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21 de setembro de 2006

A irresponsabilidade financeira regional 

Por Vital Moreira

As regiões autónomas dos Açores e da Madeira têm, sem dúvida, direito à solidariedade nacional para compensar os custos de insularidade e da perifericidade e para ajudar à sua convergência para a média do desenvolvimento nacional. Mas o actual regime de finanças regionais é insustentável para as finanças nacionais, mesmo que a necessidade de disciplina das finanças públicas não fosse tão premente como é.
O mínimo que se pode dizer é que as regiões autónomas beneficiam de um regime financeiro ímpar. Por um lado, recolhem todas as receitas fiscais nelas cobradas ou geradas e gozam de volumosas e diversificadas transferências anuais do Orçamento do Estado (que é alimentado somente pelos contribuintes do continente). Por outro lado, nem sequer contribuem para o financiamento das despesas gerais da República (órgãos de soberania, justiça, forças armadas, forças de segurança, embaixadas e relações externas, contribuições para as organizações internacionais, a começar pela ONU e pela UE, etc.), para além de o Estado continuar a financiar os importantes serviços públicos nacionais existentes nas regiões (tribunais, universidades, etc.).
Este insólito regime de favor tem algumas raízes na Constituição (como a independência orçamental e o direito às receitas fiscais), mas foi sendo progressivamente conquistado pelos governos regionais aos governos da República, culminando com a Lei de Finanças Regionais de 1998, no tempo de Guterres (de quem haveria de ser?!), que se traduziu numa verdadeiro "assalto" regional ao Orçamento do Estado.
Na verdade, são vários os títulos pelos quais as regiões autónomas "sacam" dinheiro do Orçamento do Estado. O principal é uma transferência anual directa, que equivale no essencial a uma capitação das despesas de investimentos do Orçamento do Estado (PIDDAC), mas com uma cláusula de salvaguarda, que lhes garante uma transferência pelo menos igual ao montante do ano anterior, acrescido da taxa de crescimento da despesa pública. Por maiores que sejam as dificuldades financeiras do Estado, as regiões autónomas saem sempre a ganhar. Os contribuintes do continente que paguem a factura!
No entanto, há várias outras transferências. Entre elas estão, por exemplo, as bonificações fiscais correspondentes a planos de incentivos nacionais, na sua incidência nas regiões autónomas, o que quer dizer que elas beneficiam dos incentivos, enquanto a respectiva despesa fiscal é suportada pelo Estado. O mesmo se passa com as comparticipações nacionais nos programes de incentivos comunitários -, também aqui é o Orçamento do Estado que paga a parte correspondente aos Açores e à Madeira. Acresce que o Estado também co-financia os chamados "projectos de interesse comum", cuja definição latitudinária permite que as regiões reivindiquem o financiamento de tudo e mais alguma coisa, nomeadamente nos projectos mais dispendiosos de infra-estruturas (aeroportos e portos). Há ainda as transferências para as autarquias locais insulares, ao abrigo da lei das finanças locais (apesar de a tutela sobre as autarquias caber aos órgãos de governo regionais).
Também não são somente os serviços do Estado nas regiões que são pagos pelo Orçamento do Estado. Há muitas outras despesas à conta dele, como por exemplo o rendimento social de inserção, a convergência tarifária na energia eléctrica, os subsídios nos transportes aéreos e marítimos, etc. Como se vê, tudo somado, trata-se de uma verdadeira cornucópia jorrando dinheiro do continente para as regiões autónomas.
No meio desta "labúrdia" financeira há situações verdadeiramente escandalosas. Basta citar duas delas. A primeira tem a ver com o IVA. Na verdade, em vez de receberem o IVA correspondente às transacções nela realizadas, de acordo com a taxa nelas vigente, elas conseguiram obter do Estado um regime tal que lhes permite receber o equivalente à capitação do total do IVA do continente, podendo elas manter um IVA muito mais baixo (neste momento é de 15 por cento na Madeira, muito abaixo da taxa "nacional" desse imposto). Ou seja, os contribuintes continentais não só têm de pagar mais para equilibrar as finanças públicas, como ainda por cima têm de pagar uma parte para as regiões autónomas, que se podem dar ao luxo de ter o IVA mais baixo sem com isso ter nenhuma redução da receita.
A segunda situação bizarra diz respeito ao endividamento. As regiões autónomas podem contrair empréstimos, que gozam da garantia do Estado, beneficiando portanto dos juros mais baixos. Além disso, porém, as regiões conseguiram obter do Estado em várias ocasiões o pagamento dos juros da sua dívida, ou da própria dívida, o que culminou com o pagamento de 110 milhões de contos para cada uma delas, estabelecido pela referida lei de finanças regionais em 1998 e 1999. Ou seja, por cima das receitas próprias e as transferências do Estado, as regiões ainda se endividam para além da sua capacidade, vindo depois o Estado assumir as suas dívidas!
Este incrível regime de finanças regionais tem quatro defeitos fatais. Primeiro, assenta em vultosas transferências do Orçamento do Estado em termos indiferenciados, sem ter em conta o desenvolvimento de cada uma das regiões, sendo por isso injusto. Neste momento, a Madeira já está entre as regiões mais ricas do país, acima da média nacional, continuando porém a receber uma ajuda maciça paga pelos contribuintes do continente, apesar de três regiões deste serem muito mais pobres do que ela (Norte, Centro e Alentejo). Segundo, este sistema de finanças regionais não cria nenhuma solidariedade regional com as dificuldades financeiras nacionais, ficando em geral imunes à necessidade de sacrifícios para equilibrar as finanças do Estado: os contribuintes continentais que paguem as crises! Terceiro, o regime das finanças regionais permite que, no caso do IVA, as regiões beneficiem de taxas mais baixas sem nenhuma diminuição da sua receita, num caso de óbvia irresponsabilidade fiscal. Quarto, a garantia dada pelo Estado ao endividamento regional criou um clima de laxismo financeiro, que permitiu às regiões endividarem-se para além das suas capacidades, pressionando depois o Estado para cobrir tais dívidas.
Foi entretanto anunciada uma revisão da lei das finanças regionais, sendo conhecidas algumas das mudanças defendidas pelo Governo, nomeadamente o fim do referido regime excepcional do IVA, a eliminação da garantia do Estado ao endividamento regional e a variação das transferências financeiras para as regiões tendo em conta o diferente grau de desenvolvimento de cada uma. As regiões autónomas não tardaram a reagir com grande alarido, rejeitando liminarmente essas propostas ("nem um euro a menos!", clamaram). Porém, o mínimo que se pode dizer é que as referidas mudanças são imprescindíveis e que só pecam por defeito. Deveria ir-se bem mais longe, caminhando para um regime semelhante ao das ajudas regionais e de coesão da União Europeia.
Seja como for, as regiões autónomas não podem viver eternamente à custa do continente e têm de ser solidárias com as dificuldades financeiras da república. A posição que têm adoptado nesta questão, especialmente a Madeira, coloca-as ao nível da irresponsabilidade política de qualquer grupo de interesse na defesa de pretensos "direitos adquiridos". Francamente, é de exigir delas algum sentido de Estado.

