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28 de julho de 2005

O sindicato de Lisboa 

Vital Moreira

Um espectro assola os lisboetas de todas as condições e partidos: a tragédia de deixarem de ter o aeroporto ao pé da porta, dentro da cidade, privilégio raro por esse mundo fora. Companhias de aviação e agentes turísticos, hoteleiros e taxistas, jet set nacional e funcionários da UE no vaivém de Bruxelas, colunistas de imprensa e médicos de partida para o próximo congresso turístico nas Caraíbas -, não existe virtualmente ninguém que não considere como crime de lesa Lisboa a peregrina ideia de construir um novo aeroporto internacional fora da cidade. A oposição unânime ao aeroporto só tem comparação na reacção dos numerosos regimes especiais da função pública beneficiários de privilégios em vias de extinção.
Contra essa fronda, em que dá pena ver alinhar espíritos normalmente lúcidos, é irrelevante a evidência de que o aeroporto da Portela é uma espécie de apeadeiro aeronáutico que desmerece mesmo no confronto com aeroportos regionais europeus. De nada vale a demonstração de que ele tem os dias contados, por causa das suas limitações físicas e ambientais (nomeadamente o ruído). Pouco importa a ideia de que o país não pode deixar de ter um aeroporto internacional capaz de responder ao prvisível aumento da procura de transporte aéreo e às modernas exigências aeroportuárias.
Ora, se há algo de errado no projecto do novo aeroporto, independentemente da sua localização, não é decisão de avançar finalmente com a sua execução, mas sim o facto de esta ser tardia, obrigando à realização de custosas obras de adaptação interina da Portela, que bem poderiam ter sido poupadas, se a nova estrutura tivesse avançado mais cedo, como deveria. Infelizmente em Portugal o mal habitual das obras públicas em infra-estruturas não é serem supérfluas, mas sim virem atrasadas no tempo.
Um dos grandes argumentos brandidos contra o novo aeroporto tem a ver com os seus elevados custos financeiros, sobretudo tendo em conta as dificuldades financeiras nacionais e os sacrifícios que se está a pedir aos cidadãos, especialmente aos funcionários públicos, em termos de impostos, remunerações, idade de reforma e valor das pensões, etc. Essas preocupações são em geral infundadas e em boa medida demagógicas. Primeiro, por maiores que sejam as limitações financeiras, continua a ser ao Estado que cabe assegurar as infra-estruturas básicas, que o mercado e a iniciativa privada não garantem; segundo, uma das razões para a contenção de gastos públicos correntes tem a ver justamente com a necessidade de libertação de meios para investimento, sem o qual não haverá desenvolvimento, nem emprego, nem alívio das dificuldades financeiras actuais; terceiro, neste caso os meios financeiros necessários podem ser proporcionados em grande parte pelo sector privado, dada a rentabilidade da infra-estrutura.
Infelizmente, Lisboa está mal habituada. Não lhe bastando as vantagens inerentes à sua condição de capital - como centro político, administrativo, financeiro, económico, mediático, artístico, etc. -, Lisboa dá-se mal com qualquer situação em que os interesses do país possam entrar em conflituar com os seus próprios interesses imediatos. Por definição, considera que os seus interesses se confundem com os interesses do país. E se, porventura, isso pareça não suceder, então o mal está no país. Curiosamente, os protestos contra o novo aeroporto com base nos alegados custos financeiros não têm equivalente quando se trata de investimentos estaduais que beneficiam directamente Lisboa, como sucede com os projectos de novas linhas de metro ou de novas travessias sobre o Tejo.
Para além dos benefícios resultantes da "capitalidade" em termos de oportunidades, emprego, rendimentos e qualidade de vida, Lisboa ainda beneficia do privilégio de ver o Estado encarregar-se de obras e serviços públicos que normalmente não lhe deveriam pertencer. O caso mais flagrante é o dos transportes colectivos urbanos. Enquanto noutras cidades esse serviço público é responsabilidade dos respectivos municípios, seja em administração directa ou indirecta (serviços municipalizados, empresas públicas municipais, concessão a entidades privadas), cabendo-lhes também suportar os encargos financeiros inerentes às "obrigações de serviço público", já no caso de Lisboa a organização dos transportes colectivos constitui responsabilidade do Estado. Isso quer dizer que o financiamento das obrigações de serviço público de transporte, designadamente as chamadas "indemnizações compensatórias" - não mencionando sequer o investimento nas respectivas infra-estruturas -, incumbe ao Oçamento do Estado, ou seja, a todos os contribuintes, mesmo àqueles que já pagam os transportes urbanos dos seus próprios municípios.
Nada melhor simboliza a subestimação dos interesses gerais face aos interesses de Lisboa do que o facto de até há pouco ser obrigatório passar por Lisboa para viajar do Norte ou do Centro do país para o Sul por auto-estrada. Outro exemplo recente tem a ver ainda com investimentos públicos. Como a região de Lisboa ultrapassou em muito o limite de riqueza que habilita a beneficiar dos fundos comunitários destinados ao desenvolvimento regional e à coesão territorial, é tudo menos surpreendente que, para atenuar essa perda, o Governo tenha decidido há pouco disponibilizar fundos consideráveis para ajudas de Estado às empresas dessa região. Não consta ter havido algum protesto contra esse "desperdício" de dinheiros públicos em época de dificuldades financeiras.
Outras vezes ocorre que, face aos maciços investimentos do Estado em Lisboa e na sua região, os governos se sentem levados a compensar outras regiões com algumas migalhas, para não parecer tão escandaloso o desequilíbrio. Assim sucedeu depois da Expo-98 em Lisboa, com o lançamento do programa Pólis, destinado a revitalizar várias outras cidades por esse país fora. Acontece porém que, na maior parte dos casos, a execução desse plano ficou muito aquém do programado, por falta de verbas. Quando há que cortar no orçamento, começa-se pela província!
Portugal é reconhecidamente um país de desenvolvimento assimétrico, com enormes disparidades territoriais, cuja superação carece de "acção positiva" do Estado no plano do investimento público regional. Tal circunstância poderia suscitar críticas contra um investimento público da dimensão do novo aeroporto, inevitavelmente situado próximo de Lisboa, sua principal beneficiária. Essa crítica seria demagógica, visto que neste caso o que está em causa são os interesses do país. Mas ao menos que ele não seja enjeitado em função do interesse paroquial de Lisboa em manter um aeroporto doméstico.

(Público, Terça-feira, 26 de Julho de 2005)

