<$BlogRSDUrl$>

27 de janeiro de 2005

Distracção fatal 

Nos últimos tempos, poucos temas terão suscitado análises tão convergentes quanto os do software competitivo - tecnologia, inovação, empreendedorismo. Para a generalidade das nossas empresas, esse tridente de sucesso é um verdadeiro triângulo das Bermudas. Falho de aptidões tecnológicas e de gestão, o tecido económico nacional debate-se com a sua própria sobrevivência. Se todos concordam que é necessário um impulso transformador, onde o Estado deverá assumidamente desempenhar um papel de agente activo de mudança, poucas são as certezas quanto ao modelo a desenvolver e ao formato dos instrumentos de política. Não porque estejamos sós nestas angústias económicas do novo século, nem porque escasseiem exemplos inspiradores nos quatro cantos do globo, mas porque despertámos tarde demais para a realidade impiedosa da globalização.

Num artigo publicado pelo Courrier International e The Economist, na edição especial conjunta sobre O Mundo em 2005, Narayana Murthy, CEO da Infosys Technologies, caracteriza com precisão o sistema de criação de valor dos nossos tempos: "Cada vez mais, a cadeia de valor de um produto ou serviço se repartirá entre diferentes países. Os especialistas de mercados, nos Estados Unidos (por exemplo), identificarão as expectativas dos segmentos-alvo, os britânicos farão as especificações do produto, os australianos serão responsáveis pela arquitectura tecnológica, os indianos pelo software, os alemães ou os japoneses pela produção e Taiwan pela plataforma logística". A sequência de Murthy poderia ainda ser facilmente desmultiplicada por uma extensa rede de outsourcing, onde, por exemplo, os indianos sub-contratariam a produção de código a equipas russas, os alemães adjudicariam certas fases da fabricação a empresas eslovacas ou húngaras e os japoneses se encarregariam de distribuir subempreitadas entre a China, a Malásia e as Filipinas.

É este, para o bem e para o mal, o modelo dos negócios globais. Se, por um lado, contribui para uma repartição das competências pelo mundo fora e se revela encorajante no domínio da cooperação internacional, por outro lado arrasta consigo, numa onda sem regresso, todos aqueles que não sabem nadar ou que não souberam construir fundações sólidas, baseadas em factores dinâmicos de competitividade e qualidade de gestão (estratégica e operacional). Ora, o drama da maioria das empresas portuguesas é precisamente o serem más nadadoras e piores arquitectas. Donde a necessidade imperiosa de o Estado as ajudar a descobrir novos horizontes e novas formas de criação de riqueza. Sem se substituir à actividade empresarial nem distorcer as regras de mercado, os governos - e o próximo, em particular - terão a pesada incumbência de saber criar um ambiente propício à regeneração do tecido produtivo nacional a partir de exemplos próprios e de estímulos à capacidade criativa dos portugueses. Tarefa árdua. Por mim, já ficaria satisfeito se os compromissos eleitorais em matéria de inovação, competitividade e modernização da administração pública fossem simplesmente levados à prática.

Enquanto por cá tentamos suprir necessidades básicas, outros, mais rápidos, já iniciaram nova corrida. Na Coreia do Sul vai nascer uma Digital Media City (DMC), um projecto de cidade do futuro dedicada à sociedade de informação, onde as tecnologias se combinam com a arquitectura e o design numa procura de novos interfaces urbanísticos. A DMC terá uma sinalética inteiramente digital, com possibilidades de programação interactiva, serviços de posicionamento, iluminação pública inteligente e fachadas transparentes para que a actividade interior dos edifícios seja visível. Dennis Frenchman, professor de urbanismo no MIT e consultor principal do projecto DMC, considera que o objectivo desta concepção é "insuflar vida na rua", evidenciando o facto de a sociedade estar a atravessar uma excitante fase de transição. "Estão a passar-se coisas extraordinárias", acrescenta Frenchman. Nós é que ainda não demos por isso.

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 27 de Janeiro de 2005

26 de janeiro de 2005

Restabelecer a confiança dos cidadãos na política e nas instituições 

por Vital Moreira

Caros amigos

1. Sou reincidente. Passados 10 anos sobre os Estados Gerais, de boa memória mas de efémeros resultados, apraz-me participar de novo convosco nesta manifestação de abertura do PS ao exterior. E não o faço com menos convicção e empenho do que há uma década.
Não está em causa somente o apelo da responsabilidade cívica ao homem de esquerda que eu sou e ao antigo militante político que eu fui. Se há momentos em que todos cidadãos que se interessam pelos destinos da República ? mesmo se retirados da política e sem filiação partidária ? não devem ficar indiferentes, este tempo por que passamos é seguramente um deles. Na verdade, mais grave do que a crise das finanças públicas é a crise de confiança na política em geral e na governação em especial.
Aos dois governos da coligação PSD-CDS, especialmente ao de Santana Lopes, devemos seguramente um dos mais graves momentos de degenerescência e degradação da legitimidade da política e da credibilidade da democracia. Ninguém poderia imaginar que, 30 anos depois do 25 de Abril, um Governo e um primeiro-ministro revelassem tanta ausência de sentido de Estado e tanta falta de decência e de simples decoro político, que acaba na indigna litania da vitimização.
No plano político, estas eleições colocam fundamentalmente três desafios ao PS, como candidato natural à governação do País:
1º - Resgatar a seriedade e responsabilidade da política;
2º - Restaurar a dignidade e a autoridade do Estado e do governo;
3º - Devolver aos cidadãos a confiança na política e o sentido de identificação com as instituições.

2. Começo naturalmente pelo primeiro.
O que mais tem faltado em Portugal nos últimos 5 meses não são meios para equilibrar as contas públicas, mas sim competência, seriedade e responsabilidade política. Em vez disso tem sobrado o populismo, a imprevisibilidade política, o arrivismo, o triunfo dos interesses sectoriais, o favoritismo político, o assalto partidário ao aparelho do Estado, e por último o abuso de poder (como mostra a vertigem governativa do Governo depois de demitido).
Numa competição desleal com humoristas e cartunistas, o Primeiro-ministro e vários dos seus ministros dedicaram-se metodicamente a desacreditar a política em geral e o governo em especial, numa sucessão de demagogia, de intrigas intestinas, de ingerências nos media e de inconstância errática de políticas.
Entre os estragos a consertar pelo futuro governo socialista, a prioridade só pode ir para o resgate da seriedade e responsabilidade da política. Tanto como restaurar a saúde financeira, urge recuperar a saúde política. Só merece alcançar o poder quem, pelo seu passado, carácter, cultura política e fibra moral der garantias de uma governação conforme à Constituição e aos ditames da ética, da decência e da responsabilidade democrática.

3. O segundo desafio consiste em restaurar a dignidade e a eminência do Estado e do poder público democrático.
Sob a capa neoliberal, vai campeando por aí um discurso anarco-capitalista, que exalta o mercado e o privado acima de todas as coisas e que diaboliza e degrada o conceito de Estado e do poder público. Mas quanto maior for a erosão da autoridade do Estado, menor é a sua capacidade para cumprir as funções de que está constitucionalmente incumbido, maior é a margem de domínio e influência dos grupos de interesse e das corporações, e mais fundo é o sentimento de desamparo e de insegurança dos cidadãos comuns, em especial dos mais débeis e desprotegidos. Parafraseando um protagonista da Revolução Francesa, entre o fraco e o forte é o Estado que liberta e é a ausência dele que oprime.
Sem uma indiscutível respeitabilidade e autoridade do poder público e sem a reabilitação da esfera pública, o Estado democrático não está em condições de preencher as suas incontornáveis missões de garante das instituições democráticas, de responsável pela justiça e pela segurança, de regulador de mercado e da "auto-regulação privada", de esteio dos serviços públicos essenciais, como a educação, a saúde e os demais serviços básicos, e de participação condigna nas instituições europeias e na cena internacional.
Um Estado-de-Direito democrático pressupõe a separação entre o que é público e o que é privado, entre a lógica do interesse público e a lógica dos interesses particulares. Essa separação ontológica está em risco, sempre que se manifestam fenómenos de promiscuidade entre o Estado e os interesses organizados, sejam eles de natureza económica, profissional, religiosa, desportiva, etc.
Há que pôr-lhes fim, a bem da autonomia e autoridade do poder público.

