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10 de março de 2010

Madeira: o preço a pagar 

por Ana Gomes


A catástrofe teve ao menos uma consequência virtuosa: fez todos os portugueses unir-se em sobressalto e solidariedade para com os compatriotas da Madeira, passando por cima das invectivas insultuosas recorrentemente arremessadas pelo Chefe do governo regional contra os “continentais” e o governo da República.

Nestes últimos dez dias todos sofremos com os relatos dramáticos dos que viram desaparecer na enxurrada de lama familiares e amigos, dos que perderam casas, oficinas e lojas, dos que recuperam nos hospitais e dos que não sabem ainda como recuperar abrigo e sustento. Todos seguimos, comovidos, aos funerais dos mortos. Todos admiramos o esforço hercúleo para localizar os desaparecidos, a entreajuda para cuidar dos vivos, a extraordinária mobilização que já conseguiu limpar, reorganizar e restabelecer um mínimo de normalidade no Funchal. Todos saudamos a imediata deslocação ao terreno por parte do Primeiro Ministro, a visita do Presidente da Republica dias depois, o salutar esforço de convergência entre autoridades nacionais e regionais para calcular prejuízos e obter apoios europeus para a reconstrução.

Mas tudo não pode voltar a ser como dantes, como parece inferir-se de um discurso que, primeiro, procurou minimizar a calamidade a pretexto de não prejudicar o turismo (e todos compreendemos como as receitas do turismo são vitais para a Madeira), e depois guinou para a azáfama obcecada de realizar o Festival da Flor dentro de umas semanas, como planeado. Antes de mais, porque é estultícia tentar escamotear a gravidade da catástrofe – trata-se de um destino turístico de fama mundial, não de um qualquer Cebolais de Cima: queira Alberto João Jardim ou não, esta calamidade abriu telejornais e fez as manchetes em todo o mundo. E depois, não há como apagar a tragédia de termos perdido a vida mais de quarenta compatriotas: não há fundos europeus que compensem o valor destas vidas.

Por muito que nos custe, não foram apenas as leis da natureza que ceifaram os que morreram e que destroçaram os familiares que os perderam. As leis da natureza exerceram-se com inclemência, como tantas vezes ao longo da história da Madeira, mas neste 20 Fevereiro de 2010 em condições agravadas nos últimos anos pela mão do homem, à conta de uma suposta dinâmica de desenvolvimento, estupidamente desvalorizadora das condições ambientais e da força da natureza: à desaconselhável desflorestação, somou-se a construção, desordenada e desregrada, na beira dos leitos das ribeiras que agora tudo arrasaram.

Por muito que custe, houve quem tivesse alertado e recomendado, democraticamente, medidas de defesa preventiva. Mas ninguém ligou nada a alertas como o da reportagem que a RTP 2 passou no programa “Bioesfera”, em 2008, a avisar para os efeitos dos temporais nas ribeiras madeirenses e a urgir uma urgente intervenção urbanística preventiva. Mas ninguém deu ouvidos aos ambientalistas da Quercus ou académicos, sistematicamente ridicularizados como especialistas em “palhaçadas” pelo Dr. Alberto João Jardim: já depois da tragédia, todos o ouvimos queixar-se de que ouvi-los seria “o preço a pagar pela democracia”. Mas, na verdade, estamos hoje a pagar o preço de não ouvir, democraticamente, estas forças da sociedade civil. E os madeirenses deverão perceber que estão agora a pagar, de facto, o preço pela falta de democracia na Madeira.

Eu não alinho na hipocrisia oportunista que leva muitos, inclusive no PS, a argumentar, que perante uma calamidade como esta, o melhor é calar críticas e queixas. Tal como na tragédia em Entre-os-Rios o país exigiu que se retirassem consequências políticas da incúria humana que amplificou o exercício brutal das leis da natureza, também na Madeira é preciso que sejam assumidas responsabilidades políticas. Quem fez prevalecer a lógica da especulação imobiliária, quem não exerceu as competências de ordenamento territorial, de licenciamento urbanístico criterioso, de fiscalização municipal e assim concorreu para as condições que tornaram tão caro e doloroso este destemperamento da natureza?

Há lições a retirar. Desde logo, porque a UE assim o deve exigir: não só pagou boa parte da factura de muitas das infraestruturas agora destruídas pela enxurrada; é imperativo que os fundos europeus que agora deverão ser mobilizados para apoiar a reconstrução na Madeira não sirvam para financiar a repetição dos mesmos erros.

Há lições a retirar pela Madeira, e não só. Porque são lições de que aproveitaremos todos, por todo o país – pois, infelizmente, abundam de Norte a Sul do Continente e nas Ilhas situações de violação das prescrições de ordenamento territorial e de implantação de infra-estruturas com grosseiro desrespeito pelas mais elementares precauções ambientais.

A memória dos mortos da Madeira exige que aprendamos a lição.

(publicado no JORNAL DE LEIRIA, edição de 4 de Março 2010)

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