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27 de novembro de 2010

Economia social de mercado 

Por Vital Moreira

O Tratado de Lisboa não mudou somente a estrutura institucional da União Europeia. Mexeu também nos objetivos e nas políticas. Neste aspeto, uma das alterações mais significativas foi a introdução da noção de "economia social de mercado", para caracterizar a ordem económica da União. Ora, as mudanças conceptuais podem ser mais importantes do que as alterações institucionais.

A propósito dos 20 anos do lançamento da estratégia do "mercado único" (1987-1992), sob a égide de Jacques Delors, com o objetivo de unificar efetivamente o "mercado comum" - conceito-chave na construção inicial da Comunidade Económica Europeia (CEE) -, a Comissão Europeia acaba de lançar a ideia de um "Ato do mercado único", com um duplo objetivo: primeiro, dar um novo impulso à conclusão do mercado interno sem fronteiras nacionais; segundo, aprofundar a dimensão social da integração económica europeia. Trata-se de um vasto conjunto de iniciativas legislativas ou políticas, a serem tomadas nos próximos dois anos. As propostas da Comissão baseiam-se em grande parte do Relatório de Mario Monti (antigo comissário europeu da concorrência), que defende justamente a revitalização do mercado interno, tendo em conta o novo enquadramento do Tratado de Lisboa.

Quanto ao aprofundamento do mercado único, importa começar por sublinhar que mais de cinco décadas sobre o início da integração económica europeia e duas décadas após o lançamento do mercado interno, este continua um projeto inacabado, por força de obstáculos que permanecem e de peças que faltam para completar o mercado sem fronteiras internas e sem peias à liberdade de circulação de produtos, de prestação de serviços e de movimentação dos fatores de produção (capital e trabalho) dentro do espaço da União.

Entre os muitos casos enunciados na Comunicação da Comissão, citem-se três exemplos mais flagrantes. O primeiro é a falta de uma patente única europeia, capaz de substituir os 27 sistemas nacionais. Não se vê como é possível falar de um genuíno mercado interno sem um sistema unificado e centralizado de patentes, obrigando as empresas e instituições de investigação aplicada a patentear as suas invenções em cada um dos Estados-membros - com os inerentes encargos financeiros e administrativos - ou a desistirem de as proteger numa parte deles. Outro obstáculo diz respeito à falta de harmonização fiscal quanto ao imposto sobre as empresas. Embora a Comissão tenha prescindido de tentar um mínimo de harmonização das taxas do imposto, pelo menos defende fortemente a harmonização das suas bases de incidência, o que já não é pouco. Outro travão na integração económica tem a ver com a falta de fluidez na circulação de trabalhadores e de prestadores de serviços, desde logo por motivo de discrepâncias no sistema de certificação profissional. Ora, enquanto não houver um mercado de trabalho e de serviços genuinamente integrado, onde os trabalhadores e profissionais possam mudar-se sem dificuldades para outros países, não pode dar-se por concluído o mercado único.

No que respeita à dimensão social do mercado interno, também são numerosas as propostas da Comissão Europeia. Correndo o risco de alguma arbitrariedade na escolha, merecem relevo especial três iniciativas.

A primeira consiste num enquadramento legislativo europeu para os chamados "serviços de interesse económico geral" - onde se contam o fornecimento de água, de energia, de telecomunicações, de correios, de transportes públicos, etc. -, que foram objeto de liberalização e, muitas vezes, de privatização nos últimos 20 anos, sem que tivesse sido estabelecido um quadro europeu sobre as respetivas "obrigações de serviço público" ("serviço universal", etc.) e sobre o seu financiamento. A prioridade dada à liberalização desses serviços por parte da União Europeia, a fim de expandir o mercado interno, foi um dos motivos de crítica ao enviesamento neoliberal da União na construção do mercado único.

