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28 de novembro de 2009

Homenagem a Ernesto Melo Antunes 

28.11.2009


CONFERÊNCIA DE
HOMENAGEM A ERNESTO MELO ANTUNES



Comentário de Ana Gomes
sobre a intervenção de Luis Castro Mendes



I. Introdução

Tenho muita honra em poder partilhar convosco esta homenagem a Ernesto Melo Antunes, que teve um papel-chave na revolução do 25 de Abril, no MFA, na descolonização, na consolidação da democracia portuguesa. Sem ele, o 25 de de Abril nunca seria como foi: Abril não seria Abril. Ou nunca seria, mesmo.

O embaixador Luís Castro Mendes citou Maria Manuela Cruzeiro para descrever Melo Antunes como um "sonhador pragmático" e, de facto, a tensão entre o ideal e o possível é um dos elementos principais da sua acção política.

Há um traço que caracteriza o pensamento de Melo Antunes sobre política externa: é que, para ele, os ideais que animavam as suas acções no domínio da política interna são os mesmos que o moviam na política externa; e em ambos os tabuleiros, os interesses nacionais são articulados como expressões do potencial emancipatório do socialismo democrático.

O Luís disse-o muito bem - tal como Melo Antunes foi defensor de um modelo de democracia parlamentar fortemente imbuído dos valores do socialismo democrático, o mesmo Melo Antunes tentou encontrar uma política externa para Portugal que contribuísse para a tal "nova filosofia global das relações entre os homens" conducente ao "desaparecimento progressivo das desigualdades entre os povos" e a um "novo ordenamento planetário", expressões que utilizou no discurso/testamento sobre política externa que fez na sua despedida do MNE, em Julho de 1976.

Há qualquer coisa de pouco ortodoxo, de refrescante mesmo, ouvida hoje, nesta abordagem ideologica e eticamente exigente, que não nos deixa adormecer por debaixo dos louros da Revolução cá no nosso cantinho à beira-mar plantado, tipo "socialismo cá dentro, lá fora a selva". A perspectiva internacionalista de Melo Antunes parte do principio - inteiramente correcto, a meu ver - de que os nossos valores não podem aplicar-se apenas aos nossos concidadãos; de que o socialismo - ou a democracia - num só país, ou nalguns países, não chega; e de que as fronteiras portuguesas não podem representar uma espécie de caixa estanque para os valores e principios que orientam a política nacional.

Relendo o referido discurso do MNE, fiquei surpreendida como Melo Antunes já tomava o mundo por interdependente e globalizado - apesar do colete de forcas bipolar de então. Por isso, para ele era fundamental aproveitar "a margem de manobra para transformar a sociedade" em projectos nacionais ou "até outros mais vastos" para realizar "o socialismo possivel".

Que contraste com os dias que correm, em que a política externa – e a interna também - se esvaziou de preocupações de natureza ética, em que os escrúpulos minimos, atinentes aos direitos humanos, são considerados obstáculos a uma suposta "diplomacia económica", cujos objectivos de curto prazo se sobrepõem a uma visão estratégica de progresso para a Humanidade. A política externa está reduzida a decisões episódicas, reactivas e pouco ambiciosas, atavicamente enquadradas por lugares-comuns da "nossa história" e por dogmas geo-estratégicos como "o atlanticismo".

Dogmas que Melo Antunes, o politico e o militar, já desmontava - por exemplo, ao antever a NATO como "uma organização em devir, que poderá vir ganhando novos sentidos e objectivos" em resultado da "détente". E ao antever a importância da Conferência de Seguranca e Cooperação Europeia nesse sentido (e, como o Luis sugeriu, em Helsinquia em 1975 comecou de facto a ruir o Muro de Berlim). E ao escrever no discurso no MNE que "apostamos na détente" para realizar o objectivo estratégico de "uma gradual superação dos blocos politico-militares". E ao advogar que um mundo mais seguro implicava “reduzir (...) o perigo de confrontações armadas entre as grandes potências e lutar cada vez mais pela limitação dos armamentos nucleares, num primeiro passo, para concentrarmos os esforços num futuro desarmamento geral e completo”. Esta, uma tese que era anátema para os mais fiéis “atlanticistas” ... pelo menos até ao Presidente Obama em Praga, há uns meses, ter dito o mesmo!