21 de julho de 2005

Pós-secularismo 

Por Vital Moreira

Contrariando o longo movimento de secularização das sociedades modernas e de tendencial diminuição do papel da religião na esfera pública, eis que a nossa época parece assistir a um ressurgimento religioso e a um retorno do impacte público da religião. O filósofo alemão Jürgen Habermas falou a propósito no "pós-secularismo" e não falta quem refira um período de "refluxo" da secularização A questão que se coloca é a de saber se o retorno da religião implica uma revisão da natureza laica do Estado democrático moderno.
Na verdade, desde o Renascimento, com a afirmação da centralidade do homem (humanismo), a tendência das sociedades modernas foi identificada pela crescente perda de peso da religião na vida pública e também pelo decréscimo da crença e da prática religiosas. O iluminismo e o liberalismo reforçaram essa evolução, ao sublinharem o papel da razão e da liberdade pessoal. O cientismo e o positivismo oitocentistas completaram o quadro em que se desenvolveu o progressivo afastamento da religião do espaço público. Os movimentos anticlericais consubstanciaram em militantismo anti-religioso o que se julgava ser uma "lei social", tirando partido da resistência da Igreja Católica a todas as ideias da modernidade (racionalismo, liberalismo, democracia, etc.). O marxismo decretou o esgotamento da religião com o fim da alienação humana. À margem da ideologia, a sociologia, primeiro, e a ciência política, depois, deram conta da efectiva secularização da sociedade e do Estado modernos, com a transferência da religião para o domínio pessoal e privado.
É certo que a secularização foi essencialmente um fenómeno europeu e dos países sob influência europeia, que não encontrou paralelo noutros continentes, pelo menos com a mesma intensidade. Mas a ideia de que a Europa servia de modelo das sociedades modernas e de antecipação da evolução das demais levou a universalizar a secularização europeia como uma regra geral da modernização, mesmo se a persistente religiosidade dos Estados Unidos sempre aconselhasse alguma prudência. Seja como for, são hoje indesmentíveis os sinais de uma mudança de tendência, cuja profundidade e cujo impacte ainda é cedo para avaliar, mas que já levou muitos observadores a falar de um "ressurgimento global da religião".
Entre esses sinais contam-se a maior visibilidade da Igreja Católica nas últimas décadas e as manifestações do catolicismo como fenómeno público de massas, sobretudo com o pontificado de João Paulo II; o crescimento dos movimentos evangélicos nos Estados Unidos e a sua expansão noutros continentes (América Latina, África); a ampliação da área de influência do islão na África e na Europa; a revitalização do judaísmo religioso em muitos países; o ressurgimento do induísmo e do budismo. Mesmo onde não se observa um crescimento considerável do número de praticantes, é pelo menos notório um acréscimo de visibilidade da prática religiosa, que a televisão tem contribuído para ampliar.
O impacte do fenómeno religioso é especialmente marcante nas sociedades onde a secularização não chegou a arrancar. A evidência revela um persistente, se não crescente, domínio do factor religioso no mundo islâmico. Um recente inquérito de opinião do Pew Research Center norte-americano revelou que a identificação religiosa prevalece sobre a identificação nacional em muitos países islâmicos. No Paquistão, cerca de 80 por cento das pessoas autodefinem-se antes como muçulmanas do que como paquistanesas, e só sete por cento se definem primeiro pela sua nacionalidade; em Marrocos, as percentagens são igualmente impressionantes, pois 70 por cento se definem pela religião e sete por cento pela sua nacionalidade; na Jordânia, os números são respectivamente 60 por cento e 23 por cento. Mesmo na oficialmente laica Turquia, a proporção da ligação religiosa ultrapassa em muito a conexão nacional (43 por cento contra 29 por cento). É provável que a falta de tradição nacional na maior parte dos países islâmicos tenha aqui uma parte na explicação do fenómeno, dado tratar-se de países de formação relativamente recente; mas seguramente esse factor está longe de ser decisivo, sendo a explicação devida evidentemente às características do próprio islamismo. Tudo indica que nada de semelhante se verifica noutras religiões, até porque os países onde elas são socialmente dominantes são também Estados de longa existência e forte identidade nacional. Mas não está excluído que a primazia da conexão religiosa sobre a ligação nacional exista como fenómeno significativo noutros quadrantes religiosos, designadamente no judaísmo.
Em si mesmo, o ressurgimento da religião não suscitaria nenhuma preocupação política, não fosse ele acompanhado de um fenómeno de radicalização e de fundamentalismo, o qual não escolhe infelizmente igrejas nem confissões, mas que tem os seus pontos altos no mundo islâmico, nos movimentos evangélicos dos Estados Unidos e no extremismo judaico. O fundamentalismo religioso é caracterizado pela sua influência "holística" sobre as atitudes dos crentes, na medida em que todos os aspectos da vida passam a ser sensíveis à opção religiosa, contaminando as posições em relação a quase todos os temas da vida, em especial as questões da despenalização do aborto, da sexualidade e da família, da homossexualidade, da eutanásia, da investigação bio-humana, etc. A religião captura as opções políticas.
Para além das situações de quase "guerra civil" religiosa, existem muitos outros conflitos com forte componente religiosa, quer à escala local, quer à escala global. Uns são "apenas" guerras ideológicas, como por exemplo a "guerra do aborto" nos Estados Unidos; outros, infelizmente, são guerras a sério, como nos Balcãs (sem esquecer o antigo conflito da Irlanda do Norte, entre católicos e protestantes). Outros ainda configuram situações potencialmente explosivas, como o conflito entre as minorias judaica e islâmica em França. A dimensão religiosa pode adicionar ingredientes devastadores em conflitos de outra natureza, como sucede na Palestina, no Iraque ou no Afeganistão, tanto mais que elas constituem episódios da eterna "guerra de civilizações" entre o mundo islâmico e o mundo cristão, tal como o radicalismo islâmico a vê desde a era das cruzadas.
Ao contrário do que pretendem muitos dos movimentos religiosos, a dessecularização da sociedade não obriga a rever a secularização do Estado, pelo contrário, é justamente porque o ressurgimento e a radicalização religiosa criam um potencial de dissenção e intolerância religiosa e de conflito civil, que o Estado mais deve salvaguardar a sua neutralidade e não-identificação com qualquer religião. A emancipação do Estado em relação à religião, que se iniciou com a Paz da Vestfália de 1648 e que se consumou com as leis de separação nos séculos XIX e XX constitui uma condição da liberdade e da tolerância religiosa, da paz civil e política e da autonomia do Estado nas sociedades religiosamentre plurais contemporâneas. Perante a nova assertividade militante, e por vezes agressiva, das religiões e a natureza "holística" de muitos movimentos fundamentalistas religiosos, só um Estado laico, religiosamente não comprometido, pode preservar uma relação de igual identificação e pertença com todos os seus cidadãos. Tal como foi das guerras religiosas que nasceu o Estado moderno, também foi da diferença religiosa que nasceu a laicidade do Estado, como condição da liberdade e igualdade religiosa de todos.
Desse ponto de vista, a recusa de identificação oficial da União Europeia com o cristianismo - que muitos pretenderam introduzir no Tratado Constitucional -, bem como a recente decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos que considerou inconstitucional a exibição dos Dez Mandamentos bíblicos nas salas de audiências dos tribunais, constituem sinais de que, por mais religiosa que seja a sociedade, o Estado deve preservar uma distância primordial em relação à esfera religiosa.

(Público, Terça-feira, 19 de Julho de 2005)

14 de julho de 2005

A singularidade da escola pública 

por Vital Moreira

Se existe um prémio apetecido na ofensiva contra o "Estado social" e na luta pela privatização dos serviços públicos, ele é seguramente o sistema público de ensino, que concita contra si uma federação de forças tão díspares como a Igreja Católica, as correntes neoliberais e os simples interesses económicos apostados no mercado do ensino. Não admira por isso que eles coloquem a educação à cabeça da agenda política da revisão das funções sociais do Estado.
Cumpre contestar à partida a ideia de que entre nós vigora um sistema de "monopólio de escola pública", como é dito, sem o mínimo rigor, pelos adversários da escola pública. O sistema público de ensino é constitucionalmente obrigatório, mas que não tem, nem poderia ter, nenhuma posição exclusiva. É livre a criação de escolas particulares, tal como a sua frequência. O seu número é, aliás, considerável, desde o ensino básico ao ensino superior. Nem o facto de o ensino básico e secundário público ser gratuito impede a coexistência de um sistema privado paralelo. Tal como sucede na área da saúde e da segurança social, a existência de sistemas públicos não preclude a existência de sectores privados concorrentes.
Sucede, aliás, que entre nós as escolas privadas são oficialmente equiparadas às escolas públicas para efeitos de paralelismo pedagógico e de avaliação e concessão de diplomas, o que está longe de ser uma solução universal em países política a culturalmente próximos de nós. Acresce que as despesas de educação são deduzíveis em sede fiscal, pelo que o Estado acaba por subsidiar indirectamente o ensino particular. Se a isto se adicionarem os "contratos de associação" - pelos quais o Estado subcontrata e paga o serviço público de ensino a escolas privadas, em caso de insuficiência da rede pública -, bem como os consideráveis apoios ao ensino superior particular (acção social escolar, apoios a infra-estruturas, equipamentos, etc.), é fácil constatar como são desprovidas de fundamento, e de senso, as acusações de "totalitarismo de Estado" (sic) com que alguns adversários da escola pública tentam demonizar a actual situação.
Sob o ponto de vista constitucional, a escola pública é entre nós um direito de todos e uma obrigação do Estado, enquanto a escola privada constitui uma liberdade dos interessados, que o Estado deve respeitar e que pode ou não apoiar, desde que prejudique as suas obrigações em relação à escola pública. Não tem nenhum fundamento a peregrina tese segundo a qual o Estado deve garantir um suposto direito ao ensino privado, suportando financeiramente as escolas privadas ou os candidatos a frequentá-las. Tal como sucede com outros direitos sociais gratuitos, como por exemplo a saúde, o Estado só tem a obrigação de assegurar e sustentar o sistema público para toda a gente, mas não a de assegurar e sustentar cuidados de saúde ou sistemas de segurança social ou escolas do sector privado.
Na maior parte dos casos, o ataque à escola pública vem inserido na luta pelo desmantelamento do Estado social, através da eliminação ou redução das responsabilidades públicas na garantia dos tradicionais direitos sociais e na sustentação dos respectivos serviços públicos. Mas o direito ao ensino e à escola pública têm origem e justificação bem anteriores à teoria do Estado social e dos serviços públicos prestacionais. O direito ao ensino público surgiu ainda no século XIX, como instrumento de construção da cidadania e das virtudes cívicas, de integração social e de coesão e unidade nacional. Por isso, constituía não somente um direito, mas também uma obrigação (ensino público obrigatório). Não por acaso, a instrução foi desde o início considerada como condição do próprio direito de voto, tendo o direito ao ensino (e a obrigação de ensino) feito parte, desde sempre, de projectos políticos assaz liberais.
O direito ao ensino foi portanto concebido como direito à escola pública e não como direito a qualquer ensino e a qualquer escola. Só a escola pública, socialmente aberta e plural, bem como neutral sob o ponto de vista ideológico e confessional, é que poderia constituir a plataforma adequada para as referidas funções cívicas de socialização política, de coesão social e de unidade nacional, num quadro de pluralismo político e religioso. A escola pública surge portanto ao serviço de um projecto de universalização da educação, como alternativa à insuficiência e ao fechamento social e religioso das escolas das igrejas, que durante muito tempo mantiveram um quase monopólio do ensino pré-universitário, destinado a uma pequeníssima minoria da população.
É certo que os defensores da privatização do ensino não desejam a total desresponsabilização do Estado na garantia do direito à educação. Na sua perspectiva, o Estado deve continuar a ter o insubstituível papel de financiador. Na verdade, pelo menos em palavras, muitos deles nem sequer preconizam o fim da escola pública. O que dizem querer é a garantia da "liberdade de escolha", através de um sistema que permitisse optar por escolas públicas ou privadas. A solução consistiria no célebre modelo do voucher ou "cheque-ensino" ou num sistema de reembolso de despesas, de efeito equivalente. E, na verdade, se esse sistema de afastamento do Estado como prestador directo tem bons resultados no caso de outras prestações públicas (desde a saúde à assistência social), por que é que ele não pode ser explorado no caso do ensino?
As razões para a resistência ao financiamento público de escolas privadas, mesmo nos ambientes mais liberais e avessos à intervenção pública (como os Estados Unidos, onde a sua implementação é muito escassa), são da mais variada ordem, desde as de natureza financeira até às de cariz político e ideológico, passando pelos argumentos de desigualdade social. Sob o ponto de vista financeiro, a solução seria incomportavelmente onerosa, pelo menos numa primeira fase, visto que o Estado passaria a ter uma despesa adicional (o pagamento dos alunos das escolas privadas) sem poder reduzir concomitantemente as despesas com as escolas públicas (edifícios, equipamentos e sobretudo pessoal).
Sob o ponto de vista social, sendo inquestionável que as escolas privadas de qualidade são muito caras e que o reembolso público não poderia cobrir todas as despesas, o resultado acabaria por redundar num subsídio público das famílias mais abastadas que podem suportar o diferencial de custo e que na maior parte dos casos já frequentam, por razões sociais ou ideológicas, as escolas privadas de nomeada.
Mas as principais razões contra a privatização do ensino público têm a ver com a referida singularidade da escola pública no contexto das prestações públicas. Diferentemente do que sucede noutros serviços públicos, em que as prestações são "fungíveis", sendo indiferente a natureza pública ou privada do estabelecimento que as executa (por exemplo, uma intervenção cirúrgica), no ensino a questão essencial está justamente na mais-valia inerente à escola pública em termos de liberdade individual de aprender e ensinar, de pluralismo, de neutralidade ideológica e confessional, de coabitação e integração social. O "pluralismo externo" de escolas confessionalmente orientadas, com a sua lógica de identificação (e de exclusão) social, confessional ou étnica não é o mesmo que o "pluralismo interno" das escolas públicas, com a sua lógica de inclusão e abrangência social, étnica e religiosa.
Essa função não diminuiu nas sociedades contemporâneas, pelo contrário, dada a crescente pluralidade étnica, religiosa e cultural trazida pela mobilidade social e pela imigração, tornando o ensino público um imprescindível factor de cidadania e de inclusão social. É isso que o torna incontornavelmente resistente à lógica da privatização.

