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12 de agosto de 2012

Birmânia, no começo da transição democrática 

Por Ana Gomes



"Na Comissão dos Direitos Humanos da ONU, em 1989, fui instigadora de uma resolução condenando a Junta militar pela brutal repressão da revolta popular na Birmânia. Em 2002, quando se ensaiou uma pretensa abertura politica, viajei pela Birmânia, com o cuidado de tratar de tudo através de uma agência local familiar para não dar dinheiro à Junta, que toda a actividade económica controlava, incluindo o tráfico de droga (que hoje se estende das opiáceas às anfetaminas). Voltei à Birmânia na semana passada, a convite do NDI - National Democratic Institute, ligado ao Partido Democrático americano - que há muitos anos vem apoiando as forças pró-democracia birmanesas.



Confirmei que os militares continuam a controlar os fabulosos recursos deste país, estrategicamente localizado entre a China e a Índia, que tem petróleo, gás, minerais, pedras preciosas, madeiras, agricultura, turismo e portos com potencial incrível, além de 56 milhões de amáveis e esforçados birmaneses, a maioria vivendo em abjecta pobreza, sobretudo nas zonas rurais. E assim a Birmânia, que nos anos 60 era "a tigela de arroz" da Ásia, passou ao Myanmar hoje atrás do Laos e do Bangladesh em nível de desenvolvimento humano - o que humilha mesmo os mais empedernidos generais...



Outros factores explicarão a súbita reviravolta do mesmo regime militar repressivo que impediu a ajuda humanitária internacional à população atingida pelo Ciclone Nargis em Maio de 2008, mas que em 2010 já estava a libertar a desafiadora filha do Pai da Pátria, Aung San Suu Kyi, dos longos anos de prisão domiciliária, levando-a a sentar-se hoje num dito Parlamento, em que um quarto dos membros são militares não eleitos. Factores que poderão ir dos mistérios da astrologia (que determinou a construção da faraónica nova capital em Naypyitaw, no meio de lado nenhum...), ao peso geracional: a idade avançada impele os generais a querer garantir a própria impunidade, além da transmissão das fortunas acumuladas aos filhos, sabendo que nunca houve no país passagem de poder pacífica - sucessivamente desde a independência, os generais Aung San, U Nu, Ne Win e Khin Nyunt acabaram assassinados ou presos. E a nova geração de generais - e de filhos dos mais velhos - compreende que o isolamento empobrece o país e está condenado pela inescapabilidade da globalização, como demonstra o extraordinário desenvolvimento na vizinhança, da Índia e China a parceiros ASEAN. A Indonésia, por exemplo, que no tempo de Suharto a Junta tomara como modelo inspirador, é hoje caso de sucesso democrático, até economicamente (e por isso o NDI convidou para esta missão conhecedores desta transição democrática e da resolução dos conflitos no Aceh e Timor Leste - comigo estava o General Agus Widjojo, conselheiro do Presidente SBY e um dos artífices da transformação indonésia).



Para explorar os recursos naturais do país defrontando sanções ocidentais, os militares puseram-se nas mãos da R.P. China: hoje os mercados regurgitam de plásticos chineses, de cadeiras a telemóveis, mas a degradação ambiental, os conflitos sobre terras e as desigualdades cresceram também exponencialmente. Paradoxalmente, esta dependência concorreu para a extraordinária viragem política a que assistimos desde 2010, com o anuncio de reformas democráticas, a libertação de presos políticos e Aung San Suu Kyi hoje eleita deputada, embora o governo continue nas mãos dos generais.