Ernesto Melo Antunes aspirava, portanto, a uma política externa oposta à comezinha "real politik" : a sua crença na possibilidade de um mundo melhor e, acima de tudo, na vocação portuguesa para contribuir para a sua construção depois de décadas do lado errado da barricada, encarnam, no domínio da política externa, a convicção, o voluntarismo, o optimismo e a solidariedade internacionalista de Abril.


II. A Europa

Mas será que a originalidade da política externa portuguesa praticada sob o consulado Melo Antunes foi tal, que o "momento Melo Antunes" no MNE não teve continuidade?

Creio que se pode ir além da explicação da sedimentação pós-revolucionária, do acalmar dos ânimos; e além de apresentar as decisões que se seguiram pouco depois (durante o I Governo Constitucional) como o triunfo da "ética da responsabilidade" sobre a "ética da convicção", para utilizar o vocabulário weberiano do Luís.

Hoje, retrospectivamente, julgo que as convicções ideológicas de Melo Antunes constituiram um contributo muito importante e necessário na procura de novos azimutes para uma política externa portuguesa durante décadas ancorada numa herança colonial condenada e condenável. Da mesma maneira, penso que a viragem do "momento Melo Antunes", nomeadamente por via das decisões tomadas pelo I Governo Constitucional, correspondeu a uma evolução igualmente necessária da política externa portuguesa e do posicionamento internacional de Portugal.

Com a vantagem de poder olhar para trás, não vejo ruptura, vejo fases sequenciais de um processo de construção de um novo Portugal e da sua projeccão no exterior. Processo que resulta coerente quando percebemos que o que hoje faz Portugal valer mais, pela diferença, no concerto europeu é precisamente a diversificação das suas relações externas em que o MNE Melo Antunes investiu.

E quando percebemos que esse mesmo modelo de “diversificação máxima das relações externas” continua mais válido do que nunca num mundo que se globalizou e coincide com o próprio modelo da UE hoje - incluindo no objectivo estratégico de promover um mundo melhor, mais democratico, mais seguro e mais justo. Tal como as metodologias de Melo Antunes - recusa da confrontação violenta para resolver conflitos internacionais, investimento no dialogo e rejeição do alinhamento bipolar – coincide com a aposta no multilateralismo eficaz hoje inscrita em todas as estratégias europeias.

O Luís examinou em detalhe a posição de Melo Antunes em relação à Europa:

Por um lado vemos a convicção de que, a seguir à NATO, a "condição europeia" de Portugal é o "segundo parâmetro fundamental da inserção de Portugal no Mundo" e a defesa da "consolidação de uma Europa forte e unida, como contrapeso necessário aos dois grandes blocos actuais" um valor importante; e, claro, os acordos do Luxemburgo de Outubro de 1975 com a CEE que reflectiram, nas palavras do próprio Melo Antunes, o facto de "grande e substancial parte dos nossos esforços" terem sido "dirigidos a assegurar os nossos laços estreitos com a Europa".
Por outro lado, como o Luís explicou, encontramos a crença de Melo Antunes na impossibilidade da adesão à CEE nas condições objectivas da economia e da sociedade portuguesa da altura, o medo da concorrência com um espaço económico a anos luz do atraso português, ou, nas palavras do próprio Melo Antunes "a fraqueza do desenvolvimento do nosso aparelho produtivo" . Por isso não só não avançamos logo para encetar negociações de adesão, como também - e as actas do Acordo do Luxemburgo demonstram-no - não se abriram negociações para um estatuto de associação, bem menos vinculador.

O Luís lembra-nos que Melo Antunes não era o único a manifestar reticências em relação à possibilidade de encetar negociações de adesão com a então CEE e sublinha que o cepticismo em relação à Europa grassava particularmente entre os agentes económicos.

Por isso, meu querido Luís, eu carregaria mais nas nuances da tua conclusão de que "NATO e inserção europeia surgem, assim, como balizas, como referenciais" da abordagem de Melo Antunes. Parece-me que Melo Antunes defendia uma cuidadosa, relutante e, acima de tudo, gradual aproximação à Europa, que excluía a entrada na CEE a médio prazo.

Melo Antunes fala no discurso do MNE, não só na nossa "condição europeia", mas também da nossa "vocação europeia, que, determinante, não pode, porém, ser tomada por exclusiva".