(Público, 3ª feira, 12 de Julho de 2005)

8 de julho de 2005

Liberdade e responsabilidade 

por Vital Moreira

No seu editorial de quinta-feira passada, intitulado "Regulação e liberdade", José Manuel Fernandes critica sumariamente a anunciada intenção do Governo de estabelecer mecanismos sancionatórios para as infracções deontológicas dos jornalistas, hipótese tanto mais censurável quanto tal responsabilidade poderia caber à actual Comissão da Carteira Profissional, "um organismo misto, espúrio e do qual só existem razões de queixa".
Há dois aspectos diferentes a considerar. O primeiro, e o mais importante, consiste em saber se as faltas deontológicas dos jornalistas devem ou não ser efectivamente sancionadas. O segundo aspecto, que supõe uma resposta positiva à questão anterior, tem que ver com o órgão competente para apreciar e sancionar as infracções.
Vejamos a actual situação. Há no estatuto legal dos jornalistas um preceito específico (art. 14.º) sobre os respectivos deveres profissionais, desde o dever de rigor e isenção até ao dever de não recolher ilicitamente imagens e sons, passando, entre outros, pelos deveres de abster-se de formular acusações sem provas, de não identificar as vítimas de crimes sexuais, de não falsificar ou encenar situações com intuitos de abusar da boa-fé do público. Ora, apesar de a lei os considerar como "deveres fundamentais", não existe nenhum mecanismo previsto para apreciar e punir as infracções dos mesmos. Trata-se, portanto, de uma norma branca, sem sanção.
A questão que se coloca é a de saber se essa situação deve permanecer assim, face à existência, que ninguém pode negar, de graves violações dos referidos deveres. Concretamente: se um jornalista publicar como verídica uma história que o mesmo inventou, se copiar um texto alheio e o publicar como seu, se identificar ou publicar fotografia de uma criança vítima de violência sexual, se revelar uma fonte à qual tinha garantido sigilo, se publicar uma peça a troco de vantagens pessoais, se, por má-fé, acusar alguém de um facto ilícito - e muitas outras hipóteses bem reais -, será razoável que tais infracções fiquem impunes e que os seus autores continuem a poder reincidir nelas sem qualquer sanção? Será que, em nome da liberdade de imprensa, o "jornalismo de sarjeta", como uma vez o qualificou um conhecido jornalista, deve continuar a tripudiar sobre os deveres fundamentais da profissão, à custa de direitos de terceiros ou de bens constitucionalmente protegidos?
É certo que existe um código deontológico dos jornalistas, bem como um conselho deontológico no respectivo sindicato. No entanto, como associação privada e voluntária que é, o sindicato não tem jurisdição sobre todos os jornalistas; além disso, os meios de censura deontológica são reconhecidamente ineficazes; e finalmente, é fácil para qualquer infractor furtar-se a qualquer censura, bastando deixar o sindicato. Com essa situação bem podem os prevaricadores.
Também é certo que existe a responsabilidade penal e civil. Contudo, por um lado, nem todas as infracções profissionais envolvem tais tipos de responsabilidade (por exemplo, uma reportagem inventada); e por outro lado, uma coisa é a responsabilidade penal ou civil e outra coisa é a responsabilidade profissional, destinada a defender a deontologia, o bom-nome e o prestígio da profissão em si mesma. Se um jornalista identifica a vítima de um crime de pedofilia não incorre somente em responsabilidade civil, pelos danos causadas ao lesado, mas também em responsabilidade deontológica pelos danos causados à profissão.
Os primeiros interessados na existência de mecanismos efectivos de responsabilidade deontológico-profissional devem ser os próprios jornalistas, pelo menos se não quiserem ser co-responsáveis pela (e vítimas da) degradação da sua imagem profissional colectiva. Uma profissão que não vela pelo cumprimento dos deveres profissionais não tem autoridade nem legitimidade para reivindicar todos os direitos e mais algum. Não deixa de ser estranho que quando vêm a lume condutas mais escandalosamente censuráveis (como por exemplo a daquele jornalista que gravou e guardou ilicitamente horas de conversas telefónicas com várias pessoas a propósito do processo Casa Pia) haja um coro de protestos contra a impunidade, e depois haja uma sistemática rejeição das propostas que visam pôr fim à irresponsabilidade pela conduta profissional ilícita.
A liberdade de profissão, incluindo a de jornalista, não é feita somente de direitos mas também de deveres. Tratando-se de uma profissão legalmente regulada quanto a vários aspectos, desde o acesso à profissão até aos direitos dos jornalistas, passando pelas incompatibilidades profissionais - e ninguém seguramente defende a sua desregulação, pelo menos por bons motivos -, não existe nenhuma razão válida para que os deveres profissionais fiquem sem sanção adequada, diferentemente do que sucede com as demais profissões reguladas, todas elas dotadas de meios efectivos de punição disciplinar das infracções deontológicas. Liberdade não pode nem deve rimar com impunidade.
Questão é definir os mecanismos para efectivar tal responsabilidade, nomeadamente a competência para apreciar as infracções e aplicar as sanções. Segundo terá sido anunciado pelo ministro competente, estar-se-á a pensar em recorrer à Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas (CCPJ), que é um órgão oficial, composto paritariamente por membros eleitos pelos jornalistas e pelos órgãos de comunicação social, sendo presidida por um juiz. Cabendo-lhe regular o acesso à profissão e as incompatibilidades profissionais, através da atribuição e da cassação da carteira profissional, a CCPJ constitui uma solução de "auto-regulação interprofissional" legalmente estabelecida, sem prejuízo da impugnação judicial das suas decisões, nos termos gerais.
Como se sabe, a solução mais corrente no que respeita à auto-regulação profissional legalmente estabelecida consiste nas ordens profissionais, que têm proliferado no nosso país, apesar de terem a sua origem no sistema corporativista do Estado Novo. O que caracteriza as ordens profissionais é a mistura da auto-regulação profissional, incluindo a autodisciplina profissional, com a defesa dos interesses profissionais, o que as torna verdadeiros "grupos de interesse oficiais". Não admira que a maioria parte das profissões deseje ter uma ordem profissional, não somente pelas funções de auto-regulação (menos porventura pelas funções de autodisciplina), mas também, e sobretudo pelas funções de grupo de interesse corporativo legalmente protegido.
Por minha parte, apesar de desde há muitos anos defender a responsabilização dos jornalistas pelas infracções profissionais, sempre me manifestei contra a criação de uma ordem profissional - aliás rejeitada numa referendo à classe realizado há mais de uma década -, desde logo porque a considero desnecessária para desempenhar as únicas funções que a poderiam justificar, ou seja, as funções de regulação do acesso e do exercício da profissão. De facto, existindo já um mecanismo específico de regulação da profissão, esse quadro bem poderia ser aproveitado para lidar também com o ilícito disciplinar dos jornalistas. Aliás, se se quiser optar por uma solução de mais genuína autodisciplina, a competência poderia caber não à CCPJ em formação plena, mas sim a uma secção disciplinar específica composta exclusivamente pelos representantes dos jornalistas e pelo juiz presidente.
Em resumo, embora não sendo ainda publicamente conhecidos os contornos da solução governamental, a direcção geral anunciada só pode merecer a minha concordância. É tempo de juntar responsabilidade à liberdade profissional.

