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26 de janeiro de 2009

Portugal e os presos de Guantanamo 

Abaixo transcrevo uma carta que enviei há meses ao Primeiro Ministro, datada de 11 de Abril de 2008, sobre a reacção do Estado português relativamente aos pedidos que já a Administração Bush lhe havia submetido, em 2006, para acolher prisioneiros de Guantanamo entretanto ilibados de suspeitas pelas autoridades americanas.
Sua Excelência o Primeiro Ministro
Eng. José Sócrates,
Juntamente remeto a Vossa Excelência, para informação, uma carta que 0
Sr. John Bellinger, Conselheiro Juridico do Departamento de Estado dos
EUA, enviou no passado dia 27 de Fevereiro à Presidente da Subcomissao
de Direitos Humanos do Parlamento Europeu.
Nessa carta, 0 Sr. John Bellinger sublinha que os Estados Unidos da
América
"tornaram claro que gostariam de avançar para 0 dia em que
Guantanamo possa ser encerrado"
e cita 0 Congresso dos EUA concluindo
que
"a comunidade internacional no seu conjunto precisa de assumir a sua
responsabilidade em encontrar uma solução de longo prazo".

Segundo John Bellinger
''parte de tal solução reside na reinstalação de
alguns dos detidos que se encontram em Guantémamo",
realçando que 500
já foram libertados de Guantanamo para paises de todo 0 mundo e que
dos 275 actuais, 25 individuos
''foram já ilibados para transferência ou
libertação, mas não podem ser repatriados por causa de preocupações de
direitos humanos no que toca aos paises de origem".
Acrescenta ainda que
é neste ponto que é mais preciso o apoio europeu, informando que, no
ultimo ano, os EUA abordaram os Estados membros da UE numa base
bilateral, pedindo de acolhimento para aquelas pessoas.
2 - Através do Departamento de Estado, tive a informação de que em 2006
o Governo americano pediu às autoridades portuguesas que concedessem
asilo politico a cinco chineses uigures que estavam em Guantanamo e que
os EUA tinham ilibado de suspeitas. Esses chineses acabaram por ser
aceites pela Albânia.
3 - Tendo em atenção que Sua Excelência 0 Ministro dos Negócios
Estrangeiros já algumas vezes afirmou que Guantanamo deveria ser
encerrado;
- tendo em atenção que as pessoas para quem a Administração Bush
pede o acolhimento foram ilibadas de suspeitas de terrorismo, foram
vitimas de sequestro e de tortura em Guantanamo e não podem ser
devolvidas aos seus paises de origem por estes notoriamente violarem os
direitos humanos;
Muito agradeceria que 0 Govemo português me habilitasse com as
seguintes informações:
1- Por que razão recusou a concessão de asilo politico aos cinco uigures
chineses em 2006?
2- Solicitaram os EUA entretanto a Portugal que concedesse asilo
politico a outros detidos de Guantanamo igualmente ilibados de
suspeitas?
3- Se a resposta anterior é afirmativa, qual foi a decisão do governo
português e qual a respectiva fundamentação?
Ana Gomes
Deputada ao Parlamento Europeu pelo PS

22 de janeiro de 2009

O desnorte 

Por Vital Moreira

Supostamente, a última mudança de liderança do PSD, culminando uma rápida sucessão de protagonistas desde 2005, destinava-se a recuperar a credibilidade perdida pelo principal partido da oposição. Vários meses passados sem conseguir registar nenhum ganho de credibilidade política (pelo menos a crer nas sondagens de opinião), o recente pronunciamento pelo cancelamento do projecto do TGV - que o próprio PSD aprovou enquanto governo - e a comprometedora e falsa acusação a uma agência noticiosa por causa disso mostram que, além da falta de credibilidade, o PSD carece também de sentido de responsabilidade e de sentido de Estado.