4. A terceira aposta tem de ser o restabelecimento da confiança dos cidadãos na política e nas instituições.
Um recente inquérito de opinião confirmou e reforçou a descrença da maioria dos cidadãos na política, nos partidos políticos e nas instituições, bem como a sua crescente desafeição em relação à participação democrática, em geral, e eleitoral, em particular. Outros inquéritos revelam idêntica decepção quanto à Administração e aos serviços públicos. Agrava-se a percepção relativa à corrupção e a outras práticas lesivas do interesse público.
Um governo PS não pode conformar-se com esta situação. Há que provar que os partidos não são "todos iguais"; que não andam "todos ao mesmo"; que as eleições são a escolha entre reais alternativas de valores, de políticas e de governantes; que o eleitoralismo populista deve ceder lugar à credibilidade das propostas eleitorais; que os compromissos eleitorais são para cumprir; que os políticos podem e devem ser impolutos e que a política não é um meio de enriquecimento nem de favorecimento pessoal; que o acesso aos cargos públicos se pautará por critérios de imparcialidade e de competência; que a improbidade e o compadrio serão combatidas com determinação.

5. Para responder a estes reptos há seguramente que efectuar reformas políticas (muitas das quais se arrastam há vários anos): desde o sistema eleitoral até à transparência administrativa; desde a limitação de mandatos políticos até aos inquéritos parlamentares; desde as imunidades políticas até à forma de recrutamento dos dirigentes administrativos. Mas nenhuma reforma será suficiente sem uma forte convicção e determinação política para mudar as coisas.
Uma das primeiras iniciativas do novo governo socialista espanhol foi a aprovação de um código de conduta do Governo e dos seus membros. É um documento notável, como o tem sido aliás a sua acção em muitos outros aspectos. De facto, tanto como as políticas, contam os governantes e o modo de governar.
Na nossa tradição republicana, um governo democrático não pode deixar de pautar-se por uma forte ética de dedicação à causa pública, de elevação cívica e de responsabilidade pessoal. Para um Governo do PS ? que é herdeiro dessa tradição e que terá de preparar a comemoração do centenário da República, daqui a cinco anos ?, é imperativo convocar de novo o espírito tutelar da cidadania republicana.
Estas eleições devem ser obviamente um confronto entre diferentes valores, ideias e políticas. Mas devem ser também ? e talvez principalmente ?, um confronto entre diferentes visões e práticas do Estado e do modo de fazer política. Da parte do PS ? se necessário, fazendo uma revisão crítica da sua própria experiência governativa ?, importa afirmar um novo modo de governar.
O que fica para a história dos governos não são somente as grandes decisões e reformas, mas também o carácter e a estatura da governação. É este o desafio do PS e de José Sócrates, em particular, e de todos nós, em geral. Que estejamos todos à altura dele!

Obrigado pela vossa atenção.

(Intervenção na "Convenção Novas Fronteiras". Estoril, 22 Janeiro 2005)

25 de janeiro de 2005

O Modo da Política 

Por Vital Moreira

É de esperar que um partido, chegado ao governo, anule todas as decisões do anterior que tiveram a sua oposição? A resposta é obviamente não. Isto sucede com todos os governos. Qualquer investigação mostrará que os novos governos só revogam uma pequena parte das medidas que combateram no mandato do Governo anterior.

Podem ser variadas as razões para isso: (i) a questão pode não ser tão importante que valha a pena reabri-la, com os "custos de transacção" e os "custos de oportunidade política" que toda a mudança implica; (ii) a medida em causa pode afinal ter-se revelado menos negativa do que parecia anteriormente; (iii) voltar à situação anterior pode revelar-se excessivamente oneroso, quer em termos financeiros, quer em termos políticos (por exemplo, por causa de situações juridicamente irreversíveis); (iv) o novo partido governamental pode ter entretanto mudado de orientação sobre a matéria em causa.

Por isso, não podem surpreender as declarações do líder do PS de que, caso ganhe as eleições e venha a formar governo, não vai fazer tábua rasa do que foi feito nestes três anos pelos governos PSD-CDS, sem excluir algumas medidas que tiveram a sua oposição. O que é surpreendente é ser tão pouco usual assumir frontalmente tal atitude. O que importa não é a quantidade das mudanças prometidas, mas sim as mudanças que contam e tornam justificada a substituição do governo, desde logo as relativas à competência, à seriedade e à responsabilidade política. Isto nada em a ver com a ideia de que os partidos são "todos iguais" e que, uma vez chegados ao governo, defendem "todos o mesmo".

É certo que as diferenças entre os partidos já não são o que eram antigamente. Por um lado, os partidos políticos de hoje, sobretudo os de vocação governamental, à direita ou à esquerda do centro político, são hoje muito menos ideológicos do que eram na origem e a sua base social de apoio já não se distingue tão marcadamente em termos sociológicos como antes. Em vez de "partidos de classe", temos hoje partidos mais ou menos interclassistas, aliás, de acordo com a sociedade complexa dos nossos dias, onde as antigas classes sociais perderam homogeneidade e sentido de auto-identificação. Mas a verdade é que cada partido continua a ter alvos sociais preferenciais, que continuam a dar-lhes uma marca própria.

Por outro lado, também, é certo que se estreitou consideravelmente a banda de variação das opções políticas. O triunfo indiscutível da economia de mercado deixou inexoravelmente para trás as distinções com base no sistema económico e a crise do "Estado fiscal" e finanças públicas estreitou também a margem de escolha em matérias sociais.

No entanto, as diferenças entre a esquerda e a direita e entre progressismo e conservadorismo estão longe de estar canceladas nestas duas esferas, como pretendem alguns, normalmente situados à direita. Elas continuam a ser evidentes em muitas áreas, quanto à regulação da economia, ao sistema fiscal, aos serviços públicos, às políticas sociais, ao papel do Estado, etc., isto para não falar nas novas questões de valores sociais e da liberdade individual, ligadas à despenalização do aborto, às uniões homossexuais, etc. Pode mesmo dizer-se que, no que respeita às políticas económicas e sociais, existe hoje maior distância entre a social-democracia e o neoliberalismo do que antes existia entre aquela e a democracia cristã, e que no que respeita às novas questões de costumes e de liberdade individual existe hoje mais distância entre a direita liberal e a direita conservadora do que entre aquela e a esquerda.

Acresce que o que distingue os partidos políticos não é somente o seu programa e as suas políticas. Hoje não é menos importante o modo de fazer política e as qualidades dos líderes. A personalização crescente da vida política, em consequência da sua mediatização e da relativa perda de importância da substância das políticas, tem feio também avultar a importância da liderança política e do carácter e da ética dos governantes. Para o bem e para o mal, as eleições parlamentares tornaram-se de certo modo numa eleição do primeiro-ministro. Por isso, a diferenciação dos partidos políticos passa hoje crescentemente por valores ligados à competência, à seriedade, à autoridade, ao sentido de responsabilidade.