(Público, Terça-feira, 5 de Julho de 2005)

5 de julho de 2005

O PLAYBOY QUE CHORAVA NAS CANÇÕES DE AMOR 

Luís Filipe Borges

Sara

Foi na entrega do primeiro teste de Ciência Política com o Professor Marcelo Rebelo de Sousa. O anfiteatro 1 da Faculdade de Direito de Lisboa cheio com cerca de 300 caloiros desejosos de agradar e com o nervoso miudinho de quem vai ouvir a sua primeira nota enquanto universitários. Marcelo entregou os testes um a um, dizendo em voz alta o nome do aluno e a nota atribuída. Começou pelas mais altas e pelo anfiteatro iam ecoando os pacóvios gritos de espanto e um ou outro falso aplauso espontâneo.
Creio que a frequência tinha 3 perguntas e uma delas era qualquer coisa como, ?Quais as diferenças entre os sistemas políticos português, alemão e inglês??. O Professor Marcelo chegou à nota mais baixa e, pela primeira vez, não pode conter uma citação directa do teste. A resposta do aluno fora ?Só Deus sabe?. A sala veio abaixo entre gargalhadas de puro gozo ou puro escárnio. Aquele riso próprio de uma certa maldade infantil que os seres humanos nunca perdem pela vida fora. Como quando um estranho se estatela no passeio à nossa frente e todos os transeuntes se riem porque continuam de pé. Sentem-se superiores.
A Sara desceu corajosamente as escadas do anfiteatro até à mesa do catedrático e recebeu o seu teste. Estava-se nas tintas para o seu público sacrifício e olhava os carrascos com, dir-se-ia, um terno desdém. Foi quando me interessei a sério pela minha colega.
Já conhecia a Sara há dois meses. Partilhávamos uma arrecadação à qual, por conveniência, o Conselho Directivo chamava ?sala?, e onde tinha sido literalmente enfiada a nossa sub-turma. Era difícil não reparar nela porque a Sara, com vontade, assumira naturalmente o papel de ?palhaço da turma?. Sim, era a colega que fazia rir os outros. Aquela espécie de parceiro que não conseguimos imaginar a viver um dia mau. Conseguem imaginar o Jim Carrey a chorar baba e ranho? Pois. Ela representava isso para o resto de nós.
A Sara foi a mais feia de todas as mulheres bonitas que conheci. Porque não a mais bonita de todas as mulheres feias? Qual a diferença? A diferença está na forma como se tratava. Ou como não o fazia. Era evidentemente bonita. Loura, de olhos verdes, um tom escuro que se mascarava de cinzento à noite. Sorriso rasgado, baixa mas de formas voluptuosas. Contudo, ao contrário de qualquer outra mulher com as mesmas características, a Sara não só não se fazia valer dos seus atributos como parecia fazer gala em escondê-los. Citando uma colega qualquer, ela ?vestia-se à mãe?. Nunca ninguém a viu de saias ou maquilhada. Usava calças de ganga, invariavelmente, camisas apertadas até ao penúltimo botão e casacos compridos. Mas o mais interessante era, sem dúvida, o seu acessório preferido, a sua imagem de marca: um guarda-chuva. Trazia o maldito guarda-chuva consigo todos os dias, em qualquer estação do ano, mesmo que o Inverno se tivesse enganado e trouxesse, por um qualquer descuido, calor e sol.
No dia em que recebeu o dito teste das mãos do Professor, falámos a sério pela primeira vez. Eu trazia desde o primeiro dia de aulas uma dúvida pertinente ? acreditava que a cara dela era-me familiar. Mas não tinha encontrado o timing certo para fazer essa pergunta sem que parecesse uma deixa banal da canção do bandido. Finalmente, mais à vontade, descoberta a nossa antipatia comum pelo ensino do Direito naquela faculdade antiquada, confirmei a minha impressão: conhecia o rosto da Sara de um concurso de TV. O Pátio da Fama, apresentado por Diogo Infante, onde candidatos a actores interpretavam excertos de filmes conhecidos numa competição para decidir quem ganharia uma bolsa de estudo em Nova Iorque. A Sara chegou à final como Clarice Starling (a personagem que Jodie Foster imortalizou em ?Silêncio dos Inocentes?).
Falámos muito de coisas inúteis ? ela era especialista em coisas inúteis, e isso também nos aproximou ? desde o facto dos alemães não usarem guardanapos até aos nomes de directores de fotografia de filmes conhecidos, enfim, rimos de trivialidades e creio que nenhum de nós se apercebeu de que tínhamos dado as mãos durante essa conversa e que um hábito acabara de nascer.
Digo-o assim, sem aviso prévio, porque não o sei explicar. Passou a ser a nossa forma habitual de estar. De mãos dadas. Naturalmente, a ideia que passava para as outras pessoas era a de que estávamos ?juntos? mas nós só estávamos assim, e juntos, na faculdade. À noite eu não pensava na Sara e fazia o que seria normal esperar de um açoriano que acabou de chegar a Lisboa e saiu de casa dos pais pela primeira vez. Vivia a minha liberdade, saía praticamente todos os dias e entrava e saia, repetidamente, de relacionamentos fugazes e sem significado. Nas manhãs seguintes, ao chegar às aulas, encontrava-a, e a Sara era a cura para a ressaca, era água, era a mão que me conduzia de volta à realidade.
Certa vez, uma amiga comum dada a misticismos, leu-nos as mãos que não conseguíamos separar. Lançou cartas, fez mapas astrais, leu búzios e o diabo a quatro, para concluir que éramos almas gémeas. Para ela, isso significava dois amantes de vidas passadas que se reencontravam de novo. O ?reencontro? era uma improvável partida pregada ao destino. Não era suposto aquilo estar a acontecer. Cruzarmo-nos novamente. Calculo que se estejam a rir com este parágrafo. Eu também estou.
O meu ritual com a Sara continuava, as gargalhadas também (ela também se divertiu muito com a história anterior porque era tão céptica quanto eu) mas ficava séria sempre que lhe perguntava pelo guarda-chuva. Por isso deixei de perguntar e habituei-me à ideia de que aquele acessório era outro pormenor inexplicável. A juntar às mãos juntas e ao facto de nunca me ter passado pela cabeça o impulso de beijar aquela mulher, por muito atraente que a achasse ou por muito que nos divertíssemos juntos.
Na primeira e única noite em que, finalmente, saímos os dois, pensava que já sabia tudo sobre ela. Era filha de médicos do Porto, que lha davam 200 contos de mesada, recusava os castings todos que lhe propunham, tinha sido a aluna com a média mais alta dos que entraram para direito, 95%, estava sempre bem-disposta, dava-se mal com o pai que encontrava todos os fins-de-semana porque todos os fins-de-semana ia a casa, sentia o mesmo que eu pela FDL, era expert em coisas inúteis e não parecia ter pressa em encontrar namorado.
Nessa noite saímos juntos por acaso. Tínhamos passado o dia com outro casal de amigos. A Sara trouxera duas barrigas falsas, para simular uma gravidez avançada, do consultório do pai. E passámos a tarde, os dois casais, a enganar as funcionárias das lojas da Baixa dedicadas às mães e aos recém-nascidos. Os passageiros do Metro cediam de bom grado os seus lugares às duas jovens ?grávidas?, os comerciantes eram atenciosos, as funcionárias dessas lojas sorriam com genuína ternura e os funcionários falavam connosco dos seus próprios filhos enquanto as nossas ?mulheres? viam berços.
À noite, o outro casal arranjou outra coisa que fazer e nós ficámos sós. Começou a chover torrencialmente. E, pela primeira e única vez, vi a Sara chorar. E aprendi que, afinal, as aparências iludem e sabia na verdade muito pouco sobre a miúda mais divertida da faculdade.
Ela contou enfim a história por detrás do guarda-chuva. Perdera três pessoas fundamentais em dias assim. O único namorado, o avô e uma amiga íntima. Temia a chuva, a tempestade, o dilúvio. Tapava o máximo do corpo que podia porque não se queria molhar e usava o guarda-chuva como um soldado nas trincheiras enverga a espingarda. Era a sua arma, a defesa possível que encontrou para não enlouquecer.
Na nossa única noite beijámo-nos pela única vez e, creio bem, por um único motivo: chovia demasiado, do céu e dos nossos olhos, e eu não sabia o que fazer e ela não tinha mais nada para dizer. A Sara, a menina rica que desperdiçava o dinheiro a pagar coisas aos colegas, a aluna brilhante que não queria saber de boas notas, a actriz talentosa que não aceitava trabalhos, a mulher bonita que não queria ser atraente, a miúda mais divertida da escola que não queria dar a conhecer a sua tragédia.
Nos primeiros dias do 2º ano do curso, a Sara deixou de vir. Nunca mais soube dela, passaram já 8 anos. Acredito que abandonou o guarda-chuva e emigrou para Sul, como os pássaros.