(Público, Terça-Feira, 19 de Setembro de 2006)

Virtudes e limites do "governo pactício" 

Por Vital Moreira

O acordo entre o PS e o PSD sobre a reforma da justiça, que é de aplaudir em geral, desencadeou uma espécie de "vertigem pactícia". Há os que sentem excluídos do acordo e também queriam estar nele. A par de algumas críticas, há protagonistas políticos, alguns partidos, grupos sociais e observadores a clamar por mais. Porém, numa democracia maioritária, como a nossa, os acordos políticos à margem dos procedimentos normais da democracia parlamentar devem ser usados com toda a contenção.
As críticas ao acordo não vêm somente dos que pensam que não deve haver nenhum acordo privativo entre o Governo e PSD, como é o caso dos partidos da oposição de esquerda, mas também dos que acham que deveriam ter sido parte nele. Entre estes, para além dos partidos políticos que se sentem enjeitados (nomeadamente o CDS-PP), contam-se sobretudo os grupos profissionais do sector, designadamente as corporações judiciárias. Mas é evidente que o alargamento partidário do acordo tê-lo-ia tornado politicamente inviável e que não faz nenhum sentido a participação das corporações profissionais num acordo político formal sobre o sector da justiça.
Quanto aos partidos políticos, não carece de grande demonstração o argumento de que, enquanto a plataforma de convergência entre o PS e o PSD era muito grande à partida (além do mais, pela ausência de grandes divergências ideológicas nesta área), tornando viável o acordo sem grandes cedências recíprocas, já assim não sucederia se o espectro dos partidos envolvidos fosse mais amplo.
No que respeita à pretendida participação dos grupos profissionais do sector no referido acordo, ou à negociação prévia com os mesmos, ela não tem nenhuma lógica democrática. Em primeiro lugar, o acordo não tem por objecto principal, nem muito menos exclusivo, o estatuto profissional dos agentes do sector. Em segundo lugar, em matérias de construção do Estado, a primeira regra democrática é que elas são de interesse geral e não de interesse sectorial ou corporativo.