E aqui voltamos à primeira parte da nossa exposição: a aspiração a um caminho próprio, a procura de uma política externa desligada de compromissos que pudessem limitar as opções nacionais, o esforço, por parte de Melo Antunes, de encetar aquilo que o Luís descreve como "um processo de crescente diversificação das relações externas" guiado pelo supremo objectivo de preservar a "independência nacional", e a vontade de dar a Portugal um papel de intermediário equidistante entre a Europa e o Terceiro Mundo.

Todo este programa, juntamente com o receio de, nas palavras do próprio Melo Antunes, "participarmos do centro industrializado que é a Europa de uma forma subalterna e dependente", todo este programa, dizia eu, não era - não foi - compatível com a opção de conduzir Portugal de imediato para dentro do projecto de integração europeia;

Por outras palavras, parece-me ser importante constatar que não foram só as preocupações com o tremendo atraso económico português que motivaram em Melo Antunes a relutância em abraçar de imediato o projecto europeu: essa relutância tem, isso sim, as suas raízes numa avaliação muito particular das valências e das vulnerabilidades da posição estratégica portuguesa e numa vontade de não comprometer Portugal com um projecto que limitaria - e acabou por limitar - necessariamente o seu espaço de manobra político interno e externo.

O advento do I Governo Constitucional representou, de facto, uma mudança de paradigma, esse sim balizado pelo esforço de inserção na Europa, com a candidatura ao Conselho da Europa logo em Agosto de 1976 e a candidatura formal à adesão da CEE em Março de 1977.

Não deixa de ser irónico constatar que "a consolidação da Europa forte e unida como contra-peso necessário aos dois blocos actuais", que Melo Antunes defendia no discurso do MNE já em 76, tenha vindo a corresponder à doutrina subjacente à Estratégia de Lisboa que a presidência portuguesa levaria a UE a adoptar no ano 2000. Em narrativa, apenas, porque o "universalismo europeu" está hoje claramente em declinio, e eu - que teimo em ser de esquerda - não tenho pejo em dizer que esse declinio se deve, sobretudo, à incapacidade da esquerda. Dessa esquerda a que faltam homens pensantes, com fé no futuro e com capacidade e vontade de agir para transformar a sociedade à escala global, como foi o Ministro dos Negócios Estrangeiros Melo Antunes.


III. As relações com o Terceiro Mundo

O Luís já lembrou certeiramente os contornos principais do "terceiro-mundismo" de Melo Antunes, e acima de tudo o que ele não era: não se tratava nem de uma tentativa de inclusão de Portugal num qualquer bloco geo-político de países, nem de se assumir como intermediário económico entre os centros da economia global e as suas periferias.

Eu concordo com o elemento principal da análise do Luís a este respeito: o "terceiro-mundismo" de Melo Antunes representa, ao nível intelectual, o prolongamento natural da preocupação com o processo de descolonização português.

O problema desta abordagem é que o paradigma da descolonização não é - não foi - suficiente para dar substância a uma doutrina de "terceiro-mundismo"; e por isso Melo Antunes no discurso do MNE dedica várias páginas ao papel da bacia do Mediterraneo na conflitualidade mundial e à importância de Portugal investir na sua relação com o mundo árabe e o Norte de Africa, enquadrando-o numa linha de "aproximacão entre a Europa e o Terceiro Mundo". Tese semelhante à que haveria de inspirar, a nível europeu, o Processo de Barcelona, lançado em 1995 e hoje a marcar passo no quadro da recém-criada “União para o Mediterrâneo”.

O Luís explicou muito bem na sua intervenção que Melo Antunes "pretende afinal tirar partido do capital humano e do legado histórico do passado colonial a que puséramos fim, para dar a Portugal um valor acrescentado na relação entre o mundo desenvolvido e o Terceiro Mundo "justamente através da prossecução de um novo relacionamento com as nossas colónias";
Ora “o Terceiro Mundo" nao se restringia aos PALOPS, nem ao mundo árabe e sul-mediterrânico: por muito importantes - política e economicamente - que as relações pós-25 de Abril com as antigas colónias e/ou o Brasil pudessem ter sido, a falta de densidade das relações portuguesas com países como o Egipto, a Indonésia, ou a Índia - para dar alguns exemplos dos países importantes no campo terceiro-mundista e/ou não-alinhado - dificultava as aspirações a um papel de peso no diálogo com "o Terceiro Mundo".