in A Capital

Consciência Adentro 

De que se faz um filme?
Argumento ? a base de tudo, elenco e realização. Isto é, sem dúvida, o mais importante. Por alguma razão não conhecemos, nem queremos conhecer, os nomes dos vencedores das categorias técnicas. Alguém sabe dizer três nomes que sejam de directores de fotografia? Ou de editores de som? Claro que não. Não perdemos tempo com isso.
Portanto, em resumo, um bom filme ? para o ser ? tem de contar uma boa história, por intermédio de excelentes actores, devidamente filmada/filmados por um realizador, no mínimo, competente. ?Mar Adentro?, de Alejandro Amenábar, tem tudo isso e em doses do mais alto quilate.
Porquê esta introdução com um tom, digamos, algo ressabiado? Por manifesta irritação para com os críticos da nossa praça e as suas malfadadas estrelinhas. Aproveitando o privilégio de ter 5000 caracteres para escrever sobre ?Mar Adentro? ? mando já a minha posta de pescada, obviamente subjectiva e irrelevante: o filme de Amenábar é o melhor do ano.
Desconstruindo as críticas:
1) Dizem que o filme se sustenta apenas num actor. Primeira questão, e depois? Isso alguma vez foi motivo para se desvalorizar a qualidade de uma película? O que são ?Cyrano de Bergerac?, ?Spartacus?, ?Nixon?, o ?Hamlet? de Lawrence Olivier, ?O Meu Pé Esquerdo?, etc, etc, etc, se não filmes sustentados por uma única personagem, logo, por um único actor? Mais ainda, no caso de ?Mar Adentro?, Amenábar rodeou o genial Javier Bardem, no papel verídico de Ramon SanPedro, de um elenco absolutamente notável. Um casting perfeito para actores perfeitos ? e desafio qualquer um a provar o contrário;
2) Dizem algumas críticas que se trata de um filme de tese e que, para provar a sua tese, Amenábar dividiu os defensores e os detractores da eutanásia em ?bonitos? e ?feios? ? para pôr as coisas em linguagem o mais coloquial possível. Bom, a menos que me queriam convencer de que Bardem, envelhecido 30 anos, careca e gordo, é um homem bonito, eu vou ali e já venho (apesar de isso me fazer redobrar as esperanças numa velhice bem mais agradável do que suporia à partida);
3) Dizem ainda alguns que, na defesa da sua tese, Amenábar foi sectário e panfletário. Ponto um, a tese é evidente. Sim senhor, pois e então? Não têm os realizadores direito a contar as histórias que pretendem da forma que entendem? O que seria das carreiras de Oliver Stone, Spike Lee ou Lars Von Trier se tal fosse um dogma restrito e capaz de, por si só, abalar totalmente a qualidade de uma película? Claro ? qualidade é uma coisa, credibilidade é outra. Posso naturalmente achar que ?JFK? é um grande filme mas considerar irreal a perspectiva de Stone. Sem dúvida. Mas quantas vezes ao longo de Mar Adentro a personagem de Ramon SanPedro não surge a insistir com veemência para não fazerem dele símbolo do que quer que seja? Ramon não pretende ser exemplo nem fazer ideologia. Ele diz, diversas vezes, pergunta: quem sou eu para dizer o que é melhor para os outros tetraplégicos? Eu sei o que é melhor para mim.
4) Dizem alguns que Amenábar dourou a pílula. Sim, sem dúvida. Parece ter incluído uma ou duas histórias de amor. Perversa ironia: o amor, ao contrário do mito defendido ad aeternum no cinema comercial, não ?conquista tudo?. O amor é impotente face à decisão de Ramon. O amor é, quanto muito, um instrumento de libertação: ?Se me amas, ajuda-me a morrer?.

?Mar Adentro? é uma tese em película, não restam dúvidas. Uma tese sobre um homem que ?aprendeu a chorar, rindo?. Uma tese sobre o livre-arbítrio, o direito inalienável sobre o nosso próprio corpo. A vitória da dignidade individual sobre os interesses que a sociedade nos impõe, seja por influência moral, ideológica ou religiosa.
Digo, com a maior sinceridade possível, é um filme imprescindível. Comove na medida certa em que nos faz rir, sempre hábil e terno na fina linha que une a tragédia à comédia. É interpretado de forma soberba por actores que se apaixonaram pela história de um homem extraordinário ? que Amenábar filma com o talento de quem conhece de cor as imagens que existem nos espaços em branco entre os versos das ?Cartas do Inferno?. E só não é perfeito porque o realizador, reconheço, cedeu à demagogia num dos últimos planos. Não mostrou todo o sofrimento de SanPedro quando, enfim, bebeu o cianeto. Conheço as imagens reais e são bem mais chocantes. Aqui, a pílula não devia ter sido dourada. Talvez se exigisse mais documentário e menos cinema. Mas, afinal, foi isso que Mel Gibson fez na ?Paixão de Cristo? e atacaram-no à mesma.
Certo de que, no mundo dos críticos, os artistas são presos por ter cão e presos por não ter, creio que talvez não devesse escrever sobre este filme. Marcou-me demasiado e isso é perceptível. Mas como não pretendo ser crítico de cinema (que me dêem cianeto imediatamente se isso algum dia acontecer), e como os caracteres terminam, chego ao fim considerando que o Óscar para Melhor Filme Estrangeiro é triste consolo para esta obra notável. Para mim, é um dos injustiçados do ano, como ?Before Sunset?, ?Eternal Sunshine of the Spotless Mind? e ?The Door on the Floor?. Por estas e por outras, nunca mais perco uma noite inteira para ver essa coisinha miserável chamada ?Óscares da Academia?. Já agora, se virem o Chris Rock, dêem-lhe uma cabeçada por mim.

Luís Filipe Borges, in A Capital

Todos os caminhos vão dar a Palma 

Aconteceu assim: queria escrever sobre os ?The Killers?. Já tinha uma citação e tudo para abrir a peça, ?Voici le temp des assassins? ? uma tirada do Rimbaud que me valeria, no mínimo, um piscar de olhos maroto de alguma estudante de Filosofia em pleno bar da Cinemateca. Porque ando há 15 dias obcecado com o tema ?Mr. Brightside?, uma canção rock vibrante, 3 minutos poderosos sobre o ciúme, um festim de guitarras e bateria para deixar um homem bem disposto toda a manhã mesmo que a vá passar no Cartório Notarial de Odivelas. Ainda por cima o vídeo deste single é interpretado por um dos mais adoráveis canastrões da história do cinema de série B a Z, Eric Roberts (irmão mais velho de, sim, essa mesmo, Julia Roberts). Mas não, meus amigos. E porque não?
Porque a FNAC é uma fraude. E aproveito mais 500 caracteres sem falar de Jorge Palma para desancar a multinacional. A FNAC, francesa como é, cumpre à risca a tradição feminina parisiense: cheira mal. Por detrás daquelas estantes bem arrumadas e funcionários aprumados está um enorme e mal-cheiroso par de sovacos. Só isso pode explicar a dificuldade em encontrar discos de lançamento tão recente como os álbuns dos ?The Killers? ou ?Franz Ferdinand?, só para citar duas das minhas mais recentes amarguras ? que me obrigaram a calcorrear as aparentemente funcionais fnac?s-que-se-disseminam-por-aí-como-cogumelos-com-o-cio em vão.
Bem, deitada cá para fora toda a bílis acumulada, vamos ao que interessa. Desgostoso, abandonado numa estante atafulhada da FNAC com discos de Moby e Ágata nas mãos, ponderei o suicídio. E, como em tantas outras ocasiões, um amigável bombeiro surgiu da penumbra para me salvar. De quem falo, ladies & gentlemen? The one and only, Mr. Jorge Palma.
Encontrei o Norte no álbum homónimo. Palma regressa em grande forma. Sobretudo para um vencido da vida. Sim, é isso que atravessa todo o disco. Um vencido da vida, campeão da dignidade, D. Quixote reformado mas ainda com disposição e ânimo para alguns biscates. Entre ambiente de cabaret e sons de Dixie, blues à la Palma e pianadas de fazer cair o cabelo ao Luís Represas, a voz até chega a falhar mas Palma, o Jorge, mesmo que afastado enfim do tabaco e do álcool, ainda os têm dentro de si. E ainda bem que não os perdeu. Jorge Palma é a voz das rugas, todo ele encanto e dor e, como se pode ver em cada uma das suas fotografias, mantém o mais belo de todos os sorrisos resignados.
Se a genialidade fosse um minuto, Palma seria uma hora. Claro que, como sabemos, da genialidade não se exige constância. Constância, regularidade, frequência, são coisas para os esforçados. Palma, todavia, não é nenhum Costinha. É Deco, desequilibrado, irregular, mas capaz de resolver um jogo inteiro num só lance, num só rasgo. Tudo bem, ?Norte? não é ?Só?. Mas um álbum com duas pérolas como ?Passeio dos Prodígios? e ?Valsa de um Homem Carente?, mesmo que inclua meia dúzia de versos manhosos pelo meio, é suficiente para nos reconciliar com a condição humana e obrigar-nos a queimar, serenamente, o single da ?Feiticeira? que comprámos numa tarde chuvosa de Outono, minutos antes de ponderar o suicídio. Adiemos, pois, o fim. Palma lives on.

