9 de janeiro de 2005
Atmosfera lusitana Trade Mark
É nos momentos de descrença que tendemos a desabar sobre a nossa própria condição e a reflectir sobre o que gostaríamos de ter sido e não somos. Deitados no divã da História, o nosso passado colectivo fustiga-nos com mil angústias e desencantos, como se de uma infância infeliz se tratasse, minando-nos a auto-estima e atiçando os piores demónios. De pouco servirá este exercício de auto-flagelação se não o aproveitarmos para tomar consciência das nossas fraquezas. É certo que nunca seremos suecos, nem espanhóis, nem anglo-saxões, nem chineses. Como na história do escorpião e da rã, ninguém consegue superar a natureza. Mas talvez possamos aprender a adaptarmo-nos melhor ao ambiente e a tirar partido dos poucos atributos que nos restam.
Os portugueses consideram-se especiais e são-no. Somos o único dos povos latinos (com a provável excepção dos romenos) que não se considera o eleito. Espanhóis, franceses e italianos crêem-se no centro do universo, numa exaltação constante da sua história, da sua cultura, dos seus costumes, da sua qualidade de vida. Nós não. Fazemos da pobreza e da maledicência a nossa principal diversão. Enquanto os outros celebram diariamente a vida, confiantes no presente e no futuro, nós afundamo-nos no pessimismo e no fado. Somos assim, tristes por natureza. Não me esquecerei facilmente de como quinze mil gregos foram capazes de silenciar, do primeiro ao último minuto, quarenta e cinco mil gargantas portuguesas na final de todas as nossas esperanças.
Um dia, Vinicius de Moraes classificou os portugueses como "engravatados". Era essa, segundo ele, a nossa característica dominante. Descontando a carga tropical do remoque, o poeta brasileiro até pecou por excesso de diplomacia (logo ele, que fora diplomata). O que nós somos é cinzentos. Ou um pouco coincés, como me dizem alguns franceses. Falta-nos alegria e rasgo, espírito de iniciativa e inconformismo, essas marcas de carácter latino que os romanos não conseguiram ou não quiseram trazer para a Lusitânia. Na melhor das hipóteses, teremos guardado alguns genes de capacidade imaginativa, mas muito poucos de criatividade.
À falta de influências latinas, poderíamos ao menos ter beneficiado dos cromossomas setentrionais de outros povos ocupantes, poderíamos ter compensado com tenacidade, rigor e disciplina o que manifestamente nos falta em dinamismo. Mas não. Assim se explica que o principal motivo de queixa dos estrangeiros residentes em Portugal seja a má qualidade dos serviços - públicos e privados - e a falta de profissionalismo da maioria dos seus agentes. Só nós, os portugueses de gema, é que sabemos que há uma atmosfera de nonchalance colectiva que nos domina e de que nunca nos conseguimos verdadeiramente libertar.
Há pouco tempo, um empresário do sector das rochas ornamentais contava-me alguns episódios reveladores da existência dessa atmosfera de incúria lusitana que parece atravessar todas as camadas da nossa sociedade. Destaco um, em particular. A sua unidade de transformação, na região de Lisboa, confronta-se regularmente com a falta de técnicos especializados em maquinaria de corte e lapidação e, sobretudo, com a extrema penúria de primeiras linhas de chefia. Conhecedor de um excelente contramestre numa fábrica congénere do sul de França, um português experiente, maduro e com vontade de regressar à terra, o nosso empresário realizou uma operação de comando a terras gaulesas e em quinze dias o esmerado emigrante-contramestre estava a trabalhar em Portugal. "Foram os melhores quinze dias, os que antecederam a sua vinda, porque pensei que estava à beira de resolver definitivamente um problema agudo na fábrica. Mas após um mês de ares portugueses, o homem ficou exactamente como os anteriores - mole e descuidado. Eu nem queria acreditar que era o mesmo contramestre exemplar que tinha conhecido em França...", desabafava o nosso empresário. Não consigo retirar uma moral desta história, mas lá que começa a haver alguma evidência empírica da existência de uma "atmosfera lusitana", disso não tenhamos dúvidas.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 6 de Janeiro de 2005
Os portugueses consideram-se especiais e são-no. Somos o único dos povos latinos (com a provável excepção dos romenos) que não se considera o eleito. Espanhóis, franceses e italianos crêem-se no centro do universo, numa exaltação constante da sua história, da sua cultura, dos seus costumes, da sua qualidade de vida. Nós não. Fazemos da pobreza e da maledicência a nossa principal diversão. Enquanto os outros celebram diariamente a vida, confiantes no presente e no futuro, nós afundamo-nos no pessimismo e no fado. Somos assim, tristes por natureza. Não me esquecerei facilmente de como quinze mil gregos foram capazes de silenciar, do primeiro ao último minuto, quarenta e cinco mil gargantas portuguesas na final de todas as nossas esperanças.
Um dia, Vinicius de Moraes classificou os portugueses como "engravatados". Era essa, segundo ele, a nossa característica dominante. Descontando a carga tropical do remoque, o poeta brasileiro até pecou por excesso de diplomacia (logo ele, que fora diplomata). O que nós somos é cinzentos. Ou um pouco coincés, como me dizem alguns franceses. Falta-nos alegria e rasgo, espírito de iniciativa e inconformismo, essas marcas de carácter latino que os romanos não conseguiram ou não quiseram trazer para a Lusitânia. Na melhor das hipóteses, teremos guardado alguns genes de capacidade imaginativa, mas muito poucos de criatividade.
À falta de influências latinas, poderíamos ao menos ter beneficiado dos cromossomas setentrionais de outros povos ocupantes, poderíamos ter compensado com tenacidade, rigor e disciplina o que manifestamente nos falta em dinamismo. Mas não. Assim se explica que o principal motivo de queixa dos estrangeiros residentes em Portugal seja a má qualidade dos serviços - públicos e privados - e a falta de profissionalismo da maioria dos seus agentes. Só nós, os portugueses de gema, é que sabemos que há uma atmosfera de nonchalance colectiva que nos domina e de que nunca nos conseguimos verdadeiramente libertar.
Há pouco tempo, um empresário do sector das rochas ornamentais contava-me alguns episódios reveladores da existência dessa atmosfera de incúria lusitana que parece atravessar todas as camadas da nossa sociedade. Destaco um, em particular. A sua unidade de transformação, na região de Lisboa, confronta-se regularmente com a falta de técnicos especializados em maquinaria de corte e lapidação e, sobretudo, com a extrema penúria de primeiras linhas de chefia. Conhecedor de um excelente contramestre numa fábrica congénere do sul de França, um português experiente, maduro e com vontade de regressar à terra, o nosso empresário realizou uma operação de comando a terras gaulesas e em quinze dias o esmerado emigrante-contramestre estava a trabalhar em Portugal. "Foram os melhores quinze dias, os que antecederam a sua vinda, porque pensei que estava à beira de resolver definitivamente um problema agudo na fábrica. Mas após um mês de ares portugueses, o homem ficou exactamente como os anteriores - mole e descuidado. Eu nem queria acreditar que era o mesmo contramestre exemplar que tinha conhecido em França...", desabafava o nosso empresário. Não consigo retirar uma moral desta história, mas lá que começa a haver alguma evidência empírica da existência de uma "atmosfera lusitana", disso não tenhamos dúvidas.
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 6 de Janeiro de 2005