Não menos importante é o compromisso da Comissão de fazer conciliar as liberdades fundamentais do mercado interno com a liberdade de ação coletiva dos trabalhadores. De facto, numa orientação jurisprudencial ostensivamente favorável às primeiras, nomeadamente a liberdade de prestação de serviços e a liberdade de estabelecimento, o Tribunal de Justiça da União deu-lhes preferência contra o exercício da liberdade sindical e do direito à greve. Essas decisões, aliás proferidas antes de a Carta de Direitos Fundamentais da União ter adquirido força jurídica, foram justamente acusadas de ignorar a necessária compatibilização do mercado interno com os direitos dos trabalhadores.

Uma terceira medida digna de aplauso especial diz respeito ao enquadramento do chamado "terceiro setor", incluindo um estatuto europeu para as fundações, cooperativas e mutualidades, cujo peso económico e função social é incontornável.

Estas e muitas outras ideias mostram que o Tratado de Lisboa é para ser implementado, incluindo o conceito de economia social de mercado. Como disse o citado Mario Monti, apesar de o mercado interno não gozar hoje de grandes simpatias na opinião pública europeia, por causa das atuais dificuldades económicas e sociais, nunca foi tão necessária a sua defesa e o seu aprofundamento, justamente para responder à crise económica e social e para assegurar a competitividade externa da economia europeia e a sustentabilidade do modelo social europeu.

O mercado interno está obviamente na base da integração europeia. Mas, sem a necessária coesão social e territorial, a simples unificação dos mercados pode ser uma receita para a frustração com a União Europeia. É preciso levar a sério a noção de "economia social de mercado", agora no cerne da ordem económico-constitucional da União Europeia.

(Público, terça-feira, 23 de Novembro de 2010)

17 de novembro de 2010

Fúteis e funestas 

Por Vital Moreira

Depois de o PSD ter anunciado repetidamente a sua intenção de abrir uma crise política algures no próximo ano, com o objectivo de derrubar o governo do PS e interromper a actual legislatura, não têm faltado as mais imaginosas ideias por parte de outros quadrantes políticos, incluindo dentro do PS, para alterar a actual fórmula governativa, sem recurso a eleições antecipadas e sem afastar o PS do Governo. Sendo todas manifestamente irrealistas ou descabidas no actual quadro político, todas contribuem porém para alimentar um clima de incerteza e instabilidade política, que só pode perturbar a consolidação orçamental em curso e os interesses financeiros do país.

Analisemos as diversas propostas por ordem da sua recente aparição.

A primeira fórmula veio do líder do CSD, defendendo um suposto "governo de salvação nacional" no actual quadro parlamentar, na base de uma coligação PS-PSD-CDS.

Uma lucubração política como esta não tem um mínimo de justificação nem de praticabilidade, não passando de uma "prova de vida" da fértil imaginação política de Paulo Portas. Nem Portugal está a passar por uma catástrofe que justificasse colocar entre parêntesis as enormes diferenças políticas entre os três partidos, nem uma tal coligação estaria em condições de levar a cabo a mais decisiva das tarefas políticas actuais, que é cumprir as metas do défice orçamental nos próximos dois anos, tão distintas são as posições quanto ao modo de a realizar. Não se vê como é que o CDS, que descartou qualquer possibilidade de viabilizar o orçamento, nem o PSD, que só pretendeu tornar mais difícil a equação orçamental, poderiam compartilhar de um programa comum de disciplina orçamental

A segunda hipótese foi veiculada pelo PÚBLICO, que há dias dizia haver entre os socialistas (embora sem citar nomes...) quem admita um novo governo do PS sem Sócrates, que pudesse beneficiar do apoio parlamentar do PSD, numa espécie de governo de bloco central apócrifo a cargo do PS.