Ferreira Leite desvendou finalmente o mistério da sua militante oposição aos projectos de "grandes obras públicas". O alvo escolhido é o projecto de rede ferroviária de bitola europeia, vulgarmente conhecido como "projecto TGV". Trata-se de uma decisão radical de "riscar" o projecto em globo, e não de uma simples proposta de adiamento ou de suspensão provisória, o que não deixa margem para outro entendimento que não seja o seu cancelamento e a paragem de todo o processo, incluindo os concursos públicos já abertos.

Contudo, o principal argumento da líder do PSD para anunciar a sua extremista oposição a esse projecto - que ela aprovou, aliás em versão mais ampla, quando foi ministra das Finanças! - revela muita mistificação e maior preconceito.

Dizer que, por referência ao actual tráfego aéreo, o previsível número de passageiros na ligação Lisboa-Madrid (e só a essa se referiu especificamente) não garante a rentabilidade financeira do investimento, não revela somente uma enorme leviandade política (pois o argumento seria tão pertinente hoje como há cinco anos, quando o governo do PSD e Ferreira Leite aprovaram o mesmo projecto), também esquece deliberadamente que essa linha não servirá apenas para as viagens entre as duas capitais, mas também para as viagens de Évora, de Elvas/Badajoz e mesmo de Mérida e Cáceres para Lisboa (e em especial para o novo aeroporto de Lisboa), e que a mesma linha terá também valência de transporte de mercadorias, o que constitui outra fonte de receita, ao mesmo tempo que fomenta a utilização espanhola dos portos de Lisboa, Setúbal e Sines.

Seja como for, como mostram os estudos de viabilidade do projecto, na avaliação de um investimento desta natureza não podem ponderar exclusivamente os seus custos e as receitas directas. Para além da importância essencial da rede ferroviária de bitola europeia para a modernização da infra-estrutura de transportes do país e para a integração na rede europeia de grandes eixos de transportes - que por isso goza de substanciais apoios financeiros da UE, que seriam perdidos se o projecto fosse cancelado -, há pelo menos mais dois factores decisivos a considerar.

Por um lado, na equação financeira do TGV importa valorizar a sua enorme vantagem ambiental, traduzida na poupança de milhões de toneladas de CO2, em comparação com o transporte aéreo e rodoviário, cujos custos ambientais serão cada vez mais onerosos. Por outro lado, para além da sua expressão económica, os transportes colectivos têm desde sempre uma dimensão de serviço público, pelas suas vantagens sociais e ambientais. É por isso que eles beneficiam em geral de um financiamento público, a título de "indemnização de serviço público". Essa vertente de serviço público não pode ser ignorada especialmente no caso do transporte ferroviário, incluindo a nova rede de TGV. De outro modo, se se contabilizassem somente as despesas e as receitas efectivas, teriam de ser encerradas várias das actuais ligações ferroviárias no activo, bem como, por exemplo, todos os transportes colectivos urbanos de Lisboa e do Porto, que vivem em grande parte à conta do Orçamento do Estado...

Acresce que a fundamentalista opção por "riscar" todo o projecto ferroviário de bitola europeia, incluindo as duas linhas acordadas com Espanha e já em desenvolvimento no país vizinho (Vigo-Porto e Madrid-Lisboa), não pode deixar de suscitar delicados problemas de responsabilidade e mesmo de credibilidade internacional do Estado português.

De facto, causa o maior espanto que a líder do PSD, após ter acusado, com toda a ligeireza, a agência Lusa de, "a mando do Governo", ter ido ouvir a Madrid os "socialistas espanhóis" (o que se revelou totalmente falso), veio depois argumentar que a questão do TGV "apenas diz respeito à política interna portuguesa", não tendo os espanhóis nada a ver com isso. Lê-se, e não se acredita!