Uma das grandes virtudes deste acordo político é justamente o ter-se afastado deliberadamente da ideia tradicional de "pacto para a justiça" como compromisso entre o Governo e os agentes e operadores do sector, numa espécie de "concertação judiciária" abrangente (incluindo os sectores profissionais), assumindo-se antes como acordo estritamente político-partidário. Na verdade, se a "concertação social" é compreensível, como o nome sugere, nas áreas económicas e sociais (e mesmo aí com vários limites), já não faz sentido nos assuntos que têm a ver essencialmente com as instituições constitucionais.
Um das perversões da democracia é a captura das instituições pelos interesses profissionais nelas envolvidos. A Justiça é porventura a principal vítima desta expropriação do Estado pelos interesses profissionais. Nesse contexto, este acordo significa a recuperarão integral da responsabilidade política na área da justiça, ou seja, um triunfo do Estado sobre as corporações. Dizer que não pode haver reforma da justiça senão com os seus agentes e operadores, conferindo-lhes uma espécie de "direito de veto", é um sofisma que justifica toda a complacência e pusilanimidade do poder político na cedência aos interesses organizados. Nada permite admitir que os interesses privativos das profissões judiciárias coincidem com os interesses públicos gerais da justiça. Há dois interesses essenciais que não têm voz própria nem sindicato: os utentes da justiça e os contribuintes. É para eles que deve ser feita a reforma.
Sucede que, na senda do acordo sobre a reforma da justiça, rapidamente se desencadeou uma espécie de movimento em favor da adopção do mesmo método em vários outras esferas carecidas de reforma mais ou menos profundas, ou onde ela já está em curso, como a segurança social. Num excesso de entusiasmo, um comentador chegou a reclamar: «Venham mais quatro acordos»!
Esta nova teologia do "governo pactício", ou pactuado, deve ser esfriada e "desconfessionalizada". O cerne da democracia de partidos não consiste na consensualização sistemática de políticas entre o Governo e a oposição mas, inversamente, no confronto de posições, na justificação das soluções, na persuasão dos argumentos e na regra da maioria e da responsabilidade política de quem foi eleito para governar. É aliás suposto que entre o Governo e a oposição, que já governou e se candidata a governar no futuro, existam suficientes diferenças para justificar a alternância democrática e a mudança de políticas. Se se consensualizam e se rigidificam as principais políticas, o que é que resta para o debate e a dialéctica democrática?
Afora situações excepcionais (como a crise aguda das finanças públicas que em 2003 levou alguns, entre os quais me conto, a defender um acordo para a disciplina das finanças públicas, estando então em exercício o governo da coligação PSD-CDS), os pactos políticos só se justificam em determinadas circunstâncias (e desde que não seja possível obter as necessárias convergências no quadro dos procedimentos normais da democracia parlamentar), designadamente as seguintes: (i) quando os acordos sejam implicitamente "impostos" pela Constituição, como sucede com as decisões que carecem de uma maioria de 2/3 (revisão constitucional, sistema eleitoral, etc.); (ii) quando se trate de matérias de construção do Estado, nomeadamente as que afectam o funcionamento das instituições essenciais (Tribunal Constitucional, sistema judicial, regime dos partidos políticos, etc.); (iii) quando se trate de assuntos que criem situações irreversíveis e comprometam decisivamente os governos futuros (como, por exemplo, os compromissos políticos internacionais duradouras, de que são paradigma os que respeitam, à UE).
No acordo sobre a justiça estão em causa as instituições essenciais do Estado de direito. Além disso, as divergências partidárias são de baixa intensidade e o acordo tinha grande possibilidades de ser um arranjo "win-win", em que ambos os contratantes ganham: ganha o Governo, porque reforça a sua capacidade de levar a cabo uma reforma importante sem ter necessidade de transigir em nada de essencial no seu próprio programa, e ganha a oposição, porque se associa a uma reforma emblemática e consegue fazer valer alguns dos seus pontos de vista. Ora, tirando a reforma do sistema eleitoral, nenhum dos demais acordos aventados pela oposição e pelos observadores encaixa em qualquer das referidas situações.
Nas demais hipóteses, trata-se em geral de questões de natureza económica e social, que são normalmente aquelas em que a divisão entre o governo e a oposição é natural e desejável. Pode compreender-se o desejo da oposição de condicionar o Governo e pressioná-lo para adoptar as suas próprias políticas. Pode justificar-se uma eventual tentação do Governo em chegar a acordo com a oposição para melhorar as condições de êxito de uma reforma, ampliando o seu suporte político, mesmo tendo de ceder em alguns pontos importantes das suas posições. Mas nada disso pode justificar o sacrifício do programa político em que o Governo se encontra comprometido, nem os acordos forçados em matérias nas quais o Governo e a oposição se acham muito afastados à partida. É manifestamente o que sucede na segurança social, onde a proposta do PSD, para além de ser financeiramente insustentável durante um largo período de tempo, assenta em pressupostos ideológicos com os quais o PS não pode transigir.
Pior do que a falta de "acordos políticos" entre Governo e oposição pode ser a precipitação e o abuso deles.

(Publico, Terça-Feira, 12 de Setembro de 2006)

17 de setembro de 2006

Aceh - Sharia confrontando a Indonésia 

Carta e Relatório enviados, a 8/9/2006, a todos os Membros do Parlamento Europeu, à Presidência finlandesa do Conselho de Ministros da UE, ao Presidente da Comissão Europeia e a diversos Comissários europeus


"Dear All,

Last July, from 19 to 26, I revisited Banda Aceh and Jakarta.
I came in response to an appeal from Nursyahbani Katjasungkana, a Member of the Indonesian Parliament (PKB party) with an outstanding background as an activist for human rights and women's rights in particular. Joanna Chellapermal, with extensive work in Indonesia on conflict prevention and interfaith dialogue promotion, accompanied me.
In Banda Aceh I met with local women's groups, the top representative of GAM (Yusuf Irwandi) and of the Indonesian Government in the peace process (General Darmono), several members of the AMM (Aceh Monitoring Mission) including its leader, Peter Feith, and the head of the local Dinas Sharia (Department of the Sharia).
In Jakarta I met with several members of the Parliament (DPR) from the main parties, including the Speaker of the DPR, Mr. Agus Laksono, and also Mr. Theo Sambuaga (GOLKAR), the Head of Comission I (Foreign Affairs and Security). I also met with women rights activists, representatives of interfaith organisations, top journalists and human rights campaigners and several government officials whose judgement I trust.
I wrote this report to share with you, as a friend of Indonesia who knows well the country and admires its people, my concern - actually my alarm - at a situation I see rapidly developing in Aceh, and elsewhere, and which is seriously threatening the national fabric of Indonesia.
ASEM is taking place this week-end in Helsinki. Please urge the government representatives of your country and the European Commission to start exchanging views on this matter with the Indonesian representatives at ASEM and to follow up those discussions with concrete action to support all those who are struggling to keep Indonesia, the world's biggest Muslim nation, united, secular, democratic and tolerant.