Mesmo que tenha autor, a hipótese carece de um mínimo de sentido. Primeiro, seria necessário que Sócrates aceitasse ser imolado em benefício de tal coligação imperfeita. Segundo, quem escolhe a solução governativa em caso de interrupção governamental é o Presidente da República e não o partido que tinha o Governo, não sendo garantido que Cavaco Silva aceitasse viabilizar tal "negócio". Terceiro, é evidente que o PSD não se conformaria com o papel de "pau-de-cabeleira" de um novo governo PS, a não ser para fazer o "trabalho sujo" em seu proveito. Quarto, como mostrou o Governo Santana Lopes, um primeiro-ministro que não tenha uma legitimidade eleitoral directa padece de um défice de legitimidade e de autoridade política. Os que no PS pensam em "tirar o tapete" a Sócrates, "fazem a cama" ao governo do PS. O PSD agradece.

A terceira alternativa de governo proveio do próprio ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, que veio defender explicitamente um governo de coligação - que na nossa geografia política só poderia ser entre o PS e o PSD -, de modo a enfrentar os graves problemas orçamentais e económicos que a crise internacional trouxe ao país. Embora a oportunidade para a defender seja questionável, não há surpresa nesta posição, tendo em conta as posições do autor a este respeito desde há muito.

Todavia, uma coligação de governo entre o PS e o PSD é tão improvável e tão problemática hoje como era antes da crise. Primeiro, a deriva neoliberal de Passos Coelho dificulta enormemente qualquer entendimento com o PS sobre o modo de resolver as dificuldades orçamentais e económicas do país. Segundo, uma coligação de governo entre os dois partidos centrais do espectro partidário só alimentaria a contestação social e política das medidas de austeridade por parte da esquerda radical. Terceiro, não se vê como poderia haver uma tal coligação sem novas eleições e sem mudança de liderança num dos partidos em causa (ou em ambos). Quarto, como mostrou a experiência de governo de bloco central de 1983-85, quem depois paga politicamente o seu preço político é o PS...

O que há de comum entre estas diferentes propostas é que todas elas implicam que o PS aceitasse compartilhar o poder com a direita e, expressa ou implicitamente, que Sócrates aceitasse abandonar a chefia do Governo, a favor de outro primeiro-ministro, socialista ou independente. Na verdade, o PS passaria a ter de ceder à direita no que respeita às políticas a seguir, a troco do seu apoio, sem porém poder descartar o principal peso da responsabilidade política pelas mesmas, por ser o partido que ganhou as eleições e continuar a dar a marca ao Governo. Não se vê como é que qualquer das referidas hipóteses governativas possa ser aceite pelo PS, tal a assimetria entre poder e responsabilidade, nem aliás pelo PSD, que ambiciona ganhar as próximas eleições legislativas e que não pode estar interessado em se comprometer formalmente com o PS antes disso, sob pena de deixar de ser visto como verdadeira alternativa governativa.

Contudo, não sendo politicamente viáveis, as referidas propostas governativas têm porém o inevitável efeito de gerar dúvidas sobre a estabilidade governativa e sobre a capacidade política para levar a cabo o exigentíssimo programa de disciplina orçamental, que só uma vontade política forte pode realizar. Especular sobre cenários de mudança governativa a curto prazo só pode alimentar as ilusões das forças políticas que ainda apostam na contestação social e política das medidas de austeridade para fazer descarrilar o processo de consolidação orçamental.

Para além de fúteis como exercícios políticos, elas são também assaz funestas para os interesses do país na actual situação.

(Público, 16 de Novembro de 2010)

13 de novembro de 2010

A ameaça da crise 

Por Vital Moreira

Logo após o recente acordo com o PS para viabilizar o orçamento para 2011, o PSD anunciava a sua intenção de desencadear uma crise política algures no próximo ano, depois das eleições presidenciais. A ameaça voltou a ser feita na discussão parlamentar do orçamento, tendo depois disso sido reiterada por vários dirigentes laranjas, segundo fizeram eco os semanários do fim de semana passado.

Para quem seguiu o itinerário do PSD desde o verão, esta obsessão pela abertura de uma crise política não surpreende. Ela estava inscrita no discurso de Passos Coelho em Agosto passado, quando colocou condições manifestamente impossíveis para poder viabilizar o orçamento. Face às advertências internacionais e à pressão dos meios empresariais e políticos (incluindo o Presidente da República), o PSD teve de recuar e "vender" a abstenção por muito menos do que tinha exigido. Mesmo assim, conseguiu impor suficientes condições, sobretudo no corte da receita, para tornar muito mais difícil o cumprimento das metas do défice.