Deixando de lado a insólita e condenável investida contra a Lusa (que todavia exprime bem o desrespeito pela independência dos media...), é evidente que a partir do momento em que o projecto TGV integra linhas comuns a Portugal e a Espanha, que foram acordadas oficialmente entre os dois países, incluindo quanto ao calendário, a questão deixou de ser manifestamente uma simples "questão de política interna portuguesa". É indesmentível que as referidas linhas, cuja parte espanhola está em curso, estando a linha Lisboa-Madrid já em obras, pressupõem a construção dos troços portugueses, cumprindo a nossa parte no acordo entre os dois países. Se a situação fosse por acaso a inversa, recusando-se os espanhóis unilateralmente a avançar com essas linhas, será que os partidos portugueses se deveriam abster de protestar, por se tratar de "assunto interno de Espanha"? Haja decência!

Decididamente, com este irresponsável comportamento político, mais próprio de qualquer partido extremista de contrapoder, o PSD persiste em se confirmar como um partido não fiável, e também destituído de sentido de Estado. Só faltava agora pôr em causa os compromissos internacionais do país, que aliás ele mesmo firmou!

(Público, 3ª feira, 20.01.2009)

15 de janeiro de 2009

Somália: quem são afinal os piratas? 

por Ana Gomes

A Somália é um país sem Estado, sem ordem e sem rumo desde 1991. Está à mercê do caos sangrento das lutas pelo poder entre os clãs que compõem a sociedade somali: luta-se pelo controlo de uma cidade portuária, luta-se pelo controlo de uma posição estrategicamente útil, luta-se por armas, comida, para sobreviver, por tudo e por nada.
Há 17 anos. Neste caos, claro, prosperaram movimentos radicais islâmicos com as promessas costumeiras de paz, ordem e autoridade. E a Al Qaeda - sempre rápida a explorar os vácuos de poder por esse mundo fora - instalou-se.
Foi justamente a pretexto de combater o "perigo islamista" que a Administração Bush instigou e apoiou (diplomática, financeira e militarmente) a invasão armada etíope da Somália, em Julho de 2006. A coberto do pretexto da defesa contra os movimentos secessionistas etíopes que se refugiavam na Somália, a invasão etíope tinha como objectivo declarado apoiar um fictício Governo de Transição somali, perpetuamente paralisado por disputas internas. Nessa altura, o Primeiro Ministro da Etiópia Meles Zenawi, um ditador tão brutal como espertalhão, declarou que "não estamos a tentar impor um governo á Somália, nem temos intenções de nos metermos nas questões internas deste país."
Já passaram dois anos: a presença militar etíope continua e provocou um recrudescimento dos combates e um fortalecimento dos grupos fundamentalistas islâmicos. A situação humanitária nunca foi pior, a capital Mogadíscio está em ruínas e, neste momento, um terço da população (mais de 3 milhões de pessoas) depende da ajuda alimentar internacional. E é neste contexto que a pirataria ao largo da Somália dispara.
Os somalis não nascem piratas - tornam-se piratas. Aconteceu o inevitável: a ausência de ordem - em mar e em terra; a proliferação de armas (apesar de um embargo de armas da ONU que ninguém leva a sério); o desespero das comunidades costeiras somalis perante a rapacidade das frotas de pesca estrangeiras nas suas águas (incluindo europeias! a quem convém a ausência de autoridade para saquear os recursos piscatórios locais); a corrupção generalizada; a miséria: tudo contribui para que a pirataria no Golfo de Áden prospere, com ataques cada vez mais audaciosos.
E o que faz a comunidade internacional? A União Europeia, a NATO, a Rússia e em breve até a China desmultiplicam-se em operações navais de combate à pirataria, respaldadas por resoluções robustas do Conselho de Segurança da ONU. Por outras palavras - depois de se assistir passivamente à implosão da Somália, combatem-se agora apenas os sintomas do cancro e com paliativos insuficientes. Depois dos EUA terem encorajado e apoiado a Etiópia na sua invasão sangrenta, ineficaz e contraproducente, com a Europa a assobiar para o lado, agora damo-nos conta que o preço da negligência criminosa a que foi votada a Somália é a pirataria a uma escala nunca antes vista.
É preciso esclarecer uma coisa. Não me oponho a operações navais de combate à pirataria, especialmente quando solidamente ancoradas em resoluções da ONU. Por isso apoio as Resoluções 1816, 1846 e 1851 de 2008, que dão luz verde a estas operações - incluindo a missão naval europeia "Atalanta", lançada dia 8 de Dezembro.
Mas estas não são as primeiras resoluções adoptadas pelo Conselho de Segurança sobre a Somália. Dezenas de outras, como a 1814 (2008), apelam há anos a que os Estados Membros da ONU apoiem, com dinheiro e material, a missão militar da União Africana na Somália (AMISOM) - que nunca conseguiu lá posicionar sequer metade dos 8.000 soldados previstos. Lamentavelmente, estas outras resoluções não foram implementadas com o mesmo zelo pelos países que agora não poupam esforços para combater a pirataria.
Não há mistério: erradicar a pirataria nas costas da Somália implica assegurar a governação e estabilização do país. Para isso é preciso começar por equipar e financiar a AMISOM como deve ser, ou até viabilizar o envio de uma missão militar da ONU e fazer sair as tropas etíopes invasoras. E é preciso, sobretudo, desenvolver uma verdadeira estratégia de reconstrução e reconciliação nacional. Para isso é preciso visão estratégica e vontade política para ajudar os somalis - as verdadeiras vítimas desta triste história, que morrem ao milhares de fome, guerra e de décadas de negligência por parte da comunidade internacional. A mesma comunidade internacional que acorre agora a proteger petroleiros, navios mercantes e de veraneio e frotas pesqueiras, mas que acha que é um desperdício investir alguns milhões de euros na estabilização militar da Somália e num processo de paz que assegure a restauração da lei e da ordem naquele país.