Respondendo a pressão popular, em Setembro de 2011, o governo de Myanmar obrigou a China a parar com a construção da barragem de Myitsone que iria afectar o caudal do rio Irrawaddy, o mais mítico rio deste país sulcado por rios e lagos, e que levaria para o país vizinho electricidade que não está assegurada ao povo birmanês. Os chineses não disfarçaram o choque e os generais birmaneses logo perceberam que tinham rapidamente de abrir ao Ocidente. E o Ocidente correspondeu: mesmo com sanções ainda em vigor, Hillary Clinton voou para Rangum em Dezembro, a abraçar Aung San Suu Kyi e a conhecer os militares com quem a Nobel birmanesa tinha começado a dialogar (fontes diplomáticas em Rangum dizem ter-se criado uma relação de confiança entre ela e o Presidente Thein Sein, o ex-general entronizado a frente de um governo teoricamente civil, em Março de 2011, pelo seu antecessor, Than Shwe, que na retaguarda tudo controlará).



Reformas económicas para abrir ao sector privado várias actividades, encorajar o investimento ocidental e remover as sanções internacionais que restam era o tema no topo da agenda parlamentar em Naypyitaw, na sessão a que assistimos na semana passada. A UE declarou em Abril passado todas as sanções não-militares suspensas por um ano e os EUA deram este mês luz verde àsCoca-Cola, GE, Boeing e petroliferas para avançarem, desde que assegurem transparência nos investimentos. Para EUA e UE, manter o espectro das sanções visa acelerar progressos na democratização e precaverem-se contra retrocessos. Significativamente, neste ultimo domingo a imprensa birmanesa dava destaque à visita de representantes da EITI (Iniciativa Transparência nas Indústrias Extractivas).



Mas a prioridade não pode centrar-se na abertura económica apenas, porque sem reformas políticas e institucionais não se garante sustentabilidade ao processo de democratização. Que está mesmo no princípio, como pudemos constatar nesta visita, nos encontros com parlamentares (incluindo os presidentes - militares - das Câmaras Alta e Baixa), com membros do governo, lideres de partidos politicos, activistas pró-democracia, representantes das minorias étnicas, "think tanks", etc.



Todos dizem querer reformas democráticas, mas ninguém sabe bem o que implicam e muitos no aparelho de Estado resistem como e quanto podem. Foram abolidas leis que proibiam os sindicatos e as manifestações, mas o parlamento funciona cerimonialmente, não há regras de procedimento que permitam a deputados levantar questões que entendam, os presidentes das Câmaras tudo determinam. Aung San Suu Kyi e os outros deputados recentemente eleitos não foram ainda integrados em nenhuma comissao parlamentar. De facto, só a facção militar toma assento junta, não há grupos politicos estruturados, os deputados sentam-se por distrito e ordem alfabética - o presidente da Comissão de Negócios Estrangeiros, que muito apreciou ter há um mês visitado o PE e alguns parlamentos nacionais na Europa, explicou-nos candidamente "não ser precisa oposicão, uma vez que todos os deputados têm a obrigação de exercer 'checks and balances' sobre o executivo". Escusado será dizer que a prestação de contas é como convém ao governo.



A indispensável liberdade de imprensa não está assegurada: o departamento de censura continua a funcionar e a autocensura igualmente. Também não pode haver completa liberdade de acção para partidos políticos ou organizações da sociedade civil enquanto houver presos políticos nas cadeias. E ainda há: ninguem sabe bem quantos, entre 300 a 1000.



A fundamental questão de emendar a Constituição que os generais impuseram em 2008, ou adoptar uma nova, pura e simplesmente não é debatida no Parlamento, embora seja uma das exigências principais do NLD, o partido de Suu Kyi, e dos outros partidos da oposição, incluindo os que representam minorias étnicas.



E as aspirações das minorias étnicas têm de passar a ser levadas em conta, pois representam 40% da população a viver numa União da Birmânia/Myanmar em conflito permanente, quase sempre armado, com o poder centralizador da maioria bamar e a exportar refugiados para a Tailândia e outros países vizinhos. Como nos disse No Than Kap, agora lider do Partido Progressista Chin e eleito Ministro da região Sagaing, antes chefe militar da rebelião Chin e preso político): "ou com uma nova Constituição a União cumpre a promessa feita na independência de se tornar federal, ou não haverá paz, nem democracia".