Como se isso não bastasse, o PSD lançou gasolina no fogo, reavivando a perspetiva de crise política. Fingindo viabilizar o orçamento, fez logo questão de se dissociar de qualquer compromisso político com ele e de pôr em causa as condições políticas da sua execução, colocando Portugal à mercê de dura penalização pelos mercados da dívida pública. Se os mercados do crédito já não podiam ter ficado satisfeitos com as dúvidas sobre a exequibilidade do orçamento, menos ainda podem ter ficado com o anúncio de uma crise política a curto prazo, o que só pode acrescentar incerteza ao receio.

Claramente o PSD convenceu-se que depois do fraco apoio recebido pelo seu novo credo neoliberal (como mostraram as reações ao seu projeto de revisão constitucional), o melhor meio de conseguir os seus objetivos seria por via de uma crise orçamental, que obrigasse à vinda do FMI e à imposição por via externa de um programa assassino de redução da despesa pública e de corte nos serviços públicos, incluindo na saúde, na educação e na proteção social, ou seja os três pilares do Estado social. Com a vantagem de que, em tais circunstâncias, tal poderia ser apresentado ao país, não como programa próprio, mas sim como imposição externa. A receita liberal apareceria como cura regeneradora para o desastre do "Estado providência", por culpa dos seus próprios defensores.

Não se pode negar imaginação e engenho a este plano. O facto de ele sacrificar os interesses do país aos do PSD pouco importa. E não basta denunciar a lógica perversa dessa estratégia, como tem feito o PS, para impedir a sua concretização. É preciso contrariá-la eficazmente. Sócrates encontra-se numa curva apertada do seu percurso governativo. A situação não se compadece com contemporizações nem com tergiversações. Na iminência de uma tempestade anunciada importa tomar as medidas para fugir dela ou para a enfrentar com êxito.

A primeira medida consiste em renovar a equipa governamental, que carece de sangue novo e de um novo élan para este novo ciclo político. Uma das razões da atual fragilização política do governo - e também das maiores dificuldades com os mercados da dívida pública - foi a derrapagem da execução orçamental no corrente ano. Nada aconselha partir para uma nova fase, muito mais exigente, de rigor e de austeridade orçamental com a mesma equipa que "não ficou bem no retrato" da execução orçamental do corrente ano, ficando aquém das metas, quando importava tê-las superado. Importa dar um sinal político forte de que não há riscos de reincidência e que os elos fracos são substituídos.

A remodelação governamental não deve esperar para depois das eleições presidenciais, como indicava a lógica política até agora. Deve ser antecipada, tal como fez Rodríguez Zapatero em Espanha. O cumprimento do orçamento de 2011 começa agora mesmo, logo depois da sua aprovação. Há que organizar com antecedência os planos de pormenor. Os novos ministros não devem entrar na carruagem já com ela em movimento e com a rota traçada pelos antecessores.

Em segundo lugar, não se pode falhar na execução do orçamento e das metas do défice orçamental, preparando-a com a folga suficiente para evitar surpresas. Dadas as imposições do PSD, trata-se de uma tarefa ainda mais árdua do que já de si seria. Mas o Governo não pode deixar alimentar a mínima dúvida sobre a sua determinação em consegui-la. A alternativa é entre o cumprimento do orçamento e o desastre financeiro, com o disparo dos juros da dívida pública para níveis gregos, a "secagem" do acesso ao crédito por parte dos bancos e das empresas e a inevitável chamada do FMI. Não basta fixar metas, importa montar os instrumentos para a sua concretização. Não faz sentido, por exemplo, reduzir as transferências orçamentais para as empresas públicas e limitar o crescimento do seu endividamento, se depois não se proporcionar um aumento das suas receitas próprias ou a redução das suas despesas.