(Jornal de Leiria, 8 de Janeiro de 2009)

Intervenção sobre o Corno de África 

por Ana Gomes
no Plenario do PE, Estrasburgo,14.1.2009

O Conselho e Comissão Europeia devem tirar consequências do facto de, como resulta da percepção do PE, os governos dos países do Corno de África não estarem a agir em conformidade com as suas obrigações nos termos do Artigo 9 do Acordo de Cotonou: direitos humanos, democracia e boa governação são palavras vãs.
Só não vê quem não quer ver.
Na Etiópia, por exemplo, que é sede da União Africana, a opressão do povo faz-se a coberto de uma retórica bem-sonante aos ouvidos dos doadores, mas não menos crua e despudorada. Dois episódios ilustrativos recentes:
- A 29 de Dezembro, a Senhora Birtukan Mideksa, líder de um partido com assento parlamentar, foi de novo detida, e sentenciada a prisão perpétua, por ter recusado afirmar publicamente ter pedido o perdão, de que o Governo de Meles Zenawi se serviu para a libertar em 2007, bem como muitos outros dirigentes políticos da oposição detidos desde as eleições de 2005.
- Segundo, a aprovação pelo parlamento etíope da chamada Lei das ONGs, que, na prática, criminaliza todo o trabalho de ONGs independentes.
Não há nenhuma "transição para a democracia" na Etiópia, Senhora Comissária - por favor, diga-o ao seu colega Louis Michel!
Na Eritreia é ainda mais sem vergonha a sanha do governo contra quem tente exercer os mais básicos direitos humanos.
Quanto à Somália - actualmente a mais grave situação em todo o Corno de Africa - é criminoso o desinteresse internacional - UE incluída - pela sorte do povo de um país onde, há décadas, não há lei nem ordem, florescem piratas e grupos terroristas e as tropas etíopes ocupantes puderam cometer todo o tipo de crimes impunemente. A missão naval da UE nada resolverá se UE, EUA, a ONU e a UA continuarem a ignorar as causas da pirataria - que estão radicadas e se combatem em terra e não no mar.
A região não terá estabilidade nem progresso sem que sejam também resolvidos os dramáticos conflitos que continuam a assolar o Sudão, e em especial o Sul e o Darfur, onde a retórica da comunidade internacional precisa de ser traduzida em acção decisiva para proteger as populações e para acabar com a impunidade dos criminosos. Neste sentido, a possível confirmação da acusação do Tribunal Penal Internacional ao Presidente Omar Bashir será também um teste à credibilidade e à eficácia tanto da UE, como da União Africana.