NOTA: se os senhores da FNAC quiserem, estou disposto a apresentar um pedido público de desculpas em troca dos álbuns supracitados bem como da discografia completa de Lou Reed, todas as séries dos ?Sopranos? em DVD e do número de telefone da funcionária Catarina Gonçalves, da secção Música Clássica da FNAC no Cascais Shopping. Obrigado.

Luís Filipe Borges, in A Capital

Conan, é bárbaro 

O que é que o Conan tem? Qual o segredo deste irlandês norte-americano já escolhido para suceder a Jay Leno na condução do Tonight Show, um dos mais prestigiados programas do horário nobre da televisão americana?
Julgo que Conan justifica o famoso slogan de Fernando Pessoa para a Coca-Cola, ?Primeiro estranha-se, depois entranha-se?. O segredo de Conan talvez esteja na subversão das regras típicas deste produto televisivo originalmente norte-americano: a saber, um talk-show que une o anfitrião a uma banda em estúdio ? com a qual se pressupõe existir química; um monólogo introdutório do ?host? ao estilo stand-up comedy; entrevistas curtas a duas personalidades do show-biz (o prato forte) ? intercaladas com pequenos sketchs; e um convidado musical a fechar o programa. É isto, o formato não podia ser mais simples, e repete-se noite após noite.
O que Conan começa por fazer, e por isso se estranha, é uma violação de um dos dogmas clássicos da comédia: o ritmo. Quem vir o seu monólogo de abertura percebe os riscos que o homem corre: longas pausas entre piadas, improvisos constantes com o público e a banda, por vezes set-ups demasiado longos até chegar, enfim, à punchline. Tudo isto contrasta com a sua agilidade, presença de espírito e óptimo timing durante as entrevistas posteriores. Porque o fará? Creio que aqui chegamos ao grande segredo para o sucesso de Conan: fá-lo por se sentir completamente à vontade com a auto-ironia. Ao contrário de anfitriões clássicos como Jay Leno ou David Letterman, Conan O?Brien parece divertir-se genuinamente com o gozo e caricatura da sua própria pessoa (ou persona). Se, nas entrevistas, consegue dizer a piada certa no momento certo, e equiparar-se a Jon Stewart (do Daily News, na Comedy Central ? por cabo) na forma como se menospreza ou auto-flagela para melhor servir os propósitos cómicos, Conan sabe que ? durante o seu monólogo inicial ? mais importante do que dizer bem a piada é brincar consigo próprio, com o ar desajeitado, o cabelo (que parece ter vida própria) e, por vezes, até com a má qualidade de muitas piadas.
Conan O?Brien é uma espécie de versão trash do anfitrião tradicional. Não teme gozar com a sua própria falta de jeito como actor, a fraca qualidade da maioria dos sketchs intercalares e até mesmo o seu público em estúdio, que parece divertir-se por tudo e por nada. Precisamente pela aparente genuinidade e sinceridade da sua performance, agarra-nos mais do que os (excelentes) Leno ou Letterman ? e o factor decisivo parece mesmo ser o facto de não se levar minimamente a sério. Junte-se a tudo isto a óptima relação com a banda liderada por Max Weinberg (baterista de Spielberg) e o seu dom inato para conduzir entrevistas hilariantes, seja com a maior estrela de Hollywood ou com o mais refundido actor secundário de uma sitcom que ninguém conhece.
Resta saber como sobreviverá este Conan relativamente underground (ou, pelo menos, alternativo) quando chegar a sua vez de ocupar a cadeira do Tonight Show, o mais mainstream dos géneros televisivos norte-americanos. Aos 41 anos, o céu parece mesmo ser o limite.

Luís Filipe Borges, in A Capital

América Proibida 

?Existirá um país que será conhecido por América. Metade do mundo o amará e a outra metade o contrário. E isto será feito na medida correcta para o amor e o ódio: a do exagero?.

Len Pin-Fung, filósofo chinês da dinastia Ming (acabadinho de inventar)


Tinha 11 anos quando comprei o meu primeiro disco. Na realidade, uma cassete ? por 150 escudos ? intitulada ?Elvis Presley ? King?s Greatest Hits?. Corri para casa num misto de ansiedade e alegria. Tinha medo de que me roubassem aquele tesouro. Desse dia em diante, infernizei a vida aos meus pais durante toda a adolescência, dançando em cima da cama enquanto berrava clássicos como ?Blue Suede Shoes?, ?Don?t be Cruel? ou ?Jailhouse Rock?.

Em ?When Harry Met Sally?, de Rob Reiner, há uma cena onde Billy Cristal e Meg Ryan discutem o orgasmo enquanto tomam o pequeno-almoço. Meg diz que as mulheres sabem como fingi-lo na perfeição. Billy diz que nunca ninguém o fez com ele. Que é impossível enganá-lo. Ela prova-lhe que nenhum homem pode estar certo disso ao simular um orgasmo em pleno snack-bar. No final, uma velhinha sentada noutra mesa faz o seu famoso pedido ao empregado: ?I?ll have what she?s having?.

No clássico ?On the Road?, de Jack Kerouac, uma personagem explica finalmente o seu percurso errático e aventureiro com um discurso sobre a ?intuição do tempo?.

Os americanos amam desportos que, na grande maioria dos casos, o resto do mundo nem sequer pratica ? e todos os campeonatos principais se chamam ?World Series?.

E eis onde o texto começa. O que une estes 4 instantâneos? Obviamente o fascínio pela América. Por um país de excessos, imagens fortes, espectáculo, velocidade. Numa palavra (que, por sinal, acho detestável): juventude.
Eu amo a América porque tenho 27 anos. E porque estou sem pachorra para a Europa snob, clássica, francófona, sobranceira, para o Velho Continente que insiste em ver a América como o primo mais novo que viveu lá em casa e que não quis seguir os nossos conselhos para uma matrícula em Direito ou Medicina.
A frase que quero mesmo escrever neste texto é: eu amo a América foleira. Pirosa, lamechas, exagerada, disforme, desproporcionada, histérica, louca, nova-rica ? em suma, amo a América que os nossos intelectuais odeiam.
Amo as comédias românticas e os cantores românticos, os cómicos dos trejeitos e da escatologia, os políticos com o pézinho sempre a fugir-lhes para o épico, a bandeira americana em tudo quanto é sítio, os atletas naturalizados que sobem ao pódio com medalhas de ouro, os 10.000 filmes e séries sobre o Vietname, os turistas obesos, a junk-food, a excessiva importância dos Óscares, os cientistas que não nasceram lá, os vídeoclips de hip-hop, os livros publicados por criminosos, as multidões a vibrar com o baseball (talvez o único desporto de estádio no mundo onde um bucha pode ser o maior), os planos cinematográficos da NBA, o glamour das estrelas, as teorias da conspiração, Roswell, os fatos e gravatas do FBI, Stephen King, a banda-desenhada, a pornografia interpretada e filmada com tal excesso que se torna cómica, os late night shows, James Dean, Kurt Cobain e todos os mitos mortos que entristeceram um país em constante busca por super-heróis.
Gosto da América porque tenho 27 anos. Amo esse país quase sem História, que não tem pejo em assumir o patriotismo dos seus cidadãos, e onde todos procuram acrescentar páginas ao tal livro com pouco mais de 200 anos. E gosto da América por negação. Gosto da América porque, sem ela, não poderia continuar a fingir-me um europeu cosmopolita, cheio de filosofia alemã e francesa na cabeça, frequentador de cafés seculares, aficcionado do existencialismo, cultíssimo admirador de Tati, Truffaut e Techiné, leitor diário de Prado Coelho e semanal de Graça Moura, fumador de cigarrilhas, conhecedor de vinhos, habituè da Culturgest e do CCB, leitor do JL, visitante regular de Londres e Paris, e assíduo frequentador da Cinemateca.
Meus amigos ? e com vossa licença -, bardamerda para isso tudo. Não preciso que me digam, sobre as comédias românticas, ?que o amor não é assim?. Eu sei que não é assim ? é por isso que pago 5 euros para ir ao cinema. Não preciso de ler que os filmes de acção são ?um conjunto de efeitos especiais sem argumento? ? tal como não preciso de ser avisado de que o bife do lombo é melhor do que croquetes (às vezes só me apetece croquetes, ok?); nem tenho mais neurónios para desperdiçar com a crítica portuguesa. Estou-me nas tintas para o Godard, que anda a masturbar-se há 20 anos ? ainda por cima sempre com a mesma técnica, e quero saber muito pouco do Fassbinder e da Duras. Já vi, já li, já chega.
Não me interessa que o Spielberg estrague um em cada três filmes por insistir num grande plano com a bandeira americana. Ele pode fazê-lo porque teve génio, antes disso, para nos oferecer uma hora e meia de magia. O que eu desejo é que, um dia, um europeu erudito que não se leve a sério (grande contradição nos termos) perceba que é possível dar 5 estrelas a um blockbuster. E isso é o que mais amo na América: um país que compreende e aceita na perfeição a ideia de que uma das idiossincracias do ser humano é conseguir gostar, ao mesmo tempo, do ?Wicked Game? do Chris Isaak e da ?Sonata ao Luar? do Beethoven.
Gosto da América porque tenho 27 anos e porque, tal como esse imenso país cujas estradas nunca percorri, corro atrás dos super-heróis que a minha geração não teve e sonho com uma história grandiosa qualquer a correr em contra-relógio contra a intuição do tempo. É tudo em excesso, utópico, demasiado colorido e ilusório? É ? e não foi para isso mesmo que se inventaram os sonhos?