Por último, mas não menos importante, urge avançar com uma perspetiva positiva para o período pós-crise, capaz de reconciliar a necessária disciplina das contas públicas com o crescimento económico, a criação de emprego e a reafirmação do Estado social. Sem esperança de que os sacrifícios são temporários e valem a pena, a austeridade é uma provação socialmente insuportável e politicamente insustentável.

É evidente que o interesse político do PS coincide com o melhor interesse do país. Só o sucesso na consolidação orçamental pode assegurar a superação da crise da dívida e também a sobrevivência do Governo, retirando pretexto para qualquer tentação presidencial de antecipação de eleições e tirando o tapete à estratégia laranja de jogar no quanto-pior-melhor para derrubar Sócrates. Como mostram os casos grego e espanhol, só a clareza de objetivos e a determinação política compensam.

(Público, 9 de Novembro de 2010)

A provação e o teste 

Por Vital Moreira

Menos de um ano depois da sua entrada em vigor, o Tratado de Lisboa, que procedeu à última grande revisão "constitucional" da União Europeia (UE), vai ser ele mesmo revisto. Assim foi decidido na reunião do Conselho Europeu do fim-de-semana passado. "Revisão pontual", asseveram-nos. A principal dificuldade vai ser mesmo impedir que a revisão extravase o propósito que a justifica. A bem da estabilidade institucional da União.

Era de esperar que o Tratado de Lisboa, pelas dificuldades do seu parto e pela sua extensão e profundidade, permanecesse sem alterações de fundo durante muitos anos. Infelizmente, não se puderam antecipar as sequelas da grande crise financeira e económica de 2008-2009, que, por via da crise orçamental grega, ameaçou a própria estabilidade do euro, revelando a falta de mecanismos de resposta da UE a situações como essa.

A verdade é que o mecanismo de salvaguarda financeiro criado a título transitório para a Grécia não encontra suficiente base constitucional nos tratados da UE, não podendo assim ser substituído por um mecanismo permanente com sólida base legal, depois da caducidade daquele dentro de três anos. O Tribunal Constitucional Alemão, em especial, não deixa dúvidas sobre o risco de um tal mecanismo ser julgado incompatível com os tratados. Por conseguinte, se queremos institucionalizar essa solução, que é essencial para defender o euro contra eventuais futuras situações como a grega, temos de aceitar a proposta de correcção pontual dos tratados.

Tal revisão deve ser feita de forma expedita, dispensando a reunião de uma "convenção europeia", tal como o próprio Tratado da UE prevê para revisões de pequeno alcance. Preferivelmente, deve mesmo dispensar-se um tratado autónomo de revisão, aproveitando o próximo tratado de adesão da Croácia para "contrabandear" essa alteração.

De resto, deve recordar-se que já tinha sido acordado mexer no Tratado de Lisboa aquando do segundo referendo irlandês, abrindo à Irlanda (e à República Checa) a possibilidade de fazerem opting out em relação à Carta de Direitos Fundamentais da UE, cuja concretização já tinha sido deixada para a oportunidade do próximo tratado de adesão.

Se se não pode negar à Alemanha o interesse em ultrapassar as objecções do seu Tribunal Constitucional quanto ao mecanismo de socorro financeiro, já não existe razão nenhuma para concordar com os alemães na sua proposta de acrescentar às sanções por violação das regras de estabilidade financeira a privação do direito de voto no Conselho aos Estados que incorram nessa situação. Sem dívida que há que reforçar as sanções por incumprimento dos limites ao défice e ao endividamento público, que põem em causa a estabilidade da moeda única. Mas parece francamente desajustado a introdução de sanções dessa natureza. As sanções já previstas nos tratados, incluindo um depósito obrigatório e a aplicação de multas, podem ser suficientemente punitivas, se aplicadas a tempo e de forma determinada.