"Sem piedade em Gaza" 

Por Vital Moreira

Porque é que, mesmo quando pode invocar um motivo justificável para a guerra, Israel consegue perder a razão que possa ter, por causa da violência desproporcionada, da devastação sem limites, do desprezo pelos civis inocentes e da crueldade desumana levada ao extremo? Porque é que as operações militares contra os palestinianos se saldam sempre pela destruição de infra-estruturas básicas, incluindo edifícios escolares e sanitários, pela morte de tantas pessoas sem nenhuma responsabilidade nos combates, por impiedosos desastres humanitários?

É evidente que Israel pode reivindicar o direito de atacar e destruir os meios militares do Hamas na Faixa de Gaza responsáveis pelo lançamento de rockets contra território israelita, provocando estragos materiais e vítimas humanas, mesmo se em escala limitada. Todavia, muito antes de desencadear o ataque militar em larga escala contra o pequeno território palestiniano no final de Dezembro, já Israel tinha organizado um brutal bloqueio ao território desde começos de Novembro, pondo em causa as condições de vida da generalidade da população, incluindo no fornecimento de combustíveis (de que dependem desde logo a produção de electricidade, o abastecimento de água e o saneamento), bem como na ajuda humanitária para os numerosos campos de refugiados que dependem da assistência internacional, designadamente da Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinianos e o Programa Alimentar Mundial.

Num território onde, mesmo fora dos vários campos de refugiados, a maior parte da população está abaixo do limiar da pobreza e onde o desemprego atinge 50 por cento, o bloqueio dos abastecimentos, incluindo a ajuda humanitária, apresentava todos os sinais de uma vingança colectiva indiscriminada contra os habitantes do território por causa do Hamas, como se todos fossem "terroristas". Mas o terrorismo tem muitas formas, incluindo o terrorismo de Estado.

O maciço ataque aéreo e depois a invasão terrestre do território confirmaram essa estratégia da "guerra total". Tornou-se imediatamente manifesto que Israel não pretendia somente destruir a capacidade militar do Hamas, aliás comprovadamente reduzida, mas também erradicar a sua capacidade política, arrasando as suas instituições e liquidando fisicamente os seus militantes e dirigentes, sem olhar aos "danos colaterais" sobre toda a população. Só isso pode explicar a trágica dimensão da perda de vidas humanas, de instalações colectivas e de casas, incluindo actos de extrema crueldade e insensibilidade, como o bombardeamento e destruição de escolas das Nações Unidas, onde se tinham refugiado muitos civis comuns, de que resultou a morte de dezenas deles, incluindo muitas crianças.

É inegável que, se se limitasse à destruição selectiva dos recursos militares do Hamas, a acção israelita não causaria nenhuma comoção internacional, fora os habituais círculos extremistas árabes. Mas a razia impiedosa e a sanha destruidora que Telavive está a impor em Gaza, causando uma situação humanitária insustentável, não pode ser justificada à luz de nenhuma racionalidade política, salvo a da punição colectiva dos habitantes de Gaza pelas malfeitorias do Hamas e a aniquilação das próprias condições de vida do território.

A amplitude e a dimensão das operações militares, bem como os sinais da sua longa e meticulosa preparação, revelam que os seus objectivos vão muito para além da neutralização militar do Hamas, visando, mais uma vez, administrar uma lição exemplar aos palestinianos em geral e fazer uma demonstração de força bélica de Israel para o mundo ver, em especial a Síria e o Irão. Depois do insucesso da guerra do Líbano contra o Hezbollah, em 2006, muitos observadores antecipavam que Telavive poderia aproveitar o primeiro pretexto para resgatar a sua maculada imagem de força militar invencível. O Hamas encarregou-se de fornecer a necessária oportunidade, tornando os palestinianos em bode expiatório da humilhação libanesa.