Best regards
Ana Gomes, MEP


REPORT

ACEH - SHARIA CONFRONTING INDONESIA


1. Official Sharia in Aceh - hurting women means perverting Peace

The compound of the WFP-World Food Programme in Banda Aceh was raided on the night of last August 17, the National Day of Indonesia, and the rooms of UN foreign workers were broken into by the local Sharia police. An UN official told the Deutsche Press Agentur that «no one wants to make a big deal about it publicly at the moment».
Indeed, no one seems prepared to raise the issue: not the UN, not Europe, not the US (in fact, the US are paralysed by the lack of credibility of their policies also in this part of the Muslim world). Why ? Despite the billions of dollars spent to help Aceh recover from the 2004 tsunami and a 29 year-long separatist war, no one so far paid attention to the dramatic implications of allowing a moral police, the Sharia Police, to become much stronger than the State Police or any other law enforcing authority, or of allowing a law to be implemented which imposes Taleban style local government.

In Aceh, the women are the first to suffer the consequences of the rise of the Sharia. Talk to any girls there - like the «jilbab»-covered teenagers I met enjoying the sunset breeze on their motorcycles in Banda Aceh port - and they will tell you how they fear the Sharia Police. They fear being beaten and arrested for not wearing their headscarves «properly». Talk to those brave women who actually kick-started the Peace Process back in 2000, the organizers of the «All Acehnese Women Congresses», and they will raise these and many other worries - all of them are devout Muslims who have always followed Sharia as a personal commandment and for whom an officially enforced extremist interpretation of Sharia is offensive, and actually «un-Islamic». For them this perversion of the peace process shows how much women's voices, interests and human rights, have been disregarded by all the main actors: the Indonesian Government, the rebel movement GAM and also the international facilitators. Including the EU, which fielded the Aceh Monitoring Mission (AMM) to monitor the peace process, launched by the Helsinki Memorandum of Understanding of August 15, 2005.

The very day I returned to Aceh last July (and I have been visiting since 2000) the news were particularly alarming - the Lhokseumawe Court had just sentenced a man and a woman accused by the Sharia Police of improper sexual behaviour to several lashings. He was a Member of the local Municipal Assembly and a leader of a main Muslim Party, PBB. She was his assistant. They were working on a Sunday in the Municipal Assembly building, in separate offices. The woman's husband testified she was working. Even before the trial, their reputations had been destroyed by the local newspapers. The State Police did not lift a finger. The Judge admitted the verdict did not conform to Indonesian law, but was too scared to decide otherwise, as he had been threatened. As a politician, the man intended to appeal to the Banda Aceh Court and could go as far as the Indonesian Supreme Court. Had he been a common citizen, both his assistant and himself would have already received the lashings. But obviously it was not by chance that he was the target: the case was politically motivated, perhaps to demonstrate that no one is safe from the Sharia Police.

I brought up the question with all top representatives of the parties in the peace process. GAM representative, Yusuf Irwandi, stated that GAM had never fought for the enforcement of the Sharia in Aceh (that was indeed stated by GAM already in 2001, when the local Ulama were lobbying for it and former President Wahid yielded). He was worried with the way the Sharia was being implemented, but unwilling to make religion an issue. Significantly, on August 14 Malik Mahmud, the GAM «prime minister», went further and said publicly what most Acehnese - men and women - have been saying for years: «This is not what the Acehnese want».

GAM must in the meantime have realised what most Indonesian legislators did not, while approving the Law on Governing Aceh (LOGA), last July, at the Indonesian Parliament (DPR): that the LOGA as it stands actually paves the way for more power to the Dinas Sharia (Sharia department), and the Muslim local religious leaders in the Ulema's Council (MPU) - it makes them not just a parallel power to the State institutions such as the local Governor, the Police and the Aceh Provincial Assembly (DPR-D). It makes them the power in Aceh, by giving them law enforcement powers and by making the MPU responsible for all matters, and weighing in decisively with the DPR-D. In effect, it creates a theocracy within Aceh which has little to no accountability or safeguards against abuse of power, similar to what we have been witnessing in Iran and Afghanistan. And it makes a mockery of the very positive developments towards greater democracy and the rule of law in Indonesia.

And GAM must also have realised, in the meantime, that the Dinas Sharia and their supporters in the DPR-D have already drafted even stricter local regulations (qanuns) to implement the LOGA, which are awaiting final approval by the DPR-D, probably after the elections in December.

Hopefully it is not too late for GAM and Jakarta, AMM, the EU, the UN and others to realise that if those qanuns are to respect the aspirations and rights of the Acehnese, including their human rights, and indeed Indonesian law, a drafting committee should be immediately established, including representatives from GAM, civil society and women groups, to ensure that the process is inclusive and not hijacked by a group of radical Islamists. President Matti Ahtisaari, the patron and broker of the Aceh peace efforts, recognized the importance of including women in this process, mentioning their contribution in an important communication he made in Aceh on the occasion of the anniversary of the Helsinki Peace Accord, significantly focused on the "WOMEN IN ACEH".


2. Not just about Aceh - it is about Indonesia

But the problems go beyond attacks on women. And, actually, beyond Aceh.