Assim, não admira que nas actuais eleições essas diferenças de estilo de governação e de carácter dos líderes assumam tanta importância. Na verdade, o que está em causa não são somente os meios para equilibrar as contas públicas e para restabelecer o crescimento económico, mas sim também, e talvez sobretudo, o resgate da competência, da seriedade e da responsabilidade política. De facto, nos últimos meses tem havido um grande défice desses valores, ao mesmo tempo que tem sobrado a demagogia, o populismo, a imprevisibilidade política, as intrigas intestinas, a ingerência nos "media", o favoritismo político, o triunfo dos interesses sectoriais, o assalto partidário ao aparelho do Estado, e, por último, o abuso de poder (como mostra a vertigem governativa do Governo depois de demitido). O desastre do Governo Santana Lopes não foi sobretudo o das políticas, mas sim o do primeiro-ministro e do seu estilo de governo. Entre os estragos a consertar, a prioridade só pode ir para o resgate da competência, da seriedade e da responsabilidade da política.

Outro desafio essencial na actualidade consiste em restaurar a dignidade e a eminência do Estado e do poder público democrático, tanto face à deriva anarco-capitalista que endeusa o mercado contra o Estado, como perante a sua "captura" pelos interesses organizados. Quanto maior for a erosão da autoridade do Estado, menor é a sua capacidade para cumprir as funções de que está constitucionalmente incumbido, maior é a margem de domínio e influência dos grupos de interesse e das corporações, e mais fundo é o sentimento de desamparo e de insegurança dos cidadãos comuns, em especial dos mais débeis e desprotegidos.

Sem uma indiscutível respeitabilidade e autoridade do poder público e sem a reabilitação da esfera pública, o Estado democrático não está em condições de preencher as suas incontornáveis missões de garante das instituições democráticas, de responsável pela justiça e pela segurança, de regulador de mercado e da "auto-regulação privada", de esteio dos serviços públicos essenciais, como a educação, a saúde e os demais serviços básicos e de participação condigna nas instituições europeias e na cena internacional.

Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)

1. A contratação de Marcelo Rebelo de Sousa pela RTP para reatar as suas sessões dominicais não condiz com os deveres da concessionária do serviço público de televisão em matéria de isenção e imparcialidade política e de equilíbrio no tratamento das opiniões político-partidárias. M. R. S. é um militante partidário naturalmente empenhado em favorecer os interesses do seu partido e/ou a sua própria agenda política pessoal (no que, aliás, é brilhante). Nenhuma objecção haveria à intervenção de M. R. S. enquanto opinião política, no quadro do equilibrado pluralismo político que a estação pública deve garantir. Mas a sua contratação como supercomentador a solo, num espaço privilegiado, traduz-se obviamente num inaceitável privilégio para as ideias políticas que ele representa (como se não bastasse o predomínio de comentadores de direita que nela já têm tribuna...).

2. A não ser que haja uma contradição directa e insanável entre as suas posições políticas e a sua prática pessoal, os políticos têm direito à protecção da sua vida privada como qualquer outra pessoa. Por isso, não merece aplauso, pelo contrário, o ataque de Francisco Louça (e do BE) a Paulo Portas com base numa presumida contradição (aliás, não especificada) entre a radical condenação que ele faz do aborto e a sua vida privada. A pretensa "superioridade moral da esquerda" pode passar por explorar as incoerências morais da direita, mas deve parar à porta da esfera de privacidade das pessoas.

(Publico, Terça-feira, 25 de Janeiro de 2005)

24 de janeiro de 2005

Hospitais empresa  

Por Vital Moreira

Com a convocação de eleições para a Assembleia da República voltou à agenda política a questão do estatuto e regime dos hospitais públicos, com algumas forças políticas a contestarem o formato dos chamados hospitais SA, que a empresarialização de algumas dezenas de hospitais do SNS adoptou.

Sublinhe-se, à partida, que os hospitais-empresa-pública, de que os hospitais SA são uma modalidade, não representam nenhuma forma de privatização em sentido próprio, visto que tanto a sua propriedade como a prestação dos cuidados de saúde permanecem no sector público. Os hospitais SA continuam tão públicos como os hospitais que ainda mantêm o estatuto tradicional de estabelecimentos públicos. Os hospitais-empresa só implicam a "privatização" da forma de gestão, que adopta métodos idênticos aos da gestão empresarial privada.

De facto, os hospitais SA revestem uma das duas formas de empresa pública previstas na lei geral do sector empresarial do Estado, a par dos entes públicos empresariais (EPE). Aliás as diferenças não têm a ver com a natureza empresarial (que ambos têm), mas somente com a natureza do seu capital, a forma de controlo governamental e o tipo de controlo financeiro a que estão sujeitos. Não tem sentido falar dos EPE como "empresas públicas", distinguindo-os das empresas SA, pois são duas modalidades de uma mesma realidade, a empresa pública. As empresas de capitais públicas (como os hospitais SA) são tanto empresas públicas como os entes públicos empresariais.

A diferença essencial não é entre hospitais SA e hospitais EPE, como alguns pensam, mas sim entre hospitais-estabelecimento-público e hospitais-empresa-pública. A alternativa está entre pertencerem ao sector público administrativo (sujeitos às regras gerais da gestão pública administrativa, nomeadamente no que respeita à sua gestão financeira) ou ao sector público empresarial (sujeitos às regras da gestão empresarial). Por isso também não tem sentido pensar que os hospitais EPE seriam uma espécie intermédia entre os hospitais SA e os hospitais-estabelecimento-público.

No início, os hospitais públicos estavam integrados no sector público administrativo, sob a forma de estabelecimentos públicos dotados de personalidade jurídica própria e de autonomia administrativa e financeira, estando sujeitos às regras da gestão pública tradicional, incluindo o regime da função pública. No final dos anos 90, no sentido de procurar formas de gestão hospitalar mais dinâmicas e eficientes, alguns hospitais, primeiro o da Feira e depois o do Barlavento Algarvio, foram dotados de instrumentos de gestão empresarial (maior autonomia de gestão, contratos de trabalho em vez da função pública, etc.). Mas não deixaram de ser estabelecimentos públicos, sendo portanto formas híbridas, entre o formato de instituto público, que mantinham, e o empresa pública, cujos forma de gestão adoptavam parcialmente.

Já na fase terminal do II Governo de António Guterres, em Março de 2002, sendo Correia de Campos Ministro da Saúde, optou-se claramente pela empresarialização dos hospitais públicos, sob a forma de entes públicos empresariais, mas admitindo-se já nessa altura que poderia vir a adoptar-se posteriormente a modalidade da empresa de capitais públicos.

Pouco depois, com a constituição do novo Governo (Durão Barroso), já com Luís Filipe Pereira como Ministro da Saúde, enveredou-se decididamente pela empresarialização dos hospitais públicos, tendo-se optado porém pela forma de empresa de capitais públicos para os hospitais-empresa a criar (daí os hospitais SA).

Nestes termos, as perguntas que se podem colocar no contexto de novas eleições legislativas são duas. Tem algum sentido arrepiar caminho, eliminando os hospitais-empresa e voltando a integrá-los no sector público administrativo? Caso a resposta seja negativa, justifica-se trocar o actual formato SA pelo de EPE, quando se trata somente de duas espécies do mesmo género?
Para quem entenda que os hospitais públicos devem ser dotados de gestão mais transparente, mais eficiente e mais responsável, não faz nenhum sentido voltar atrás na empresarialização. Ela deve dar-se por adquirida (aliás, os dois principais partidos convergem nessa opção). Quanto à modalidade dos hospitais-empresa (SA ou EPE), trata-se de uma questão secundária, sendo muito duvidoso que valha a pena consumir recursos a remodelar tudo por tão pouca coisa. O que faz sentido é aperfeiçoar o modelo e dar coerência ao sistema, avançando para a empresarialização de todo o sector.