Luís Filipe Borges, in A Capital

A Santíssima Trindade do Extraterrestre 

Aviso prévio: não percebo nada de música. E calhou-me logo falar de um disco, a mim, que não respeito críticos portugueses absolutamente nenhuns excepto alguns bravos críticos musicais. Publicidade: já agora, se querem ler excelentes textos e recensões sobre discos, visitem o blogue www.quasefamosos.blogspot.com.
Dito isto, recuemos ao tempo em que os Delfins ainda não tinham conquistado o direito a ser apedrejados à vista e o Miguel Ângelo ainda não era um beto com a mania que é londrino mas apenas um beto que aspirava a ser londrino. Nesses tempos de paz e harmonia no mundo, os Delfins deram-me a conhecer António Variações. Nasci em 77 portanto, se pensarmos aquilo que Variações poderia representar para uma criança, enfim, só me vem à cabeça a imagem do Papão. De modo que é mais tarde, e por voz e instrumentos alheios, que estabeleço contacto com a obra do grande artista:
?Tu estás livre e eu estou livre / e há uma noite p?ra passar / porque não vamos unir-nos / porque não vamos ficar / na aventura dos sentidos?? ? primeiros versos da Canção do Engate. Conseguem imaginar o que representariam versos como estes numa canção com este título, num país cuja democracia mal tinha acabado se sair da incubadora? Numa frase, Variações fez à pop portuguesa o mesmo que os Capitães de Abril fizeram ao país: uma revolução.
Agora, 20 anos depois da sua morte, chega-nos do Além o disco nacional do ano. 20 anos depois, Variações continua a soar único, ousado, novo, incomparável. A poesia está na rua. A revolução não morreu. Parece fácil escrever isto? Fácil é constatar que os LOTO não passam de New Order requentado, que os FONZIE são fotocópia a preto e branco dos Greenday, os TORANJA não passam de Jorge Palma de 3ª categoria, GOMO é muita parra mas pouca uva e os próprios THE GIFT parecem dever demais à cena de Bristol e afins.
As letras de Variações continuam a surpreender pelo seu desassombro e têm tanta verdade nelas contida que, à primeira audição, percebemos estar perante uma mão cheia de clássicos. De resto, o disco é um caso de amor. A escolha de Manuela Azevedo, Camané e David Fonseca para darem voz a um verdadeiro ?Variações Reloaded? é magistral e, simultaneamente, humilde. Só três vozes tão distintas, a pop melódica de Manuela, o humanismo sofrido do fadista e o português roqueiro de David (tão surpreendemente diverso do seu angustiado inglês), poderiam aproximar-se do génio total do homem que vivia e compunha ?entre Braga e Nova Iorque?.
Neste belíssimo álbum, Variações e os Humanos dão-nos mais que apenas (muito) boa música. Dão-nos hinos. Canta-se com uma clareza e coração aberto que não fazem falta somente à música nacional ? mas também ao cinema e à literatura, para não ir mais longe. É a vida de António Variações que está ali: o sexo, a insatisfação, a família, o envelhecimento, a doença, o desejo, a morte. Mas sempre, dir-se-ia que da primeira à última faixa, com um sentimento estranhamente raro para nós, soturnos portugueses, a esperança em vez da saudade, a alegria em vez das lágrimas.
Cantemos todos, a partir de agora, em casa, no local de trabalho, na rua, no estrangeiro, sozinhos ou acompanhados, onde quer que estejamos: ?Vou viver / até quando eu não sei / que me importa o que serei / quero é viver / Amanhã / espero sempre um amanhã / e acredito que será / mais um prazer?.

Luís Filipe Borges, in A Capital

O irmão mais velho 

Vou escrever este texto de um só fôlego, relê-lo uma única vez e fechar a página. Estou para escrever sobre o homem do título há muito tempo mas nunca encontrei o momento certo, o local oportuno ou a forma apropriada. Creio que agora e aqui é o momento.
Tenho um irmão de sangue, mais novo, e tenho apreciado o papel de irmão mais velho toda a minha vida. Tanto quanto sinto a falta de um. Hoje, numa crónica mais para ele e para as pessoas desta casa, quero falar-vos do Luís Osório.

Há pouco mais de um ano atrás, o Luís ligava-me para jantar. Queria a minha opinião sobre um convite que recebera. Lá fomos e ele contou-me da possibilidade de dirigir A Capital, tornando-se o mais jovem director de um diário nacional e ? bem mais importante do que isso ? realizando um dos seus maiores sonhos. O que achava? Disse-lhe e não me arrependo: que ele só poderia vencer. Havia dois campos de jogo, a relação com a administração espanhola e o impacto do seu trabalho na redacção e na imprensa portuguesa. E, nesse segundo campo, a vitória era o único caminho possível. Sabia que o Luís só poderia ganhar essa batalha e, passado um ano, assim aconteceu. A Capital recuperou a auto-estima, ganhou prestígio, municiou-se de uma equipa diversificada de colaboradores, inovou no grafismo, conquistou leitores jovens, estancou a quebra nas vendas, realinhou-se ideologicamente, lutou por causas, tornou-se influente nos meios do poder.
Como sabia que o Luís só poderia ganhar? Por conhecê-lo tão bem. Comecei a trabalhar com ele, oficialmente, no dia em que terminei o curso de Direito. Cheguei à Mínima Ideia, a produtora de que o Luís era sócio e director, com a gravata na mão, feliz da vida. Essa gravata patética que nos ?obrigam? a vestir para as orais de Direito na Clássica de Lisboa sob pena de nos acusarem de não respeitar a instituição e os seus doutos sábios. A gravata na qual nunca consegui aprender a dar o nó, nem o mais básico de todos, apesar dos múltiplos esforços do meu pai. O Alexandre, meu irmão mais novo, é que me safava ? com elegantes nós de vários estilos ? executados na véspera das orais que tive de fazer. Cheguei à Mínima Ideia e disse: ?Já está! Acabei!?. O Osório pergunta-me então, com o ar mais natural do mundo, se teria de passar a tratar-me por doutor. E eu, estúpido, levando-o a sério, respondo ?Claro que não?. Foi a primeira vez que registei a sua gargalhada capaz de demolir paredes. Desde então aprendi a lidar com a ironia e o sarcasmo do Luís.
Trabalhámos dois anos e meio juntos e foi o melhor período da minha vida. A equipa era pequena, muito jovem, e o Luís confiou em pessoas absolutamente inexperientes em televisão as mais variadas funções e responsabilidades. Vejo esse tempo como um curso intensivo com as mais diversas pós-graduações em comunicação: entrevistámos, editámos, escrevemos, interpretámos, realizámos. Fizemos programas sempre a partir de ideias originais e nunca adaptámos um formato estrangeiro sequer.
Ficámos amigos mas, curiosamente, não tão próximos como hoje. Isso só aconteceu verdadeiramente quando abandonei a Mínima Ideia. Lembro-me do dia em que, após muito adiar o momento, decidi contar ao Luís que recebera um convite para as Produções Fictícias. Como gostamos muito de metáforas futebolísticas, disse-lhe que estava no Benfica e só admitiria trocar o meu clube do coração pelo Real Madrid. Estava constrangido, atrapalhado, não sabia como lhe dizer. Ele descansou-me em dez segundos: deu a mesma gargalhada forte de sempre, uma palmada nas costas, meia dúzia de palavrões amigáveis e disse-me, tens de ir, pá, como é óbvio. Vai ser bom para ti.
Se ainda me restassem dúvidas, desapareceram nesse dia os últimos comentários que a minha memória ainda guardava de três ou quatro medíocres que tinham tentado, no início da aventura na Mínima Ideia, envenenar a impressão que tínhamos do Luís - eu e aquele que veio a tornar-se no seu grupo mais íntimo. Foram nos dois anos seguintes, em que já não existia a relação patrão-empregado, que a nossa amizade se tornou total. O Luís acabou por também deixar a Mínima Ideia, realizou um documentário, escreveu livros, encenou uma peça de teatro, mas mantivemo-nos próximos. Chegou mesmo a passar períodos difíceis, de desânimo e dúvida, e nunca os revelou. Correndo o risco de ser lamechas (mas é para isso mesmo que tenho esta página, para escrever o que quiser), o Luís tornou-se, de facto e para sempre, no meu irmão mais velho. E os irmãos mais velhos fazem por esconder dos outros as suas tristezas. Dão o exemplo de força e os conselhos mais acertados. Enfrentam as tempestades com um sorriso tranquilo.
Aprendi com o meu irmão mais velho a escutar a minha própria opinião antes de todas as outras, a não me deixar influenciar, a relativizar sempre os sucessos e os fracassos, a rir de todas as contrariedades, a não tomar nada por garantido, a respeitar os autodidactas, a ser independente, aprendi (e ainda procuro) a encontrar um caminho no meio da dispersão.
Agora que o Luís e o nosso grande Rogério, seu fiel escudeiro, terminam o seu ciclo n?A Capital, custa-me passar pelo seu gabinete e vê-lo vazio. Custa-me que a redacção ainda não tenha recuperado o sorriso que recuperou neste último ano, e custa-me sobretudo o meu próprio egoísmo. Não ter aprendido ainda que os caminhos dos irmãos nem sempre levam à mesma cidade ou, melhor ainda, que o destino final pode ser o mesmo mas existem inúmeros caminhos para lá chegar. O Luís ensinou-me isso mesmo mas ainda sou demasiado egoísta para aprender em toda a plenitude a noção de que, por vezes, não terei o meu irmão mais velho lado a lado na mesma caminhada.
Alguns dos seus mais próximos ficam por cá, com prazer, para continuar o trabalho na equipa fantástica deste diário. O nosso irmão mais velho sai com a consciência tranquila, sem nada, como já fez noutras ocasiões da sua vida. Sem convites, independente e livre como sempre foi.