Por outras palavras, relações privilegiadas com as antigas colónias não bastariam, não constituiriam nunca uma massa crítica suficiente, para recalibrar, de forma duradoura, a política externa portuguesa a favor de aquilo que Melo Antunes apontava como "a hipótese de podermos desempenhar nos próximos anos um papel importante no diálogo entre a Europa e o Terceiro Mundo".

Só a integração europeia e a participação numa política de desenvolvimento à escala continental, podia - e acabou por poder - dar relevância objectiva ao valor acrescentado de Portugal nas relações com o Terceiro Mundo. Também nesta área, o "momento Melo Antunes" representa uma transição necessária e bem-vinda, de um paradigma - o da descolonização - para outro: o da articulação do papel de Portugal no mundo, e no Terceiro Mundo em geral, através da construção de uma Europa com peso global.


Neste contexto, parece-me importante notar uma ligação que o Luis nao estabeleceu quando se referiu ao posicionamento de Melo Antunes face a Israel. Trata-se de reconhecer como foi instrumental no alinhamento com o Terceiro Mundo e o Movimento dos Não-Alinhados uma decisão assumida por Melo Antunes numa questão de tremenda importância simbólica: o voto português a favor - erradamente, a meu ver - da Resolução 3379, de Outubro de 1975, equiparando o sionismo ao racismo.

Uma posição não sem consequências, certamente, para o futuro do MNE cessante, o então Major Melo Antunes. Uma posição que relevara tambem dos fortes sentimentos de Melo Antunes em relação ao conflito do Médio Oriente, como demonstra o discurso final no MNE - afinal o cerebral Melo Antunes também se deixava influenciar pela emoção....

Quando o Luís sublinha que a posição de Melo Antunes, no plano dos princípios, se aproximava do actual consenso da Comunidade Internacional sobre a desejável coexistência de dois Estados, um israelita e outro palestiniano, não referiu - e é importante referir - que, em relação a Israel, Melo Antunes não quebrou a abordagem herdada do regime de antes de 25 de Abril e que assentava no não-reconhecimento do Estado de Israel; foi apenas em Maio de 1977, com o I Governo Constitucional, que Portugal reconheceu o Estado de Israel.


De passagem, é interessante sublinhar a diferença relativamente à China, com a qual Portugal continuava a não ter relações diplomáticas quando Melo Antunes deixou o MNE em Julho de 1976. No discurso final, depois de sublinhar que desde Janeiro de 1975 que o Governo português declarara publicamente querer estabelecer relações normais com a RP China, considerando a Formosa sua parte integrante, Melo Antunes revela que entretanto tinham sido desenvolvidas “diligências discretas e persistentes” nesse sentido e conclui “dissemo-nos já dispostos a aguardar com paciência pela decisão da outra parte”.

IV – Timor Leste

O Luis pediu-me que elabore sobre o posicionamento de Melo Antunes relativamente a Timor Leste, ele que era MNE quando ocorreu a invasão indonésia, a 7 de Dezembro de 1975.

Quem o conheceu sabe que Melo Antunes, um reflexivo/cerebral, raramente se mostrava efusivo sobre tema nenhum.

A nossa amizade começou quando ambos passamos a trabalhar no Palácio de Belem com o Presidente Ramalho Eanes, em 1983, e muito a crédito do fraternal relacionamento que o Ernesto mantinha com o chefe de gabinete que há anos o acompanhava, o António Franco - com quem eu passado algum tempo casei. Mas além da convivência regular, tive sobretudo o privilégio de conviver diariamente com Ernesto Melo Antunes durante vários meses do seu ultimo ano e meio de vida, em que ele e sua Mulher Maria José partilharam comigo o meu apartamento em Nova Iorque, procurando a cura para o mal que o havia de no-lo levar.

Nessa altura aconteceu finalmente a janela de oportunidade que há muito se esperava para Timor Leste: caiu Suharto, Portugal e a Indonésia decidiram abrir reciprocamente Secções de Interesse e, por sorte, eu fui designada para dirigir a nossa em Jacarta. Despertou do torpor da doenca um Melo Antunes vivamente interessado, quase excitado, a querer pormenores das negociacões: era mais que o amigo, era o homem politico a ajustar contas com a História.

Ele nunca tinha ultrapassado, mais do que as perfidias do aliado Kissinger, ter-se sentido enganado por Adam Malik, o MNE indonésio, naquele encontro de Novembro em Roma, a escassas semanas da invasão do território e depois de tanto esforço da nossa parte para conciliar os interesses de Portugal e da Indonésia. Recorde-se que a nossa posição oficial era então de que não nos oporiamos à incorporação na Indonésia de Timor Leste se isso fosse feito com respeito pelo direito a autodeterminação da população timorense por parte de Jacarta.