(Diário Económico, segunda-feira, 24 de Janeiro de 2005)

20 de janeiro de 2005

Sem tempo a perder 

Após três anos de omissões e contradições sucessivas, ficámos agora, a um mês das eleições, a conhecer as ideias do governo quanto aos grandes projectos viários por realizar - o TGV, a terceira travessia do Tejo e o novo aeroporto internacional de Lisboa. Foi preciso um governo de gestão, destituído de poderes estruturantes e em fase terminal, para a actual maioria se mostrar arrependida do seu passado recente e do discurso fácil que exibiu. Não me esquecerei das tiradas eleitorais populistas do actual presidente da Comissão Europeia contra o avanço dos três grandes projectos: "Não haverá TGV enquanto todos não tiverem acesso aos cuidados de saúde" (ou algo de muito semelhante), repetiu Durão Barroso durante a última campanha. Do novo aeroporto internacional e da terceira ponte sobre o Tejo, nem falar. Eram projectos sumptuários, impossíveis de concretizar em ambiente de crise financeira do Estado.

Mas eis que o cenário político se transforma radicalmente. Com eleições à vista, o irrequieto ministro das Obras Públicas decide-se por um salto em frente e por um anúncio virtual - haverá TGV, sim senhor, e não uma mas duas novas travessias sobre o Tejo (Algés-Trafaria e Chelas-Barreiro). À parte o marketing e as óbvias intenções promocionais, não deixam de ser boas notícias. É certo que as opções técnicas avançadas estão longe de ser inquestionáveis e que será o próximo executivo a ter a última palavra. Mas não deixa de ser salutar que dois dossiês tão importantes para o país cessem de ser objecto de disputa sectária e demagógica. Se esta é uma das tais áreas de consenso possíveis a que muitos economistas se referem, seja bem-vinda.

Pelo caminho, ficaram três anos de indecisões e não-decisões, comprometendo definitivamente o arranque das obras em 2005 e, assim, os fundos provenientes do III Quadro Comunitário de Apoio. Por outras palavras, as do próprio António Mexia, "a não tomada de decisões compromete o futuro do país". Pois é, senhor ministro, agora vamos ter de gastar mais uns insignificantes milhares de milhões de euros do nosso bolso. Dir-se-á que a obsessão orçamental foi a culpada e que o aperto financeiro era incompatível com a manutenção do calendário inicial. Mas é precisamente em situações de penúria de recursos que se impõem escolhas políticas corajosas. Se se tivesse, por exemplo, abdicado de compras sumptuárias de equipamento militar (submarinos, fragatas, carros de combate), ter-se-ia podido prosseguir o projecto TGV ao ritmo previsto e assegurar pelo menos 40% de financiamento comunitário. Assim, resta-nos esperar que os submarinos do nosso orgulho militar se revelem úteis nos trabalhos de construção sub-aquática da nova travessia do mar da Palha.

Se os três projectos se mantiverem, como se espera, na agenda de prioridades do novo executivo, contarão certamente com um grau mínimo de resistência política à sua concretização, mas nem por isso o executivo terá a vida facilitada na ultimação do modelo. Há decisões críticas a tomar sobre a extensão da rede TGV, bem como a localização e o financiamento do novo aeroporto e da(s) nova(s) travessia(s) sobre o Tejo. Há ainda que (re) definir os respectivos modos de exploração e encontrar as modalidades de financiamento mais eficientes e equitativas, sem despertar os demónios regionalistas e os sentimentos anti-lisboetas. Há, por fim, que programar um conjunto coerente de medidas de desincentivo ao uso de viaturas privadas e de promoção do transporte público. Há que deitar mãos à obra e não perder mais tempo.

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 20 de Janeiro de 2005

18 de janeiro de 2005

Responsabilidade Eleitoral 

Por Vital Moreira

Mesmo não sendo inesperados nem muito diferentes dos que se conhecem de outros países, nem por isso deixam de ser inquietantes os dados do inquérito de opinião ontem vindos a lume no PÚBLICO sobre o grande desinteresse dos cidadãos pela política e o pouco crédito que merecem os partidos políticos e a política em geral. Saber que metade das pessoas se interessam pouco ou nada pela política, que quase três quartos pensam que os políticos só interessam pelo seu voto e não pelas suas opiniões, que mais de dois terços consideram que as eleições são relativamente irrelevantes para as suas vidas e que uma esmagadora maioria não conhece nem nunca contactou um deputado -, eis um quadro de alheamento e desencanto que não pode deixar indiferente quem tenha da democracia uma ideia mais exigente do que a noção reducionista de uma competição periódica dos partidos políticos pelo voto dos cidadãos interessados. A circunstância de o inquérito ter sido realizado em vésperas de eleições legislativas, quando as alternativas eleitorais já estão suficientemente definidas e o ambiente está cheio de mensagens políticas, só agrava o significado dos dados que ele revela.

Numa democracia representativa, que é sobretudo uma democracia eleitoral, as eleições são o teste decisivo do estado de saúde do sistema e da sua capacidade de suscitar a adesão e o interesse dos cidadãos. Elas são, por um lado, um momento de prestação de contas e de julgamento político do governo cessante, sobretudo quando os seus principais protagonistas se submetem de novo a sufrágio, como é o caso nas presente eleições. Elas constituem, por outro lado, o mecanismo pelo qual outras forças políticas se apresentam como alternativa e competem pela preferência dos eleitores. Ora é no pouco crédito normalmente associado aos programas e compromissos eleitorais que está um dos maiores factores do desprestígio da política e do desinteresse e desmobilização eleitoral dos cidadãos. Um já razoável experiência de programas eleitorais patentemente demagógicos e irrealizáveis e de compromissos incumpridos ou rotundamente violados por parte dos partidos vencedores, uma vez no Governo, constitui o principal ingrediente do alheamento e desconfiança de um crescente número de cidadãos.

O factor fulcral para suster e inverter o plano inclinado da crise de confiança popular nas instituições e na acção política em geral está seguramente na restauração da confiança nas eleições, como momentos de "accountability" democrática e de escolha de orientações políticas e de protagonistas políticos. Sem que os cidadãos confiem na seriedade dos partidos, na consistência e praticabilidade dos programas e na disposição dos partidos vencedores para os levar a cabo, nenhum progresso se realizará nessa direcção. Torna-se necessário atacar decididamente os factores que levam uma parte considerável (e crescente) da opinião pública a estar persuadida de que os partidos "são todos iguais", que "andam todos ao mesmo" (ou seja, à "caça de votos"), sem olhar a meios, que todos prometem antes das eleições o que sabem que os eleitores esperam ouvir mas que não contam cumprir depois delas, que as eleições pouco ou nada valem para solucionar os problemas do país e das pessoas, etc.

Se houvesse que elaborar um "código de conduta para a responsabilidade eleitoral", que todos os partidos, designadamente os mais prováveis candidatos ao Governo, deveriam observar em eleições, nele deveriam figurar (para além da exigência de lisura de procedimentos no combate eleitoral) pelo menos as seguintes regras imperativas: um diagnóstico suficientemente elaborado e sustentado sobre a situação do país, tal como cada partido a vê; uma avaliação do governo cessante, com um juízo sobre as principais medidas consideradas positivas e negativas; uma exposição minimamente densificada das linhas de orientação política que propõem e das principais soluções políticas a adoptar, caso venham a formar governo; uma indicação pelo menos genérica da equipa de protagonistas com que cada força política conta para levar a cabo o seu programa (para além das indicações que decorrem das listas de deputados); um esclarecimento sobre as alianças políticas em que apostam, ou ao menos as que excluem, caso elas venham a tornar-se necessárias para viabilizar soluções de governo.

Entre estes pontos, avulta naturalmente o programa eleitoral de cada partido ou coligação eleitoral, com os princípios e as medidas políticas que cada concorrente defende para os diferentes problemas políticos, de acordo com a orientação ideológica e a "agenda" política de cada um. É aqui que a demagogia, o facilitismo e o oportunismo tendem a sacrificar a seriedade e a credibilidade das eleições. Orientações e propostas inconsistentes ou rotundamente contraditórias, compromissos irrealizáveis ou financeiramente insustentáveis, prevalência de visões sectoriais sobre a coerência política global, tentação para agradar a todos os grupos de interesse, prometendo tudo a toda a gente, em prejuízo do interesse geral -, eis alguns dos mais recorrentes ingredientes que podem fazer das eleições uma "receita para o desastre" em termos de descrédito das instituições e de desconfiança política dos cidadãos.