Todavia, por mais justificável que fosse a ofensiva israelita, nada pode legitimar o sofrimento indiscriminado imposto a uma população inteira, desde há muito vítima de todas as injustiças deste mundo, do qual só podem nascer mais apoios para o integrismo islâmico e mais ódio e raiva colectiva contra o invasor. Israel bem pode eliminar as capacidades militares do movimento radical palestiniano que governa a Faixa de Gaza. Porém, fazendo-o à custa do impiedoso castigo colectivo dos palestinianos, só gera mais apoios às posições extremistas e cria mais dificuldades às forças moderadas, dificultando cada vez mais as condições para uma solução pacífica do conflito israelo-palestiniano. Os falcões de Telavive multiplicam os extremistas do campo palestiniano, e vice-versa.

Em 2005, Israel abandonou unilateralmente Gaza (cujo cerco sempre manteve porém) só para intensificar a ocupação e a exploração colonial da Cisjordânia, multiplicar os colonatos judaicos, construir um muro de separação em território ocupado, consumar a anexação de Jerusalém, tudo contra as resoluções das Nações Unidas e o direito internacional, e tudo com o objectivo de inviabilizar cada vez mais qualquer solução justa na base de um Estado palestiniano dentro das fronteiras dos territórios ocupados. Esta política foi responsável pela vitória eleitoral do Hamas sobre a Fatah e pela posterior deslegitimação da Autoridade Palestiniana.

O regresso destruidor de Israel a Gaza só serve para agravar a humilhação e o desespero dos palestinianos e para arruinar as perspectivas de paz e a convivência entre os dois povos. Enquanto esta linha política prosseguir, com o apoio dos Estados Unidos e a cumplicidade da Europa, nenhuma esperança é permitida. Enquanto Israel persistir na ocupação e anexação da Palestina, a lógica da violência, do terrorismo e da guerra prevalecerá.

(Público, terça-feira, 13.01.2009)

10 de janeiro de 2009

A revolução exangue 

Por Vital Moreira

Infelizmente, não há muito para celebrar no 50.º aniversário da revolução cubana, que agora passou. Pelo contrário.

É certo que a revolução cubana, ocorrida em plena era da "guerra fria" e de activa aliança dos Estados Unidos com as opressivas oligarquias e ditaduras latino-americanas, entusiasmou durante décadas as esperanças revolucionárias da esquerda na transformação social e na luta de emancipação nacional contra o imperialismo e o neocolonialismo, fazendo parte incontornável do imaginário da esquerda ocidental do século passado. No entanto, cinquenta anos depois, na sua deprimente situação actual, Cuba constitui hoje o testemunho vivo de uma revolução exangue e do fracasso global dos regimes comunistas.

Depois de assumido o projecto socialista, pouco depois da vitória da luta armada contra a ditadura corrupta de Fulgêncio Batista e contra o controlo norte-americano do país, Cuba transformou-se rapidamente no laboratório de uma nova experiência comunista fora do mundo soviético e num factor de esperança num "socialismo latino-americano", mais genuíno, mais criativo, menos burocrático e menos sacrificador da liberdade individual do que os regimes comunistas então existentes.