O medo da desintegração do país é a mais sensitiva questão na Birmânia e não apenas para os militares: um jovem deputado do NDL, até aí muito gentil e progressista, reagiu com virulência a perguntas sobre a situação dos refugiados Rohinga, há gerações no estado do Aracão, no oeste da Birmânia, mas sempre discriminados e perseguidos (tanto, que por eles esteve a interceder António Guterres também esta semana em Naypyitaw). O deputado do partido de Suu Kyi recusou que fossem birmaneses e advogou a sua imediata expulsão para o originário Bangladesh! Ninguém sabe o que pensa a líder do NLD sobre estes problemas. O que quer dizer que pode ser presente envenado, ou então uma boa oportunidade, a chefia da comissão parlamentar sobre as nacionacionalidades étnicas que os generais pretendem confiar-lhe.



Positivo, certamente, é que esteja a ser criado um "Centro para a Paz" para promover a reconciliação nacional e resolver conflitos com as minorias étnicas (o governo negociou nos ultimos meses cessar-fogos com os Shan e os Karen, mas os Kachin, a norte, continuam a luta armada). Todos os nossos interlocutores birmaneses pediram assistência política internacional para este Centro. Além disso, o investimento em infraestruturas básicas nas zonas rurais terá de ser prioritário para reduzir a pobreza, promover o desenvolvimento e facilitar a resolução dos conflitos.



A Nobel Aung San Suu Kyi é venerada pelo seu povo. Hoje nos mercados vendem -se camisolas e sacos com o retrato dela, vêem-se jornais, livros, reclames, cartazes a ilustrar a sua extraordinária popularidade. Mas, a entrada no parlamento criou altíssimas expectativas, dificeis de satisfazer até porque as condições de funcionamento do NDL são ainda muito deficientes e não apenas por razões atribuíveis aos militares: embora pareça, Suu Kyi já não é menina, fez 67 anos e é frágil de saúde. Coragem, aprumo e gentileza aristocrática não bastam para reorganizar um partido político que vive da sua imagem e precisa de rejuvenescer e alargar a direcção. Foi estranhado que Suu Kyi tenha faltado à abertura e à primeira semana da sessão do parlamento para que foi eleita pelo povo, por ter de recuperar da deslocação à Europa...



Os activistas pró-democracia recém-libertados das cadeias, muitos pertencendo ao NDL, acabam de criar uma Escola de Ciência Politica para formação de quadros partidários, sociedade civil e apoio ao trabalho parlamentar. Lamentam, porém, que Suu Kyi tenha mais tempo para reunir com visitantes estrangeiros do para comunicar com a população ou reorganizar o partido. "Os militares trataram de a co-optar para o sistema, ela não podia desperdiçar a janela de oportunidades, mas resta saber o que vai fazer, se vai chegar ao poder e o que vai fazer com ele", disseram-nos.



Se esta é já a percepcão nos seus mais fieis e activos seguidores, corre-se o risco da frustração se generalizar com o tempo. E as eleições de 2015, que tudo podem determinar, estão já aí, ao virar da esquina...



É por isso preciso muito apoio especializado e no terreno, continuamente, à estruturação de partidos politicos e media independentes e ao activismo parlamentar e da sociedade civil na Birmânia - como estão já, como podem, a fazer o NDI e fundações europeias, como a Friederich Ebert, a Westminster ou o International IDEA.



Sem dúvida que na Birmânia há hoje uma porta aberta para a democracia que não se pode deixar fechar. É preciso combinar pressão politica com investimento económico controlado, mas sobretudo investir na capacitação de todos aqueles que querem, de facto, construir uma democracia inclusiva na Birmânia. E ainda há um longo e árduo caminho a percorrer."



Este texto foi escrito a 23 de Julho, em viagem de regresso da Birmânia. Foi a base do artigo publicado pelo PUBLICO no dia 8 de Agosto de 2012

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