O problema está obviamente nas soluções para contrariar essa situação. A simples lógica do "mercado eleitoral" não dá para corrigir só por si as deficiências do sistema. A ideia de que, uma vez enganados, os "consumidores-eleitores" não voltarão a "comprar" do mesmo "produto" nas eleições seguintes não chega como antídoto contra a demagogia eleitoral e a fraude política. A situação só pode melhorar com um aumento da exigência de uma parte relevante da opinião pública mais qualificada no que respeita à consistência e sustentabilidade política e financeira dos programas eleitorais, tornando politicamente penalizadora a apresentação de políticas incoerentes ou contraditórias, ou a falta de rigor no que respeita ao impacte financeiro de cada proposta, quer no aumento de gastos públicos (aumento de pensões, remunerações, subsídios, etc.), quer na diminuição de receitas públicas (reduções ou isenções de impostos, de taxas de serviços públicos, etc.). A existência de centros independentes de escrutínio e análise dos programas eleitorais poderia constituir uma valiosa alavanca de garantia da responsabilidade eleitoral.

Olhando a campanha eleitoral já em curso para as próximas eleições parlamentares, parece que alguma coisa está a mudar no que respeita à seriedade e credibilidade das propostas eleitorais e à penalização das forças políticas que insistirem em recorrer à demagogia ou à manipulação eleitoral. Por um lado, uma parte significativa da opinião pública (e, bem entendido, os "media") tornou-se mais exigente do que era tradicional quanto à demonstração da consistência e sustentação financeira das propostas políticas. Hoje já não é tão fácil defender uma baixa de impostos sem dizer onde é que vai haver corte das despesas públicas; e também já não são tantos os que se entusiasmam com promessas de aumento de pensões ou de subsídios, sem perguntar quanto é que isso custa e como é que se vão reunir os necessários recursos financeiros.

Além disso, é também notório que os partidos mais bem colocados para vencerem as eleições começam a sopesar mais cuidadosamente os seus compromissos eleitorais. Se nas últimas eleições o PSD pareceu ainda tirar partido de promessas mais do que duvidosas, por falta de sustentação financeira - por exemplo, a promessa de baixa da carga fiscal (logo rotundamente contrariada pela subida do IVA, no início do Governo) ou a promessa de convergência das pensões mínimas com o salário mínimo nacional -, desta vez é de registar que o PS, que é à partida quem está em melhores condições para vencer as eleições, tem adoptado uma postura assinalavelmente responsável em tudo o que tem impacte financeiro. As declarações do líder do PS nesta área, abstendo-se por exemplo de prometer descidas de impostos ou mesmo a reposição das isenções fiscais que o orçamento em vigor retirou, são o contrário do eleitoralismo vulgar, tanto mais de assinalar e de louvar quanto o PSD insiste de novo em prometer novas reduções miríficas da carga fiscal.

(Público, Terça-feira, 18 de Janeiro de 2005)

16 de janeiro de 2005

Pouco ou nada 

Há três anos, no início do actual ciclo político, as expectativas dos agentes económicos numa governação moderna e transformadora eram elevadas. Durão Barroso e a sua equipa beneficiavam de um confortável capital de confiança, sustentado no discurso da tanga, na promessa do choque fiscal e no desígnio de reforma da administração pública. Já no poder, perdoou-se-lhe o aumento do IVA, tal a determinação e o rigor que a sua ministra das Finanças parecia revelar no combate ao défice orçamental. Perdoou-se-lhe a quebra abrupta dos índices de confiança, em nome do supremo desiderato da consolidação financeira. Perdoou-se-lhe a introdução canhestra do princípio do utilizador-pagador, pelo qual até os segmentos mais esclarecidos se deixaram seduzir sem se aperceberem das suas contradições. Perdoou-se-lhe a fuga para Bruxelas, para onde foi tratar da sua vida, deixando o país entregue a um seguidor errado. Três anos volvidos, a actual maioria deixa-nos uma mão cheia de nada. Nem o défice melhorou, nem a economia arribou, nem as prometidas reformas estruturais aconteceram. Mas nem tudo foi tempo perdido. Houve opções tomadas com acerto e que importaria prosseguir durante o próximo ciclo governativo.

O mandato de Manuela Ferreira Leite será um dia um case study de Finanças Públicas. Ninguém poderá assacar-lhe falta de empenho, de seriedade ou de convicção no combate que obsessivamente travou contra o défice. Procurou disciplinar a intendência, controlar as despesas, recrutar quadros competentes para a administração fiscal e introduzir regras de avaliação de desempenho na função pública. Quaisquer que venham a ser as futuras políticas orçamentais e as nuances contabilísticas para Bruxelas ver, a gestão dos dinheiros públicos pós-Ferreira Leite (e pós-pacto) não voltará a ser o domínio virtual que foi durante anos a fio. São boas notícias.

Ao invés, tudo falhou nas intenções de reforma da administração pública. Desde logo, a mensagem política. Não é possível domar o monstro da despesa com uma mensagem simplesmente financeira e hostil aos interesses legítimos dos servidores públicos. A ineficiência do Estado só pode ser combatida com uma visão transformadora, onde a parcimónia nos gastos se associe a uma orientação de serviço para o cidadão, capaz de valorizar e qualificar os recursos humanos através da introdução de novos métodos de gestão e de ferramentas de trabalho evoluídas. Se alguém imagina que é possível mudar a máquina com simples grelhas de avaliação de desempenho, desorçamentações e parcerias público-privado, desiluda-se. Impõe-se inteligência, capacidade de decisão e cirurgia pesada ao nível dos principais sistemas públicos.

Igualmente prometedoras eram as intenções no capítulo da sociedade de informação. A UMIC nasceu direita, produziu um bom plano de acção, alinhado com os objectivos da iniciativa e-Europe, mas cedo se viu confrontada com dificuldades previsíveis. A primeira foi a tradicional falta de sensibilidade política para a matéria, bem patente na escolha de José Luís Arnaut como responsável pelo pelouro. A segunda foi o espartilho financeiro a que o Terreiro do Paço a submeteu, limitando-a fortemente na sua capacidade de realização. A terceira foi o pecado da gula. Teria sido preferível, dada a exiguidade de meios, concentrar as energias num pequeno naipe de processos-chave, reengenhando-os numa lógica selectivamente radical. Mas não. A extrema preocupação do governo em mostrar mais e melhor obra do que o seu antecessor socialista conduziu-o à dispersão de esforços e a um output decepcionante. À excepção do Portal do Cidadão e dos novos processos de compras públicas on line, os resultados são magros. Em três anos de actividade, não conseguiu sequer substituir as nossas vetustas peças de identidade - BI, cartão de contribuinte, cartão de eleitor, cartão de beneficiário da Segurança Social, entre outros - por uma peça única de formato digital, algo a que se comprometera no início do seu mandato e que agora, ironicamente, promete para daqui a seis meses...

Do lado bom do balanço ficam as iniciativas levadas a cabo no sector da saúde - com a introdução de regras de gestão empresarial nas unidades hospitalares - e na comunicação social pública, onde o tino dos gestores e a qualidade média dos conteúdos constituíram boas surpresas. Além de uma nova lei do arrendamento, que fica por regulamentar, saúda-se igualmente o fim da guerrilha na governança da transportadora aérea nacional e os passos dados no sentido da liberalização dos serviços notariais. É pouco, muito pouco para quem tanto prometeu. Mas o pouco que é merece ser continuado pelos dirigentes vindouros.

