém, os partidos políticos com vocação governamental não se podem assumir como promotores de interesses de grupo, mas sim do interesse geral.

[Público, terça-feira, 24 de Maio de 2011]

A exceção madeirense 

Por Vital Moreira

Em mais uma das suas usuais provocações políticas, Alberto João Jardim veio declarar que a redução das autarquias locais prevista no acordo de ajuda externa da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional não vai ocorrer na Madeira. Desta vez, porém, o líder do PSD madeirense não se propõe somente desafiar a autoridade da República, como faz tantas vezes, comprometendo também a responsabilidade internacional do país.

Não vale um chavo o argumento constitucional de Jardim, segundo o qual a criação ou extinção de autarquias territoriais nas regiões autónomas é competência das assembleias legislativas regionais. Na verdade, a mesma lei fundamental diz que essa competência é exercida nos termos da lei respetiva, que é da competência exclusiva da AR. Se, portanto, a lei vier a estabelecer regras para a agregação de autarquias territoriais, é evidente que é de aplicação a todo o país. Não se duvida que terá de ter-se em conta o caso das pequenas ilhas, onde se pode justificar a permanência de municípios próprios apesar da diminuta população e do pequeno território. Mas não há nenhuma justificação para que a concentração de autarquias não se verifique na ilha da Madeira e nas ilhas maiores dos Açores. Seja como for, essa decisão cabe exclusivamente ao Parlamento nacional, ouvidas as assembleia regionais, como é devido. E incumbe as estas cumpri-la.

A divisão territorial e o mapa das autarquias insulares é uma questão do país e não somente, nem principalmente, das regiões. Elas estão submetidas às leis gerais do país, não sendo propriedade privada dos órgãos de governo regional. De resto, a racionalização do mapa autárquico nas regiões autónomas não implicaria somente uma melhoria da prestação de serviços públicos locais e uma redução da despesa autárquica (instalações, equipamentos, consumíveis, dirigentes e pessoal), mas também uma poupança no próprio orçamento nacional, pois as subvenções às autarquias mais pobres e a "perequação financeira" dos municípios recaem sobre aquele e não sobre os orçamentos regionais. São os contribuintes do Continente, e não os insulares, que pagam essa contribuição para as autarquias das regiões autónomas. Portanto, a questão não pode ser alheia ao Estado.

A declaração antecipada de não acatamento da lei que vier determinar a agregação de autarquias locais insere-se na sistemática atitude de insubordinação de Jardim contra aquilo que ainda resta de competências próprias dos órgãos de soberania nacionais. O seu propósito é, como sempre foi, alargar sempre o seu espaço de decisão própria, deixando à República apenas a reserva dos onerosos setores da justiça, da segurança e da defesa -- para além, bem entendido, da cornucópia das transferências orçamentais e dos múltiplos subsídios do orçamento nacional às despesas regionais. O projeto jardinista sempre foi o de uma quase-independência efetiva sem os respetivos custos, antes à custa do orçamento do próprio Estado. O melhor de dois mundos, portanto.

O programa de ajuda externa da UE e do FMI vem impor significativas restrições financeiras às regiões autónomas - diminuição das transferências orçamentais, redução do diferencial dos impostos regionais para os impostos nacionais, racionalização da administração regional e do setor empresarial regional, etc. -, que as obrigam a compartilhar do esforço nacional de disciplina orçamental e de contenção do endividamento público. Infelizmente, a troika não adiantou a medida que mais poderia corrigir a "exploração" do Continente pelas regiões autónomas, particularmente a Madeira (cujo PIB per capita está muito acima da média nacional), a saber, o facto de elas não arcarem com a sua quota-parte nas despesas gerais da República, onde se contam obviamente a defesa, a segurança, a justiça, os órgãos de soberania, a participação na UE, a representação externa (incluindo a contribuição financeira para organizações internacionais). Não se compreende que tais despesas, que a todos beneficiam, sejam suportadas somente pelo orçamento nacional, para o qual as regiões autónomas não contribuem, por elas ficarem com todas as receitas fiscais nelas cobradas ou geradas. Poderia aceitar-se essa isenção enquanto o nível de desenvolvimento das regiões autónomas fosse muito inferior ao do resto do país, mas não quando se verifica o inverso, como sucede no caso da Madeira, que deveria ser "contribuinte líquida" do orçamento nacional, em vez de continuar a ser um pesado beneficiário. Quando se trata de impor disciplina orçamental e austeridade financeira, a primeira regra é que cada um assuma a sua parte côngrua de sacrifícios, em vez de manter privilégios e isenções indevidas à custa dos outros.

Seja como for, a recusa de Jardim em cumprir uma das medidas do programa de ajuda externa só pretende querer dizer que na Madeira ainda é ele quem define o que pode ser feito em matéria de disciplina financeira e de racionalização do setor público. Mas esta arrogância só pode suceder mercê da sistemática falta de determinação e de coragem política de Lisboa para enfrentar e resistir à deriva de "separatismo soft" de Jardim. Contam-se nesta complacência os presidentes da República, que em geral silenciam os desmandos de Jardim, os sucessivos governos, que raramente resistem à sua chantagem política, e obviamente o PSD, que detém o governo regional desde sempre e que nunca se demarcou, muito menos contrariou, a instrumentalização da autonomia regional ao serviço de uma política perdulária, baseado na irresponsabilidade financeira, no endividamento incontinente e na chantagem separatista sobre a República.

[Público, 3ª feira, 17 de Maio de 2011]

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