Timor era um tema penoso para Melo Antunes - uma outra dimensão das tragédias da colonização e da descolonização que ele vivera. Falava laconicamente, nem a ferros se tirava nada - a ferida era profunda e continuava aberta, teria porventura "de viver com ela até ao fim da vida", como disse a Manuela Cruzeiro sobre o trauma da guerra colonial. Morreu 20 dias antes do referendo que pôs fim à ocupação de Timor Leste.

Em 1975, como MNE, Melo Antunes tinha-se empenhado por conseguir para Timor Leste "uma solução pacifica e politica" – e cito-o no discurso final no MNE. Depois da invasão, levara de imediato a questão ao Conselho de Segurança e à Assembleia Geral da ONU e cortara relações diplomáticas com a Indonésia. Mas sentia que as "batalhas diplomaticas bastante complexas" pela internacionalização da causa tinham sido tolhidas não apenas pelas circunstâncias - os esforços prioritários para libertar “os 23 militares e cerca de uma centena de civis presos pela UDT e a Indonésia" - mas também por "interferências de certos grupos de pressão, favorecendo claramente o jogo da UDT e da Indonésia (...) que reduziram o nosso campo de manobra e foram um exemplo bem pouco edificante (e nalguns casos mesmo anti-patrióticos) (...) de interesses privados ou suspeitas alianças a sobrepor-se aos interesses do Estado".Importa incentivar alguém do mundo académico ou diplomático que, quanto antes, desbrave os arquivos do MNE para procurar identificar quem e por que forma agiram esses agentes anti-patrióticos.

Quero, para terminar este capítulo, deixar aqui testemunho de que, na ultima vez em que o vi, em finais de Janeiro de 1999, quando fui despedir-me em vésperas de arrancar para Jacarta, Melo Antunes me disse repentinamente, de sopetão: "Foi tambem uma reacção de impotência, a de cortarmos relações, quando mais do que nunca precisaríamos de dialogar com a Indonésia e de melhor a conhecer. Quantas mais tragédias se poderiam ter evitado!”.

Parti para Jacarta com estas palavras a martelar-me na cabeca, gravadas para sempre. Por mais chacinas que os falcões locais ensaiassem para nos desviar de assinar o Acordo que abriria caminho ao referendo libertador de Agosto, aquelas palavras ordenavam frieza e contenção: "não vamos fazer o jogo deles, não vamos, em protesto, abandonar a mesa das negociações". Tenho a certeza de que esta foi uma prevenção que nos impediu de cometer erros de avaliação que podiam ter comprometido a realização do referendo libertador de Timor Leste.


Conclusão

Julgo que Ernesto Melo Antunes concordaria hoje que o princípio que deve guiar a acção externa da União Europeia - e portanto também a de Portugal - é a identidade entre os interesses europeus e os valores europeus. Nunca os primeiros podem ser separados dos segundos.

Sacudida a herança colonial com a independência de Angola, Melo Antunes foi o primeiro Ministro dos Negócios Estrangeiros da democracia portuguesa a ter a oportunidade e o espaço de manobra para repensar de raíz o papel de Portugal no mundo.

A opção programática - ou "matriz ideológica", como o Luís Castro Mendes lhe chamou – que Melo Antunes tinha na cabeça e propôs era clara: a construção do socialismo democrático em Portugal era para ele inseparável de um papel interventivo, voluntarista e idealista na esfera internacional. Talvez "engajado", em português PALOP, seja uma boa palavra para representar o "momento Melo Antunes" na política externa portuguesa.

Termino reiterando a minha admiração por um homem lúcido, de carácter, que não tinha medo da dimensão política da política externa e que percebia que Abril ficaria incompleto enquanto Portugal não voltasse a estar na família das nações, na Europa, do lado das forças do progresso e da emancipação do género humano.

O tributo ao Revolucionario e ao Homem de Estado fica aqui. A saudade do Amigo, essa, vai continuar comigo, incurável.