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 13 de Janeiro de 2004

11 de janeiro de 2005

O Parlamento de Lisboa  

Por Vital Moreira

Há momentos em que Lisboa descobre de bom grado o resto do país. É quando o seu pessoal político excedentário, que não cabe nas listas eleitorais da capital, invade "a província" à procura de um lugar que lhes garanta uma cadeira em São Bento. Lisboa elege só por si 48 dos 230 deputados da Assembleia da República. No final, provavelmente mais de uma centena dos parlamentares são de Lisboa.

O "assalto" começa naturalmente pelos lugares cimeiros dos círculos eleitorais "periféricos". Há círculos em que os cabeças de lista vêm quase todos de Lisboa. Mas a ocupação raramente se fica por aí. O importante é ocupar um "lugar elegível". Por vezes os forasteiros invocam uma ligação remota ao círculo eleitoral cooptado, como o lugar do nascimento ou uma passagem algures na vida profissional. Mas na maior parte dos casos, nem isso. Na sua crónica de domingo passado, no PÚBLICO, António Barreto ironizava com o facto de os candidatos colocados em lugares elegíveis por esse país fora já poderem começar a procurar casa em Lisboa, sem esperar pelo veredicto popular. Engana-se. A maior parte deles já têm casa em Lisboa - a sua. Do que muitos precisam é de alojamento temporário nos círculos em que são "candidatos acidentais".

Esta ocupação lisboeta não é inteiramente uma consequência directa da enorme concentração do pessoal político e "parapolítico" em Lisboa, associada à centralização dos partidos políticos, à acumulação das elites económicas, sociais e culturais (bem como dos principais "media") na capital, à escassez e falta de visibilidade das elites locais e regionais, à "inexistência" dos distritos como colectividade local com que os cidadãos se identifiquem. Trata-se de um círculo vicioso, que a existência de círculos territoriais deveria ajudar a quebrar, mas que a generalização do "pára-quedismo" eleitoral só ajuda a agravar.

Ora a principal razão para a lógica dos círculos eleitorais consiste justamente em criar uma adequada repartição e "representação" territorial do país e em alcançar uma certa desconcentração da "classe política". De outro modo, bastaria um círculo eleitoral nacional único, sem a complicação dos círculos distritais. A atenuação da proporcionalidade do sistema eleitoral, que a existência de círculos pequenos também provoca, deve ser considerada um "efeito colateral" dos mesmos e não um objectivo central. Por isso, a "colonização" dos círculos locais/regionais por candidatos de Lisboa introduz um factor de perversão da lógica constitucional do sistema eleitoral.

Diz a Constituição que "os deputados representam todo o país e não os círculos por que são eleitos". Mas essa representação geral do país é feita necessariamente através de "olhos territoriais". Problemas nacionais não são somente os que são sentidos como tais em Lisboa. Para mais, num Estado ainda tão centralizado como o nosso - desde logo pela falta de descentralização regional no continente - cabe aos órgãos do Estado, a começar pela Assembleia da República, ocupar-se de inúmeros problemas de incidência local/regional, desde os centros de saúde às escolas do ensino básico. A tendencial "lisboetização" do Parlamento, e derivadamente do Governo, permite consolidar acriticamente os privilégios da capital em todos os aspectos, nomeadamente nos investimentos públicos e dos serviços públicos. Por exemplo, como é que o Parlamento pode ter uma atitude crítica em relação ao privilégio do financiamento dos transportes públicos locais de Lisboa (Metro, Carris) pelo Orçamento do Estado (ou seja, pelos contribuintes de todo o país), se grande parte dos deputados são de Lisboa?

Há quem julgue que a solução contra os "candidatos adventícios" nos círculos eleitorais fora de Lisboa está na adopção de círculos uninominais, à maneira britânica ou francesa. Nestas alturas, aliás, revela-se sempre um estranho fascínio pelo sufrágio uninominal. Sucede que só uma grande dose de desconhecimento desse sistema é que pode justificar a crença de que ele é panaceia para todos os males políticos da pátria, incluindo as longas peregrinações dos candidatos lisboetas. Mas não é verdade. Lá os dirigentes partidários e os favoritos dos líderes partidários também procuram o aconchego de longínquos círculos eleitorais seguros ("safe seats"), com os quais nada têm a ver. A visão mitológica de que nesses países existe uma competição de resultado imprevisível entre candidatos locais só tem uma fraca correspondência na realidade. A maior aparte dos círculos tem vencedor previsível desde há décadas, seja quem for o candidato do partido neles dominante.

Sem uma solução alternativa que garanta a "colocação" no Parlamento dos dirigentes partidários e a constituição de um núcleo seguro dos futuros grupos parlamentares, a exportação de candidatos lisboetas para os círculos da "província" não pode ser travada. Ora existe um mecanismo adequado para isso, que aliás está previsto na nossa Constituição. Trata-se da criação de um círculo nacional, a par dos círculos territoriais (plurinominais ou uninominais, pouco importa para este efeito), podendo os eleitores ter dois votos, um para o círculo nacional e outro para o seu círculo territorial, ou ter só um voto, válido para ambos os apuramentos. Tal círculo nacional, de dimensão suficiente para cumprir as aludidas funções (30-40 deputados), seria "coutada" do líder partidário ou da direcção nacional dos partidos; a indicação dos candidatos nos círculos territoriais ficaria porém reservada para as estruturas locais, sem interferência da direcção nacional (quando muito com um poder de veto limitado). A previsão adicional de mecanismos transparentes de selecção de candidatos a nível local - preferivelmente por meio de "eleições primárias" - permitiria obviar às principais críticas que o actual sistema de designação dos candidatos suscita.

É certo que a criação de um círculo nacional, sem aumento do número de deputados (que ninguém aceitaria) e sem alteração dos actuais círculos distritais, implicaria necessariamente uma diminuição correlativa do número de deputados por círculo, com uma previsível atenuação da proporcionalidade geral do sistema eleitoral (que é influenciada pelo número médio de deputados por círculo). Mas a redução do número de candidatos seria mais do que compensada pela "reserva" de candidaturas locais. E também seria fácil reparar a pequena perda de proporcionalidade, por exemplo com a fusão dos círculos distritais mais pequenos. De resto, os que preconizam medidas para facilitar a obtenção de maiorias parlamentares podem ver nessa consequência um motivo adicional para apoiar a criação de um círculo nacional.

Resta dizer que a proposta de reforma eleitoral defendida pelo PS desde 1997-98, que prevê a combinação de círculos uninominais com círculos distritais e um círculo nacional, só é relevante para combater o "pára-quedismo" eleitoral, se ela compreender também a "localização" das candidaturas nos círculos uninominais e distritais/regionais.

Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)

1. Se há uma força política que não pode censurar o Presidente da República, por este ter defendido mudanças no sistema eleitoral para facilitar a formação de maiorias parlamentares monopartidárias, é justamente o PSD, que foi desde sempre o campeão dessa posição, tendo proposto todas as medidas possíveis nesse sentido (diminuição do número de deputados, redução da dimensão dos círculos eleitorais, etc.). O PSD condena o Presidente por apoiar as suas próprias posições! Haja pudor!

2. De todo em todo inesperada foi a sugestão de Jorge Sampaio relativamente ao alargamento da duração dos mandatos, quer da Assembleia da República e do Governo, quer do Presidente da República. Não se vislumbra nem o sentido de oportunidade, nem a lógica de tal ideia. Aliás, o melhor caminho para não mudar nada no sistema político é questionar tudo, incluindo o que ninguém tinha questionado.