The soft spoken and composed Head of the Dinas Sharia, Aliyasa Abubakar, whom I went to see in Banda Aceh, made no secret about it: Aceh is a pilot project for all of Indonesia. A pilot project for all those who want Indonesia to drop its secular foundations and become an Islamic State with an extreme version of Sharia.

The same was candidly confirmed by Nasir Jamil, the friendly young Member of the Indonesian Parliament from the PKS, the Islamist political party driving the national Sharia campaign and a partner of the coalition which elected President Susilo Bambang Yudhoyono. I met him in the DPR in Jakarta. He actually worried that the Sharia Police in Aceh was overdoing it, with their military boots, uniforms and brutal raids, scaring the people. And he candidly admitted that it was planned to implement the severest forms of Hudud (corporal punishments such as cutting hands and stoning), which were not yet there but would gradually be enforced.

Tangerang, Banten (outskirts of Jakarta) and Bulukumba (in South Sulawesi) are already outposts of this spreading radical zeal, translated into regional laws: the Tangerang administration, for instance, forbids the presence of women on the streets after dark - and that is causing tremendous problems for women factory workers in the area, who are loudly complaining.

The trouble is that many people at the grassroots in Indonesia welcome this move. Not because they really want a militant Islamist government, but because the radicals have been very successful in presenting Sharia law as the solution to crime and corruption in Indonesia, without explaining what they mean by Sharia Law.

This alarming Islamist drive is being felt, increasingly, also at the national level: the latest attempt comes from the so called "anti-pornography bill", which some Ministers, central government officials and the Indonesia Ulema Council (MUI) are urging the DPR to pass. It has little to do with preventing pornography. In reality it imposes extremist morality and dress code, and labels much of Indonesian traditional culture, art and dance as pornographic. Moderate Indonesian Muslims, artists, and cosmopolitan women, in Jakarta and in other cities around the country, are up in arms: some 28 provincial representatives and 200 women and cultural associations and NGOs issued in June the «Surabaya Declaration» - in defence of Indonesia and against attempts to undermine Indonesian national unity through legislation or other means and specifically objecting to the "anti-pornography" legislation.

Attempts to radicalise Indonesia are triggering a strong reaction in many parts of the country where other religious groups predominate or are significantly represented - in Hindu Bali, where women were traditionally bear-breasted until some three decades ago, people are increasingly talking of seceding from Jakarta. The same goes for Catholic Flores and other islands of Eastern Indonesia, where tensions are growing between Muslim and non-Muslim communities. Even in Eastern Java, where Islamic devotion always co-existed with bare-shouldered dresses for women...

What is at stake is actually Indonesia: Indonesia's national integrity, Indonesian unity and Indonesian nationhood. What is at stake is what was so painfully achieved by the Indonesian founding fathers who liberated millions of people - of diverse cultures, languages, religions and ethnic groups - from the servitude of colonialism by building a formidable Nation on a huge archipelago according to the motto 'Binnekka Tunggal Ika' - unity in diversity. They entrenched the secular nature of the State for that Nation, where the largest Muslim population in the world lives, by proclaiming the 5 principles of the Pancasila. Significantly, a recent inter-faith congress of Indonesian religious leaders agreed to form a joint working group to revive the values of tolerance imbued in the Pancasila, in order to prevent sectarian conflicts.

In Jakarta all those who are alarmed told me that the Government and the Parliament have been too passive in the face of the evident dangers, thus allowing a 5th column in their midst to steer this radical Islamist drive. It has certainly been backed financially and otherwise by the usual Arab patrons - who have long been supporting, in one way or another, Darul Islam, Laskar Jihad and other Laskars, FPI and Jemaah Islamyia (although a top Jakarta official told me that the Sharia masterminds in Aceh can already live without the usual foreign sources of funds - they run the supply business of timber, cement and sand coming from Medan for the reconstruction...).

The unity, stability and democratic progress of Indonesia are too important to be ignored. Not just for the Southeast Asian region but for the world. In the past unity and stability have been used as an excuse for the West to outrageously turn a blind eye towards what was happening in Indonesia - the Suharto regime's repression, rampant corruption and nepotism, the disastrous East Timor adventure, etc... There is no excuse now to go on ducking this serious problem.

The coming ASEM meeting is a crucial opportunity for European leaders to discuss these challenges with the Indonesian President, Ministers and Parliamentarians who are going to gather in Helsinki by the end of this week.

There is no excuse for the European Commission and Member States not to embark immediately and decisively on a strategy to help all those who in Jakarta, Aceh and throughout Indonesia, are keen to keep the country united, secular and tolerant. They are also fighting to consolidate democracy, combat terrorism and promote human rights, women's rights and sustainable development for the people of Indonesia. All these are values Europe claims to defend. The fate of Indonesia is decisive for a world that aims to avoid the dire prophecy of the Clash of Civilizations.