Intervenção que fiz hoje na Conferência Liberdade e Coerência Cívica - o exemplo de Ernesto Melo Antunes, na Fundação Gulbenkian, comentando uma comunicação do embaixador Luis Castro Mendes no painel "Política Internacional: diplomacia, relações internacionais e diálogo entre os povos"

12 de novembro de 2009

Justiça? Arquive-se!! 

por Ana Gomes


"O processo Face Oculta volta a concentrar as atenções dos portugueses no cancro que é a corrupção. Não se trata apenas de um empresário desonesto acusado de corromper um ou outro político ou funcionário, mas de todo um sistema montado para apropriação de circuitos de decisão do Estado a fim de favorecer o enriquecimento privado à custa dos contribuintes. E o que mais choca é que os supostos guardiões da coisa pública - políticos, gestores de empresas públicas, altos funcionários - surgem não apenas como corrompidos, mas como agentes activos no processo de corrupção e controle do Estado.

A promiscuidade entre negócios e política, entre dinheiro e serviço público, não só vai cobrindo de lama a imagem da nossa República, como contribui para o afastamento dos cidadãos em relação à política. Que fazer? Do ponto do aperfeiçoamento das leis, urge adoptar a proposta do ex-ministro socialista João Cravinho no sentido de criminalizar o enriquecimento ilícito, cumprindo as obrigações que resultam da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida), que Portugal ratificou em 2007. Muito critiquei - e me entristeceu - a forma desencorajante como o PS, no governo e na AR, lidou com estas propostas no mandato legislativo passado.

Mas todos sabemos que leis não bastam e que o melhor enquadramento jurídico do mundo pode soçobrar nas areias movediças de um sistema de justiça minado pela falta de meios, pela incompetência e pela ânsia de não desagradar ao poder. E só assim se explica que investigações mediatizadas como as operações "Furacão" "Portucale", "Submarinos", "Freeport", BPN e BPP, etc.. tenham produzido tanto fumo e tão pouco fogo, sem ninguém até hoje responsabilizado e ainda menos punido.

Diferente é o que se passa em Itália, país com a vida política há muito ferida de morte pela corrupção. Berlusconi não passa da última e mais obscena encarnação do político sem escrúpulos que utiliza o poder em proveito próprio. Já nos anos 90 a justiça italiana tinha tido a coragem e a competência necessárias para expor uma vasta rede de corrupção ligada à máfia que não deixou nenhum partido político incólume. O próprio fenómeno Berlusconi é uma reacção do eleitorado cínico e desiludido em relação à podridão omnipresente no sistema político italiano. Mas tem sido a justiça italiana quem, resistindo corajosamente a todos os ataques infames, insiste em aplicar a lei ao quase-intocável Primeiro-ministro.

E se dúvidas houvesse de que a justiça é a ilha de decência que resta na vida pública italiana, a condenação recente, por parte de um tribunal de Milão, de 23 agentes americanos da CIA (e dois italianos) por envolvimento no rapto e "extraordinary rendition" de Abu Omar para o Egipto, demonstra que os procuradores e os juízes em Itália não têm medo de nada. Fez-se assim justiça num caso em que a CIA de Bush decidiu utilizar o território de um país aliado para raptar, com a ajuda dos serviços secretos nacionais, um indivíduo suspeito de terrorismo, levando-o para o Egipto onde ele podia ser torturado mais à vontade...

O contraste com Portugal é acabrunhante: a Procuradoria-geral da República (PGR) decidiu em Outubro engavetar a investigação sobre as "extraordinary renditions", ignorando um sem-número de preocupantes indícios e dados contraditórios que a sua própria pesquisa permitira recolher. O apurado até aqui não prova inequivocamente que a CIA usou Portugal nos circuitos da tortura entre as "prisões secretas" e Guantánamo operadas pela Administração Bush, nem se o fez com conhecimento, ou à revelia, das autoridades portuguesas. Mas demonstra que valia a pena continuar a investigar. Se se quisesse apurar a verdade, claro.

Ao arquivar a investigação nesta fase, a PGR demonstra não só não ter interesse na descoberta da verdade, mas também não atribuir importância ao respeito pela legalidade estando em causa direitos humanos e, sobretudo, o próprio funcionamento do Estado de direito em Portugal.

Com uma Procuradoria assim, com demasiadas demonstrações de ser incapaz de levar importantes processos com implicações políticas até ao fim, e em tempo útil - não há melhor legislação anti-corrupção que nos valha.


Artigo publicado no JORNAL DE LEIRIA de hoje, 12.11.2009

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