(Público, Terça-feira, 11 de Janeiro de 2005)

9 de janeiro de 2005

Atmosfera lusitana Trade Mark 

É nos momentos de descrença que tendemos a desabar sobre a nossa própria condição e a reflectir sobre o que gostaríamos de ter sido e não somos. Deitados no divã da História, o nosso passado colectivo fustiga-nos com mil angústias e desencantos, como se de uma infância infeliz se tratasse, minando-nos a auto-estima e atiçando os piores demónios. De pouco servirá este exercício de auto-flagelação se não o aproveitarmos para tomar consciência das nossas fraquezas. É certo que nunca seremos suecos, nem espanhóis, nem anglo-saxões, nem chineses. Como na história do escorpião e da rã, ninguém consegue superar a natureza. Mas talvez possamos aprender a adaptarmo-nos melhor ao ambiente e a tirar partido dos poucos atributos que nos restam.

Os portugueses consideram-se especiais e são-no. Somos o único dos povos latinos (com a provável excepção dos romenos) que não se considera o eleito. Espanhóis, franceses e italianos crêem-se no centro do universo, numa exaltação constante da sua história, da sua cultura, dos seus costumes, da sua qualidade de vida. Nós não. Fazemos da pobreza e da maledicência a nossa principal diversão. Enquanto os outros celebram diariamente a vida, confiantes no presente e no futuro, nós afundamo-nos no pessimismo e no fado. Somos assim, tristes por natureza. Não me esquecerei facilmente de como quinze mil gregos foram capazes de silenciar, do primeiro ao último minuto, quarenta e cinco mil gargantas portuguesas na final de todas as nossas esperanças.

Um dia, Vinicius de Moraes classificou os portugueses como "engravatados". Era essa, segundo ele, a nossa característica dominante. Descontando a carga tropical do remoque, o poeta brasileiro até pecou por excesso de diplomacia (logo ele, que fora diplomata). O que nós somos é cinzentos. Ou um pouco coincés, como me dizem alguns franceses. Falta-nos alegria e rasgo, espírito de iniciativa e inconformismo, essas marcas de carácter latino que os romanos não conseguiram ou não quiseram trazer para a Lusitânia. Na melhor das hipóteses, teremos guardado alguns genes de capacidade imaginativa, mas muito poucos de criatividade.

À falta de influências latinas, poderíamos ao menos ter beneficiado dos cromossomas setentrionais de outros povos ocupantes, poderíamos ter compensado com tenacidade, rigor e disciplina o que manifestamente nos falta em dinamismo. Mas não. Assim se explica que o principal motivo de queixa dos estrangeiros residentes em Portugal seja a má qualidade dos serviços - públicos e privados - e a falta de profissionalismo da maioria dos seus agentes. Só nós, os portugueses de gema, é que sabemos que há uma atmosfera de nonchalance colectiva que nos domina e de que nunca nos conseguimos verdadeiramente libertar.

Há pouco tempo, um empresário do sector das rochas ornamentais contava-me alguns episódios reveladores da existência dessa atmosfera de incúria lusitana que parece atravessar todas as camadas da nossa sociedade. Destaco um, em particular. A sua unidade de transformação, na região de Lisboa, confronta-se regularmente com a falta de técnicos especializados em maquinaria de corte e lapidação e, sobretudo, com a extrema penúria de primeiras linhas de chefia. Conhecedor de um excelente contramestre numa fábrica congénere do sul de França, um português experiente, maduro e com vontade de regressar à terra, o nosso empresário realizou uma operação de comando a terras gaulesas e em quinze dias o esmerado emigrante-contramestre estava a trabalhar em Portugal. "Foram os melhores quinze dias, os que antecederam a sua vinda, porque pensei que estava à beira de resolver definitivamente um problema agudo na fábrica. Mas após um mês de ares portugueses, o homem ficou exactamente como os anteriores - mole e descuidado. Eu nem queria acreditar que era o mesmo contramestre exemplar que tinha conhecido em França...", desabafava o nosso empresário. Não consigo retirar uma moral desta história, mas lá que começa a haver alguma evidência empírica da existência de uma "atmosfera lusitana", disso não tenhamos dúvidas.

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 6 de Janeiro de 2005

4 de janeiro de 2005

Aritmética Pós-eleitoral  

Por Vital Moreira

Se o voto tem alguma racionalidade, então não é difícil antecipar a vitória do PS nas próximas eleições. Nelas está em causa, desde logo, um julgamento sobre a coligação PSD-CDS e, em especial, sobre a governação de Santana Lopes. O mínimo que se pode esperar é a punição e a rejeição da continuidade do Executivo cujo festival de desorientação e incompetência levou Jorge Sampaio a convocar eleições antecipadas. Nada de mais razoável, aliás, visto que numa democracia representativa as eleições começam por ser um exercício de responsabilização democrática, tanto mais assim quanto os governantes cessantes se apresentam ao eleitorado para renovar o mandato de que tão mal deram conta.

Mas se a rejeição do Governo cessante poderá bastar para assegurar ao PS uma vitória eleitoral, a dimensão da sua vitória já depende em grande parte da qualidade da sua alternativa política. Ora é justamente da dimensão política do triunfo eleitoral, medida pelo número de deputados eleitos, que vai depender a solução governamental posterior. Aritmeticamente, uma vitória eleitoral socialista pode revestir quatro versões quantitativas, a saber: (i) uma maioria absoluta, ou seja, mais de metade dos deputados (116 ou mais); (ii) uma maioria relativa com um número de deputados superior à soma dos do PSD e do CDS; (iii) uma maioria relativa com um número de deputados inferior à soma dos dois partidos da direita, mas sem que estes tenham maioria absoluta; (iv) uma maioria relativa, porém com uma maioria absoluta da coligação de direita. Sendo esta última hipótese altamente improvável - pois isso pressuporia uma escassa vantagem do PS sobre o PSD e uma considerável vantagem do CDS sobre a soma do PCP e do BE -, restam as outras três possibilidades.

Na maior parte dos países, a saída normal para uma vitória eleitoral sem maioria absoluta é a constituição de uma coligação de governo que assegure um apoio maioritário no Parlamento. Só que em Portugal, enquanto as coligações de direita têm proporcionando a formação de vários governos, ainda que de duração efémera, já as coligações à esquerda têm-se revelado politicamente impossíveis, embora as vitórias eleitorais do PS, sempre aquém da maioria absoluta, tenham sempre sido acompanhadas de uma maioria aritmética de esquerda. Ora as dificuldades políticas e ideológicas que desde a origem têm impedido a formação de coligações à esquerda não parecem ter diminuído. No caso do PCP, provavelmente aumentou em vez de diminuir o fosso que o separa do PS, já porque aquele não dá mostras de atenuar o seu dogmatismo "marxista-leninista", já porque o PS acentuou a sua abertura ao centro, tornando-se um alvo ainda maior da condenação comunista. O PCP diz-se sempre disponível para a criação de uma "maioria de esquerda", mas sob condição de adopção de políticas que ele mesmo considere de esquerda, o que quer dizer as suas próprias políticas. No caso do BE, as declarações oficiais dos seus dirigentes não podem ser mais claras quanto à recusa de compromissos governamentais com o PS, assumindo deliberadamente uma postura oposicionista.

Há dois factores que dificultam ainda mais a hipótese de coligações à esquerda neste momento. Um tem a ver com a disciplina orçamental num contexto de recessão económica ou de muito débil crescimento, como continua a ser a situação do país nos tempos mais próximos. As restrições orçamentais não estão para terminar. O irresponsável Orçamento para 2005 incorpora à partida uma previsão de défice bem acima do limite dos três por cento, o qual poderá disparar para muito mais (há mesmo quem fale em 6-7 por cento!), considerando a irrealista meta do crescimento económico em que assentam as previsões de receita e despesa. Impõe-se desde logo um orçamento rectificativo, para cortar despesa e porventura para realizar receitas adicionais. Ora tanto o PCP como o BE nem querem ouvir falar nisso. A maior parte das suas propostas políticas implicam aumento de despesas ou diminuição de receitas (ou ambos).