Ana Gomes, MEP
Former Portuguese Ambassador to Indonesia (1999-2003)
Founder and Member of the Portuguese-Indonesia Friendship Association

A INDISPENSÁVEL EUROPA 

por Ana Gomes


A disponibilidade de enviar 7000 tropas para o sul do Líbano revela que a Europa está a preparar-se para assumir um papel mais activo na cena internacional e no Processo de Paz do Médio Oriente em particular. Os governos europeus não podem enviar tantos soldados para uma zona tão perigosa, e sob um mandato da ONU tão ambíguo, sem tomar a decisão de se envolver activamente na resolução do conflito que levou ao envio.
Porém, os comentários surpreendidos sobre as decisões da França, da Itália, da Espanha, de Portugal e até da Alemanha em arriscar as suas tropas (e as suas marinhas) no pântano libanês, mais parecem reflectir a "Europa fechada sobre si própria", "impotente", "irrelevante", "desunida", "antimilitar" etc.
Na verdade, o envio de tropas europeias para o Líbano - ainda que fora de estruturas da União Europeia (UE) - reflecte não o corte com um passado de impotência, mas sim a continuidade da dinâmica de afirmação europeia na esfera internacional que, desde 2003 (apesar das clivagens sobre o Iraque, ou por causa delas...), inclui o uso de meios militares quando estes se afiguram necessários.
Em Junho de 2003, a missão militar Artémis da UE no Nordeste da República Democrática do Congo (RDC) foi decisiva para pôr fim às atrocidades que se cometiam na região de Ituri, ao mesmo tempo que permitiu à ONU a transição para uma missão MONUC II reforçada - que hoje, com 17.000 elementos, é a maior missão de paz da ONU. No mês passado, a força militar europeia que se encontra no Congo, a EUFOR-RDC - que inclui fuzileiros portugueses - teve um papel decisivo em fazer calar as armas entre as forças dos candidatos presidenciais Kabila e Bemba, incorrígiveis senhores da guerra.
Ao participar na missão de observação do Parlamento Europeu às eleições presidenciais e legislativas de 30 de Julho na RDC, testemunhei a gigantesca operação logística de organizar eleições num país do tamanho da Europa Ocidental. Esta operação - e de facto, todo o processo de transição da RDC desde 2003 - não podia nunca ter chegado até aqui sem a UE. Se as eleições devem ser motivo de orgulho para o povo congolês, também assim será para a Europa, que as financiou a 80%, (só Comissão Europeia contribuiu com ?165 milhões).
O envolvimento da UE na RDC, desde o fim da terrível guerra que devastou o país, tem sido o melhor exemplo da aplicação no terreno da Estratégia Europeia de Segurança, de 2003: ajuda humanitária e ao desenvolvimento, apoio técnico à desmobilização e ao desarmamento de milícias, sustentação do processo político e instrumentos da Política Europeia de Segurança e Defesa - todos são meios complementares, usados de forma coerente para atingir um fim último: um Congo democrático, pacífico, próspero e estável, capaz de controlar os fabulosos recursos em favor do seu povo. O Congo ilustra o que os líderes europeus têm de saber explicar aos seus concidãos: o 'multilateralismo eficaz' que a Europa quer construir também tem de passar pelo arriscar da vida de soldados europeus, no uso da força militar estritamente aplicada no quadro da legalidade internacional.
A UE já tem neste momento cerca de 6000 tropas na Bósnia, 2000 em África no contexto da EUFOR RDC, sem falar nas importantes - mas cada dia mais insuficientes - contribuições europeias no Afeganistão e no Darfur. Além do Líbano, poderá ter de refroçar forças na Palestina (já tem em Gaza duas missões, uma afecta à formação da Polícia, outra vigiando a fronteira com o Egipto). Em todos estes casos, a abordagem europeia tem integrado o uso de meios militares e policiais numa paciente estratégia politica de estabilização, desenvolvimento e democratização a longo prazo. Isto nada tem a ver com aventuras militares e ânsias de 'regime change'. Trata-se de conceber a segurança como um complexo articulado de factores económicos, políticos, humanitários, e sim, militares - e de agir quando é preciso agir. A Europa não faz milagres, não liberta de um dia para o outro países do jugo de um ditador sanguinário. Mas também não mergulha países em sangrentas guerras civis...
Nesse sentido, a participação europeia na força da ONU no Sul do Líbano pode representar um passo de gigante no amadurecimento de uma política externa europeia. Enquanto a Comissão Europeia contribui para a reconstrução, para a ajuda humanitária e para o desenvolvimento do Líbano, as capitais europeias colocam tropas no terreno e injectam capital político e uma nova dinâmica num processo de paz que parecia moribundo, desde há muito abandonado por Washington.
Talvez tudo isto não dê em nada. Talvez um reacender das hostilidades entre Hezbollah e Israel deite tudo a perder. Mas antes desta última guerra no Médio Oriente insistia-se que sem o envolvimento dos EUA não haveria paz entre árabes e israelitas. Agora tudo indica que sem a indispensável Europa não haverá paz no Médio Oriente.

(publicado pelo COURRIER INTERNACIONAL em 15.9.06)

A Sharia ameaça a Indonésia 

"Aceh's harsh Islamic law is an ominous sign" é o título de um artigo meu publicado dia 13 de Setembro de 2006 pelo "International Herald Tribune" - edição Ásia (ver online: http://www.iht.com/articles/2006/09/13/opinion/edgomes.php)

Na ABA DA CAUSA pode ler-se o texto de uma carta sobre o assunto que mandei no final da semana passada, vésperas da ASEM, a todos os membros do Parlamento Europeu, à Presidência Finlandesa da UE, ao Presidente da Comissão Europeia e a vários Comissários Europeus.

Anexo à carta está o texto integral do Relatório "Aceh - Sharia confronting Indonesia" que elaborei, na sequência de visita que fiz ao Aceh e a Jacarta em Julho último, sobre as violações dos direitos humanos, em especial das mulheres, e os riscos para a unidade, integridade e natureza secular do Estado indonésio que resultam da aplicação oficial da Sharia no Aceh e em diversas outras localidades na Indonésia.

