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15 de janeiro de 2009

"Sem piedade em Gaza" 

Por Vital Moreira

Porque é que, mesmo quando pode invocar um motivo justificável para a guerra, Israel consegue perder a razão que possa ter, por causa da violência desproporcionada, da devastação sem limites, do desprezo pelos civis inocentes e da crueldade desumana levada ao extremo? Porque é que as operações militares contra os palestinianos se saldam sempre pela destruição de infra-estruturas básicas, incluindo edifícios escolares e sanitários, pela morte de tantas pessoas sem nenhuma responsabilidade nos combates, por impiedosos desastres humanitários?

É evidente que Israel pode reivindicar o direito de atacar e destruir os meios militares do Hamas na Faixa de Gaza responsáveis pelo lançamento de rockets contra território israelita, provocando estragos materiais e vítimas humanas, mesmo se em escala limitada. Todavia, muito antes de desencadear o ataque militar em larga escala contra o pequeno território palestiniano no final de Dezembro, já Israel tinha organizado um brutal bloqueio ao território desde começos de Novembro, pondo em causa as condições de vida da generalidade da população, incluindo no fornecimento de combustíveis (de que dependem desde logo a produção de electricidade, o abastecimento de água e o saneamento), bem como na ajuda humanitária para os numerosos campos de refugiados que dependem da assistência internacional, designadamente da Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinianos e o Programa Alimentar Mundial.

Num território onde, mesmo fora dos vários campos de refugiados, a maior parte da população está abaixo do limiar da pobreza e onde o desemprego atinge 50 por cento, o bloqueio dos abastecimentos, incluindo a ajuda humanitária, apresentava todos os sinais de uma vingança colectiva indiscriminada contra os habitantes do território por causa do Hamas, como se todos fossem "terroristas". Mas o terrorismo tem muitas formas, incluindo o terrorismo de Estado.

O maciço ataque aéreo e depois a invasão terrestre do território confirmaram essa estratégia da "guerra total". Tornou-se imediatamente manifesto que Israel não pretendia somente destruir a capacidade militar do Hamas, aliás comprovadamente reduzida, mas também erradicar a sua capacidade política, arrasando as suas instituições e liquidando fisicamente os seus militantes e dirigentes, sem olhar aos "danos colaterais" sobre toda a população. Só isso pode explicar a trágica dimensão da perda de vidas humanas, de instalações colectivas e de casas, incluindo actos de extrema crueldade e insensibilidade, como o bombardeamento e destruição de escolas das Nações Unidas, onde se tinham refugiado muitos civis comuns, de que resultou a morte de dezenas deles, incluindo muitas crianças.

É inegável que, se se limitasse à destruição selectiva dos recursos militares do Hamas, a acção israelita não causaria nenhuma comoção internacional, fora os habituais círculos extremistas árabes. Mas a razia impiedosa e a sanha destruidora que Telavive está a impor em Gaza, causando uma situação humanitária insustentável, não pode ser justificada à luz de nenhuma racionalidade política, salvo a da punição colectiva dos habitantes de Gaza pelas malfeitorias do Hamas e a aniquilação das próprias condições de vida do território.

A amplitude e a dimensão das operações militares, bem como os sinais da sua longa e meticulosa preparação, revelam que os seus objectivos vão muito para além da neutralização militar do Hamas, visando, mais uma vez, administrar uma lição exemplar aos palestinianos em geral e fazer uma demonstração de força bélica de Israel para o mundo ver, em especial a Síria e o Irão. Depois do insucesso da guerra do Líbano contra o Hezbollah, em 2006, muitos observadores antecipavam que Telavive poderia aproveitar o primeiro pretexto para resgatar a sua maculada imagem de força militar invencível. O Hamas encarregou-se de fornecer a necessária oportunidade, tornando os palestinianos em bode expiatório da humilhação libanesa.

Todavia, por mais justificável que fosse a ofensiva israelita, nada pode legitimar o sofrimento indiscriminado imposto a uma população inteira, desde há muito vítima de todas as injustiças deste mundo, do qual só podem nascer mais apoios para o integrismo islâmico e mais ódio e raiva colectiva contra o invasor. Israel bem pode eliminar as capacidades militares do movimento radical palestiniano que governa a Faixa de Gaza. Porém, fazendo-o à custa do impiedoso castigo colectivo dos palestinianos, só gera mais apoios às posições extremistas e cria mais dificuldades às forças moderadas, dificultando cada vez mais as condições para uma solução pacífica do conflito israelo-palestiniano. Os falcões de Telavive multiplicam os extremistas do campo palestiniano, e vice-versa.

Em 2005, Israel abandonou unilateralmente Gaza (cujo cerco sempre manteve porém) só para intensificar a ocupação e a exploração colonial da Cisjordânia, multiplicar os colonatos judaicos, construir um muro de separação em território ocupado, consumar a anexação de Jerusalém, tudo contra as resoluções das Nações Unidas e o direito internacional, e tudo com o objectivo de inviabilizar cada vez mais qualquer solução justa na base de um Estado palestiniano dentro das fronteiras dos territórios ocupados. Esta política foi responsável pela vitória eleitoral do Hamas sobre a Fatah e pela posterior deslegitimação da Autoridade Palestiniana.

O regresso destruidor de Israel a Gaza só serve para agravar a humilhação e o desespero dos palestinianos e para arruinar as perspectivas de paz e a convivência entre os dois povos. Enquanto esta linha política prosseguir, com o apoio dos Estados Unidos e a cumplicidade da Europa, nenhuma esperança é permitida. Enquanto Israel persistir na ocupação e anexação da Palestina, a lógica da violência, do terrorismo e da guerra prevalecerá.

(Público, terça-feira, 13.01.2009)

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