A segunda dificuldade suplementar para entendimentos à esquerda relaciona-se com a UE. Tanto o PCP como o BE são contra a integração europeia, sendo ambos resolutamente contrários à ratificação da Constituição Europeia. Ora, tendo o PS um dos pontos de honra na integração europeia, em geral, e na ratificação do Tratado Constitucional, em especial - incluindo a promoção de um referendo nesse sentido -, não se afigura fácil um acordo de governo com forças políticas que divergem dele numa área tão essencial. Se o CDS, muito pragmaticamente, foi capaz de pôr debaixo do tapete o seu eurocepticismo, em prol da coligação com o PSD, não parece previsível uma idêntica atitude por parte do PCP ou do BE.

Por tudo isto, mesmo que o PS não exclua em absoluto outras possibilidades à partida, o mais plausível é que ele só possa contar consigo para formar governo, mesmo que não obtenha maioria absoluta. Se não a obtiver, estando excluída a reedição do "bloco central" e verificada a improbabilidade de "acordos de regime" em matéria financeira (tal como sugeridos pelo Presidente da República), resta a solução dos governos minoritários.

Numa das hipóteses acima referidas - ou seja, vitória relativa do PS sem mais deputados do que os da coligação PSD-CDS -, o governo minoritário daí resultante seria muito frágil, sem condições para vingar. Poderia passar no Parlamento, resistindo a uma provável moção de rejeição do programa do Governo, mercê da abstenção do PCP e do BE, mas a constatação da sua debilidade originária (mais votos contra do que a favor) ditaria a sua sorte a curto prazo. Ainda que uma hipotética abstenção do PSD permitisse viabilizar o subsequente orçamento rectificativo, logo viria no final do ano o escolho do orçamento para 2006.

A outra hipótese de governo minoritário - com vantagem do PS sobre o conjunto PSD-CDS - seria, em princípio, menos frágil, permitindo repetir a experiência dos dois governos Guterres (1995 e 1999). Todavia, as condições económico-financeiras e políticas serão ainda menos favoráveis do que em 1999-2001, dada a gravidade da situação financeira vigente, sendo muito incertas as perspectivas de vida governamental. Um governo desses estaria aritmeticamente mais protegido, pois só seria derrotado em caso de coligação das várias oposições contra si. Mas é justamente isso que não está excluído, desde logo em matéria orçamental e financeira, sendo muito provável uma coligação "oportunista" na rejeição do orçamento. Estando excluídas soluções do tipo orçamento "limiano", que desgraçaram o crédito e a honorabilidade política do segundo Governo de Guterres, a rejeição do orçamento só poderia resultar numa moção de confiança e, em caso de derrota, numa nova crise política. Se isso sucedesse já na votação do orçamento para 2006, haveria a agravante suplementar de que nem sequer poderia haver convocação imediata de novas eleições, dada a impossibilidade de dissolução parlamentar no último semestre do actual mandato presidencial nem no primeiro semestre do mandato do novo Presidente a eleger daqui a um ano, o que significaria um prolongado arrastamento da crise política, com os inerentes custos em todos os planos.

Em qualquer dos casos, nas actuais condições, dificilmente um governo minoritário duraria mais de um ano. Em termos de estabilidade política e governativa, só resta portanto a solução da maioria absoluta. O PS faz bem em colocá-la como objectivo central do seu empenho eleitoral (o que já faz uma diferença importante para Guterres, que em 1999 receou reivindicá-la) e como pressuposto de uma alternativa de governo duradouro e responsável. Essa frontalidade responsabiliza também os cidadãos, que, se não lha derem, não poderão depois exigir-lhe o impossível. Mas não basta querer uma maioria absoluta. É preciso lutar por ela e merecê-la. É esse o desafio que o PS de José Sócrates tem à sua frente nas próximas semanas.

(Público, Terça-feira, 04 de Janeiro de 2005)

2 de janeiro de 2005

Falam, falam... 

... mas o ano de 2004 não foi tão mau como dizem. Bem sei que assistimos à reeleição de W. Bush, à fuga do nosso primeiro-ministro para Bruxelas, à derrota da Selecção diante dos gregos e à demissão de Henrique Chaves. É certo que o défice orçamental se agravou, o desemprego aumentou, o investimento baixou, a competitividade piorou e a confiança se afundou. Só que tudo isto são minudências face ao acontecimento colectivo mais marcante dos últimos tempos - pela primeira vez, os portugueses aprenderam a rir de si próprios. Não me refiro ao governo Santana Lopes nem à Quinta das Celebridades, mas sim ao fenómeno de catarse humorística protagonizado por Ricardo Araújo Pereira. Num ano de muito sol e de poucos motivos para festejar além da vitória do Porto na Liga dos Campeões, foram muitas e boas as lições da política, da economia, da Europa e da trupe do Gato Fedorento.

De Bruxelas veio a confirmação de uma velha suspeita - a de que a Comissão Europeia tem uma actuação eminentemente taticista no exercício dos seus poderes de supervisão. Crivada de funcionários em lugares-chave oriundos dos países mais poderosos, sensível aos interesses dos grandes grupos económicos europeus e carente de meios extensivos de controlo, a Comissão é por natureza obediente para com os grandes e rigorosa para com os pequenos que se põem a jeito. Opções políticas à parte, é notável o zelo que Bruxelas coloca no exame das contas públicas portuguesas, ao mesmo tempo que se deixa alegremente ludibriar por gregos, franceses, italianos, belgas, alemães e sei lá quantos mais nesse jogo irreal em que se transformou o Pacto.

Igualmente reveladora foi a decisão sobre o caso EDP. Estou entre os que pensam que o modelo desenhado por Carlos Tavares e João Tallone era o melhor, garantindo a solidez da fileira energética nacional sem comprometer a concorrencialidade no sector. Mas eis que o projecto esbarra em dificuldades que a proverbial inépcia da nossa diplomacia económica em Bruxelas não poderia antever. Para a tecno-estrutura da Comissão, o dossiê EDP era um presente demasiado bom para ser desperdiçado. Casos similares aprovados no passado noutros estados-membros? Eram "diferentes" (como se fosse possível haver dois casos rigorosamente iguais), alegou a comissária que não quer ser pussicat e de quem (não) se aguardam futuramente decisões de igual bravura.

As exportações deram-nos outra boa lição. Há algum tempo que se instalou entre a generalidade dos economistas a convicção de que só é possível fazer crescer a economia nacional através da actividade "exportadora". Ora, já se percebeu que ela não dá sinais de recuperação, esgotado que está o modelo de especialização da maioria das empresas produtoras de bens "transaccionáveis" (quando é que se acaba com esta nomenclatura serôdia?). O crescimento, a verificar-se, terá de se sustentar no conjunto dos sectores de actividade nacionais e no robustecimento dos seus factores dinâmicos de competitividade. Para podermos continuar a acreditar na miragem exportadora teremos de assistir, num curto espaço de tempo, a modificações profundas no tecido industrial português e contar com a improvável ajuda de uma valorização do dólar face ao euro.

De lição em lição, o povo voltou a pregar uma boa partida aos economistas. Ao arrepio da lógica, o consumo privado voltou a aumentar, provocando um novo agravamento da balança comercial. Aparentemente, a crise ainda não bateu nos fundos dos bolsos dos consumidores portugueses, apesar de os comerciantes do meu bairro me afiançarem ter sido esta a pior campanha de Natal de que guardam memória (coisa que, aliás, me habituei a ouvir ano após ano). Aguardemos pelos indicadores económicos do último trimestre e preparemo-nos para uma nova surpresa. Enquanto o pau vai e vem, o povo lá vai pensando: "Eles falam, falam, mas o melhor é ir gastando, enquanto há."

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 30 de Dezembro de 2004

This page is powered by Blogger. Isn't yours?