8 de setembro de 2006

Sobrevivências corporativas 

Por Vital Moreira

O Governo resolveu actualizar, aliás em montantes geralmente despiciendos, alguns encargos da ADSE, o "subsistema de saúde" específico dos funcionários públicos, suscitando a ira dos seus beneficiários. Mas o remédio para os problemas daquele serviço deveria ser bem mais radical. Tratando-se de um serviço constitucionalmente problemático, financeiramente oneroso e socialmente iníquo, a solução está em extingui-lo.
De facto, o sistema de saúde privativo dos funcionários públicos começa por ser constitucionalmente duvidoso (para dizer o menos). Tendo sido criado ainda nos anos 60 do século passado, no contexto profissional-corporativo do Estado Novo, a ADSE manteve-se como sistema obrigatório após a criação do SNS, apesar de isso contrariar a vocação universal e geral deste (assim o define a Constituição). Tal como os demais regimes privativos de segurança social e de saúde de base profissional, a ADSE constitui um resquício do corporativismo, sendo, portanto, anómala num sistema de serviços públicos universais de segurança social e de saúde, cuja criação após a Constituição de 1976 deveria ter levado à sua extinção como esquemas alternativos obrigatórios, ou à sua transformação em regimes suplementares facultativos.
Nem se diga que a ADSE constitui uma obrigação do Estado para com os seus trabalhadores. Desde logo, se fosse uma obrigação, deveria valer para todos os trabalhadores da administração pública (incluindo os que têm regime de contrato de trabalho) e não somente para os funcionários propriamente ditos, como é o caso. Segundo, e mais importante, a única obrigação constitucional do Estado quanto à garantia do direito à saúde consiste em criar e manter o SNS, como sistema universal, para todos, incluindo os funcionários públicos (a ADSE foi criada obviamente quando não havia SNS) e não em manter sistemas alternativos específicos para o seu pessoal, ou uma parte dele.
Em segundo lugar, os custos financeiros da ADSE são consideráveis, apesar de ser um regime supostamente "contributivo". De facto, os funcionários descontam obrigatoriamente um por cento das suas remunerações - de que estão aliás isentos os reformados, vá-se lá saber porquê. Mas o montante global dessa contribuição cobre apenas uma pequena parte dos encargos correntes do sistema, sem contar com as elevadas despesas de investimento! Mesmo que se descontassem os pagamentos da ADSE ao SNS pelos cuidados adquiridos a este e os gastos que o SNS poupa por não ter de prestar os cuidados que os beneficiários da ADSE obtêm no sector privado, o défice desta mantém-se presumivelmente elevado. Isto sem contabilizar as tradicionais fraudes (a começar pelas célebres "facturas desdobradas") e o incentivo ao consumo supérfluo de cuidados médicos (o crescimento das despesas do subsistema é superior ao do SNS). De resto, há que contabilizar os altos custos administrativos da ADSE (pessoal, instalações e equipamentos), que obviamente são um encargo suplementar em relação ao SNS.
Além do mais, a ADSE contribui para obnubilar os custos reais da saúde no Orçamento do Estado. Afinal, eles não se resumem ao SNS nem ao orçamento do Ministério da Saúde, tendo de se adicionar os custos da ADSE, inscritos no Ministério das Finanças, e os custos de outros subsistemas de saúde, a cargo de outros ministérios.
Por último, a ADSE é um sistema socialmente iníquo. Desde logo, como se referiu, ela abrange somente uma parte do pessoal da administração pública - a que goza do regime de função pública -, não contemplando o pessoal em regime de contrato de trabalho. Isso quer dizer que a ADSE se vai tornando um privilégio de "estado" dentro da própria administração pública. Além disso, ela traduz-se numa regalia dos funcionários públicos (mais uma) em relação aos trabalhadores do sector privado, para mais sendo financiada, em parte considerável, pelos impostos pagos pelos segundos, utentes gerais do SNS, que não gozam das mesmas vantagens.
Quando se impõe a redução do défice público, a diminuição da despesa pública e a eliminação das tarefas supérfluas do Estado, não se compreende a manutenção desta situação. De resto, mesmo que a ADSE não implicasse custos adicionais para o Estado (se houvesse equivalência entre o que a ADSE custa e aquilo que o SNS recebe dela ou teria de gastar com os beneficiários dela, se a mesma não existisse), sempre restaria a questão de fundo: porquê a manutenção de um regime privativo diferenciado para a função pública, se existe constitucionalmente um sistema público de saúde para todos (incluindo os funcionários)?
Há duas soluções para a ADSE (para além da condenável manutenção do "statu quo"): (i) extinguir o serviço, deixando de cobrar a respectiva contribuição, podendo os funcionários, como quaisquer utentes do SNS, subscrever planos de saúde suplementares privados; (ii) tornar o serviço facultativo, disponível para todo o pessoal da administração pública, e elevar as contribuições dos beneficiários, de modo a equilibrar as finanças do serviço, que deveria passar a ter autonomia financeira e a ser financeiramente auto-sustentável, incluindo os seus custos de administração.
Sistemicamente, a primeira solução é a mais coerente com a natureza universal do SNS e com a igualdade entre os cidadãos. De resto, se ao fim de tantos anos os funcionários públicos deixaram de ter um regime privativo de segurança social, passando os novos funcionários, desde o início do corrente ano, a integrar o regime geral de segurança social, por que é que não há-de fazer-se o mesmo no caso da saúde? A segunda solução é um "second best", tornando a ADSE num subsistema facultativo de saúde suplementar, exclusivamente contributivo, uma espécie de seguro de saúde gerido pelo Estado (que aliás poderia "externalizar" a sua gestão).
No ano passado, o Governo "atacou" com toda a pertinência a maior parte dos regimes de saúde especiais do sector público (embora sem os extinguir totalmente, como deveria), mas manteve intocado o principal regime especial, que é o da própria ADSE. Será que ainda resta um fôlego adicional na vis reformista do Governo nesta área, ou prevalecerão os interesses dos beneficiários, do próprio aparelho administrativo da ADSE, dos médicos e demais fornecedores que tiram proveito do sistema e, até, do próprio Ministério da Saúde, que assim se vê aliviado de mais um encargo no seu orçamento?