Para ele, meu irmão e mestre, deixo uma imagem. Há muito que te vejo como um Dom Quixote ao qual deram um grande sentido de humor. Só te quero dizer que se, por acaso, os moinhos forem mesmo de vento, chama-me outra vez para o teu lado. Melhor lutar contra uma ilusão do que perder de vez a capacidade de nos iludirmos. Também aprendi isso contigo. E estou convencido de que é pelas (e para as) ilusões que nos mantemos activos e confiantes. Com o riso sempre pronto apesar da morte espreitar atrás de cada esquina. E se, no futuro, não ficar marca nenhuma, se a cidade à qual estamos destinados não passar de um amontoado de destroços - que se lixe, ao menos teremos a certeza de que nos divertimos bastante no caminho para lá.

Luís Filipe Borges, in A Capital

4 de julho de 2005

Direitos Adquiridos 

Por Vital Moreira

Segundo o inquérito de opinião pública ontem divulgado no PÚBLICO, enquanto uma maioria dos inquiridos entende que os funcionários públicos têm regalias a mais, os próprios funcionários públicos têm opinião muito diferente: cerca de metade consideram que "têm as regalias que deviam ter" e 25 por cento dizem mesmo que "têm regalias a menos"! É bem verdade que não existe nenhum beneficiário de privilégios que não os ache justíssimos, ou mesmo insuficientes.
Mas a verdade objectiva e evidente para toda a gente é que o regime da função pública confere importantes e valiosas regalias aos funcionários quando comparados com os trabalhadores do sector privado. A principal delas, de valor inestimável e invejável, é a estabilidade vitalícia no emprego, não podendo ser despedidos. A essa somam-se as que respeitam à segurança social - de que continuam a gozar inteiramente os funcionários públicos entrados antes de 1993 -, quer quanto à idade de reforma (60 anos em vez de 65 anos), quer quanto ao valor das pensões, calculadas pela remuneração do fim da carreira e não pelos descontos efectuados, quer ainda quanto ao regime de baixas por doença. Acrescem ainda as regalias no campo da protecção da saúde (conferidas pelo subsistema da ADSE, que custa somente um por cento do vencimento), do tempo de trabalho semanal, das férias, da progressão automática de escalão remuneratório com o simples decurso do tempo (agora suspenso), isto sem falar da falta de uma verdadeiro sistema de avaliação de desempenho e do maior laxismo nas baixas por doença, etc.
Tradicionalmente, o regime mais favorável de que os funcionários usufruíam em matéria de segurança no emprego, de assistência na saúde e de segurança social justificava remunerações mais modestas do que as do sector privado, bem como um regime de dedicação exclusiva à função pública. Nenhuma dessas limitações se aplica hoje em geral. Em muitos casos, o emprego público é mais bem pago do que o equivalente privado. E a regra da incompatibilidade com actividades privadas praticamente deixou de valer, salvo em casos de dedicação exclusiva, remunerada com um suplemento de vencimento. Poucos países há onde a acumulação de empregos públicos com actividades privadas seja tão generalizada, mesmo em caso de evidentes conflitos de interesse, acumulação facilitada pelo regime de autorização tácita, que o Código de Procedimento Administrativo erradamente estabeleceu.
As regalias são ainda maiores no caso dos muitos regimes especiais que proliferaram caoticamente ao longo dos anos, designadamente no que respeita a suplementos remuneratórios (subsídios de toda a ordem), a regimes especiais de pensões de reforma, a cuidados de saúde (os agora famosos subsistemas de saúde da Ministério da Justiça, das forças de segurança e das Forças Armadas), etc. A maior parte das vezes não existe a mínima justificação para tais regimes especiais, salvo a maior capacidade reivindicativa dos respectivos sectores profissionais.
Para "comprar" os seus funcionários, os ministérios foram atribuindo regalias a trouxe-mouxe, criando regimes especiais à margem do regime geral e gerando uma verdadeira selva de sistemas particulares fora de qualquer racionalidade. Em geral trata-se de verdadeiros casos de "autolegislação", preparada pelos sectores interessados e depois carimbada pelos ministros e pelo Governo. Aliás, algumas dessas situações têm origem parlamentar, por via de grupos de deputados oriundos de certos sectores que legislam em seu próprio benefício. Entre os exemplos mais recentes conta-se o conhecido caso dos inspectores do Ministério da Educação.
Uma regra geral é que tais regimes tendem a eternizar-se, passando a ser defendidos como direitos adquiridos que nenhum governo tem a coragem para afrontar. Por exemplo, o Estatuto da Carreira Docente do Ensino Superior estabelece o direito de todo o assistente universitário que se doutora a ser contratado como professor da respectiva universidade, independentemente de concurso, das necessidades desta e mesmo do mérito relativo do doutoramento. O resultado, para além da endogamia docente das nossas universidades, tem sido o superpovoamento de professores em muitas faculdades. Passado mais de um quarto de século, esse abstruso privilégio continua em vigor...
Alguns casos são verdadeiramente escandalosos, particularmente no que se refere ao sistema de pensões de reforma. Porventura o mais intolerável é o dos médicos, que, depois de uma vida em part time no SNS, beneficiando das vantagens da clínica privada, com descontos ínfimos para a segurança social e para a CGA, optam oportunamente pela dedicação exclusiva - muitas vezes só ficticiamente, deixado entregue o consultório a um colaborador fiel - a poucos anos da idade da reforma da função pública, só para terem direito a uma generosa pensão da CGA como médicos em dedicação exclusiva, igual à dos que sempre estiveram nessa condição, que não tem nenhuma relação com os descontos que fizeram e que vai ser paga, em grande parte, pelos contribuintes. Que situações destas tenham podido ser criadas e se mantenham indefinidamente revela bem o peso desses sectores e a complacência governamental com os interesses mais poderosos.
Estas situações só são possíveis porque há condições que as favorecem, designadamente a ausência de uma obrigação de apresentação do impacto financeiro de cada medida legislativa relativa à função pública e de justificação cabal de soluções especiais, bem como a separação entre a gestão da função pública e o Ministério das Finanças, como sucedeu até há pouco. Isto para não falar do peso dos sindicatos em certos sectores da administração pública, nomeadamente no sector da educação. Por vezes, são os próprios ministros, profissionais do sector em causa, que favorecem tais privilégios por razões de solidariedade profissional e corporativa.
O principal obstáculo à revisão das situações de privilégio indevido é constituído pelo argumento dos "direitos adquiridos", entendidos não como direitos individuais, mas sim como direitos da própria profissão a manter o estatuto económico-profissional existente. Trata-se de um evidente abuso do conceito, que nem por isso deixa de ser usado por todos os sectores profissionais, desde os professores aos polícias, desde os militares aos juízes. Infelizmente, o precedente foi estabelecido pela reforma do regime de pensões da função pública do início dos anos 90, que salvaguardou todas as vantagens antecedentes, independentemente da idade e do tempo de serviço.
A questão fundamental é a da sustentabilidade financeira do sector público e das suas regalias. Neste aspecto, há discursos políticos pouco responsáveis. Há dias, um dirigente da oposição de esquerda, justificando a rejeição da ampliação da idade da reforma na função pública, afirmava que a pensão que os respectivos pensionistas recebem é o "dinheiro que descontaram ao longo da vida". Ora, é fácil ver que os descontos até aos 60 anos não dão para sustentar uma pensão equivalente à remuneração dos últimos anos durante mais de dez anos, tendo em conta que a média de vida das pessoas hoje é superior a 70 anos. Se não se prolonga a idade da reforma, aumentando os anos de desconto, como é que se resolve este problema? Aumentando os descontos ou diminuindo as pensões?
É pena que quem contesta a convergência da idade da reforma na função pública para os 65 anos não esclareça esse ponto. Mas é esse em geral o defeito da retórica dos "direitos adquiridos", na peculiar versão latitudinária que ela tem no discurso político-social prevalecente.
(Público, Terça-feira, 28 de Junho de 2005)

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