Embora à data da revolução Cuba estivesse longe de ser um país pobre no contexto latino-americano, as fulgurantes realizações no campo da educação, da saúde, da cultura, etc. fizeram da revolução cubana um caso de sucesso internacional em matéria de desenvolvimento humano e de progresso social. Acresce que a proximidade dos Estados Unidos e a militante política de confrontação e de cerco norte-americano ao regime cubano, incluindo o apoio à aventura da Baía dos Porcos e o embargo económico até agora mantido, deram a Cuba uma aura de "resistência ao imperialismo" que se transformou num poderoso factor de simpatia internacional, designadamente na esquerda europeia. Finalmente, o apoio de Cuba às lutas de libertação nacional, que culminaram na sua ajuda militar em "guerras internacionalistas" (como foi o caso de Angola), bem como a participação em projectos de desenvolvimento social, através do envio de médicos e de outros técnicos, firmaram os seus créditos de internacionalismo solidário, sem as exigências que tanto a União Soviética como a China impunham em termos de alinhamento político e ideológico.

A verdade, porém, é que, apesar das esperanças iniciais de um socialismo original, o "socialismo cubano" acabou por seguir o molde do marxismo-leninismo soviético (acompanhando a progressiva dependência da ajuda económica e militar da URSS), sendo vítima de todos os seus defeitos. No final, o sistema de colectivização geral e de planificação estatal da economia revelou-se o mesmo fracasso que em todo o lado, para não falar da restrição da autonomia e da liberdade individual e da castração das liberdades civis e políticas, em geral.

Economicamente, Cuba é hoje um dos países mais pobres da América Latina, sobrevivendo das remessas dos expatriados e do turismo, onde imperam o racionamento dos bens essenciais, o mercado negro e a economia paralela (com dupla moeda), com campos abandonados e cidades degradadas, de que a própria Havana, outrora uma das cidades mais prósperas da América Latina, é exemplo gritante. Politicamente, Cuba continua sob o estrito monopólio político do partido comunista, sem liberdade de expressão e de organização política, com eleições puramente aclamatórias e com periódicas operações de repressão dos opositores políticos.

Nos principais índices de bem-estar material de uma sociedade moderna, Cuba ocupa sistematicamente os lugares inferiores em termos comparados. Os níveis de rendimento são em geral muito baixos. Quem não disponha de dólares ou outras divisas não tem acesso a bens que só as lojas estatais reservadas proporcionam (a preços elevados). Mercê do fracasso da agricultura colectiva e da ausência de mecanismos de mercado, bem como da insuficiência de divisas para importações, existe uma crónica escassez de abastecimento, mesmo de bens alimentares. Os próprios serviços de saúde e de educação, outrora orgulho do regime, passam agora por carências, por causa da insuficiência de financiamento, que as dificuldades económicas geraram.

Quase vinte anos depois da queda do comunismo soviético na Europa e da deriva capitalista da China, Cuba só agora, depois da saída de Fidel Castro, parece encarar o dilema entre a manutenção do statu quo, insustentável a prazo, ou a adopção de reformas económicas e sociais, que podem permitir sair das dificuldades, mas que correm o risco de desencadear uma liberalização económica e política sem retorno, que ponha em causa os próprios alicerces do regime. As pequenas mudanças anunciadas por Raul Castro podem indicar a escolha da segunda via, mas a timidez das mesmas e a demora na sua implementação podem significar que enquanto Fidel Castro for vivo nada de substancial se alterará. Entretanto, apesar do balão de oxigénio da ajuda da Venezuela de Chávez, a situação pode degradar-se para além do suportável.

Entre os mitos revolucionários que mantêm coeso o regime cubano, o principal é ainda e sempre o anti-imperialismo e o ódio aos Estados Unidos, que o irracional boicote económico de Washington continua a acirrar. É desejável que o novo presidente dos Estados Unidos corrija sem demora a política cubana da Casa Branca, trocando a estratégia do isolamento de Havana por uma política de respeito (incluindo a questão de Guantánamo) e de apoio à abertura do regime cubano. Como mostrou o processo de democratização de outros países comunistas, especialmente na União Soviética, os regimes comunistas, quando esgotados, dificilmente resistem a um processo de liberalização económica e política.

O importante é começar a vencer bloqueios e resistências.

(Público, terça-feira, 6 de Janeiro de 2009)

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