(Público, Terça-feira, 5 de Setembro de 2006)

1 de setembro de 2006

Israel 0, Hezbollah 0: ganha o Irão 

por Ana Gomes


A mais importante conclusão a tirar da guerra entre Israel e o Hezbollah é a de que ambos os actores perderam: ambos clamam vitória, mas ambos falharam os seus objectivos.

As recentes declarações do líder do Hezbollah, o Xeque Hassan Nasrallah, indicam que o movimento não contava com a resposta esmagadora de Israel. Nasrallah parece ter aprendido a lição: "Não pensávamos que a captura [de dois soldados israelitas] ia levar a uma guerra nesta altura e desta dimensão. Se me perguntarem se eu tinha levado a cabo esta operação no dia 11 de Julho se soubesse que ela levava a uma guerra desta natureza, eu dizia-lhe não, nem pensar." A presença de tropas internacionais e do exército libanês no feudo do Hezbollah no Sul do Líbano não faziam, certamente, parte dos cálculos do movimento xiita quando este decidiu abrir hostilidades com Israel. Com o cessar-fogo a pôr fim ao seu papel de 'resistência', o Hezbollah debate-se agora com pressões reforçadas do povo libanês e das outras forças políticas libanesas no sentido de desarmar e passar a funcionar como partido normal.

Israel ainda calculou pior, propondo-se eliminar o Hezbollah de uma vez por todas. No final de contas, mais do que falhar apenas os objectivos militares, Israel falhou o objectivo político de reordenar o equilíbrio de forças na região. O Hezbollah só vai desaparecer como ameaça para Israel no contexto de um acordo político regional que inclua a Síria. E os israelitas já estão a punir os seus líderes por tentarem vender despudoradamente a ilusão de uma vitória militar rápida, fácil e total. A carreira política de um dos arquitectos da estratégia israelita, o Ministro da Defesa Amir Peretz, parece ter os dias contados, com o partido trabalhista já a pensar em demiti-lo da liderança. Também o Chefe do Estado-maior israelita, Dan Halutz, está a ser acusado de incompetência e corrupção.

O Irão, esse sim, venceu. De facto, para Teerão, as coisas não poderiam correr melhor: o regime vai prosseguindo o programa nuclear, pode viver com sanções económicas (com as quais sempre viveu) e provou durante esta guerra que não lhe faltam outros meios para retaliar, do Iraque ao Líbano.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros israelita já está a explorar possíveis cenários de negociações com Damasco, revelando um pragmatismo alheio aos falcões da Administração Bush, prisioneiros da lógica maniqueísta do "eixo do mal". Separar a Síria do Irão é essencial para ferir de morte o eixo Damasco-Teerão-Hezbollah e pôr fim aos fornecimentos iranianos ao movimento xiita. Apesar da retórica tonitruante, Damasco não quer outra coisa senão ser tratado como actor relevante na região e sair do isolamento internacional em que se encontra; resolvida a questão territorial das Quintas de Sheba e dos Montes Golã, não se furtará a colaborar (já o faz, encobertamente: a CIA subcontrata à Síria algum "dirty work" da "guerra contra o terrorismo", entregando-lhe uns suspeitozinhos para torturar....).

Não serão os EUA, sob uma Administração em fim de mandato, moral, politica e militarmente desacreditada, odiada por esse mundo fora e completamente incapaz de mediar no Médio Oriente, que vão determinar uma viragem positiva naquela região. A Europa é quem mais precisa de paz no Mediterrâneo: dela pode depender um novo Médio Oriente. A contribuição importante dos países da UE para a força de interposição da ONU é, assim, positiva, ainda que arriscada: é fundamental eliminar as ambiguidades da Resolução 1701, dando à UNIFIL reforçada mandato explícito nos termos do Capítulo VII da Carta da ONU.

Este será só o primeiro passo numa nova estratégia para a paz no Médio Oriente, que tem de passar inevitavelmente pelo fim da ocupação e criação de um Estado da Palestina viável e democrático. A Europa tem também de assumir a "responsabilidade de proteger": como já sugeriu o novo MNE italiano, a UE deve preparar o urgente envio de uma força de paz para Gaza. Palestina e Israel estão hoje visceralmente ligados, para o bem ou para o mal: quanto mais se afunda a Palestina sob ocupação, mais se perde Israel também. E todas as metástases terroristas que afligem o Mundo continuarão a alimentar-se deste cancro.

(Publicado no "COURRIER INTERNACIONAL" de hoje, 1.9.06)

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