De resto, é fácil imaginar que a instituição de tais sanções tornaria improvável a ratificação nacional de qualquer tratado que as previsse. Não se vê como é que os governos poderiam convencer os seus parlamentos nacionais e as respectivas opiniões públicas a aceitar sanções tão gravosas, sobretudo no caso dos países mais susceptíveis de virem a ser vítimas delas. Por conseguinte, a previsão de tais sanções seria um verdadeiro "tiro no pé", não tendo nenhumas condições para vingar.

Dito isto, convém dizer aos antieuropeístas - que obviamente estão longe de morrer de amores pelo Tratado de Lisboa e que rejubilam com todas as dificuldades que possam surgir - que esta decisão de encetar uma revisão pontual não se vai traduzir numa "corrida à revisão", muito menos numa descaracterização dos tratados. É certo que não faltarão tentativas para aproveitar esta oportunidade para tentar lançar na agenda uma série vasta de propostas de revisão, incluindo algumas bem-intencionadas. Importa porém assegurar que não sejam bem sucedidas.

Em primeiro lugar, bem se sabe que uma revisão sem estritos limites à partida significaria reabrir ingloriamente todas as controvérsias institucionais da União que precederem o Tratado de Lisboa, restabelecendo um clima de incerteza institucional. Em segundo lugar, importa afirmar sem perigo de desmentido que o Tratado de Lisboa constituiu um notável avanço na integração europeia e na democracia europeia. Há um antes e um depois do Tratado de Lisboa. Um ano depois da sua entrada em vigor, isso é notório designadamente no campo da política externa comum da União, com a criação do "serviço de acção externa", no enorme alargamento de poderes do Parlamento Europeu, reforçando a legitimidade democrática da União, na atribuição de força jurídica efectiva à Carta de Direitos Fundamentais da União e na adesão à Convenção Europeia de Direitos Humanos (em vias de ser decidida), na instituição do mecanismo da "iniciativa dos cidadãos", conferindo um novo direito de cidadania europeia, no reforço dos instrumentos de governo económico, de forma a assegurar uma maior integração das políticas financeiras e económicas europeias.

Sim, temos de aceitar que nem o Tratado de Lisboa escapa incólume ao impacto da crise financeira e económica dos últimos três anos. Mas o que surpreende é que a União que ele reformou tenha resistido e reagido tão bem como o fez aos devastadores efeitos da grande crise. Os que nos dois últimos anos previram o falhanço do euro, senão da própria UE, foram desmentidos. A UE enfrentou a maior provação da sua história - e passou o teste. Assim também o Tratado de Lisboa.

(Público, 2 de Novembro de 2010)

Europa social 

Por Vital Moreira

Na semana passada, o Parlamento Europeu aprovou, por uma maioria mais ampla do que seria de esperar, duas posições de grande significado para a realização do modelo social europeu, nomeadamente o alargamento da licença de maternidade (e a instituição de uma licença de paternidade) e a imprescindibilidade do rendimento mínimo na luta contra a pobreza. Embora sendo votações com diverso valor - no primeiro caso, está em causa uma proposta legislativa; no segundo caso, uma resolução política -, não é lícito desvalorizar a sua importância, especialmente num momento em que o foco na disciplina das finanças públicas tende a fazer desprezar as políticas sociais.

Ora, do que se trata é efetivamente de emprestar mais conteúdo ao chamado modelo social europeu, estabelecendo parâmetros mínimos de proteção social a nível da UE, em duas áreas cruciais, como são a licença de maternidade (e de paternidade) e o rendimento mínimo garantido, superando o défice de proteção ainda existente em vários países europeus. Que sentido faz falar em modelo social europeu, se estes elementos essenciais de qualquer modelo de proteção social não beneficiarem todos os europeus, num nível razoável?

É evidente que os mecanismos de proteção social não podem ser uniformizados por alto, mas nada justifica que não exista um mínimo condigno garantido a nível de todos os Estados-membros, tendo obviamente em conta as diferenças de poder de compra a nível nacional e as constrições financeiras de cada país.

Em segundo lugar, a harmonização, ainda que mínima, dos custos da proteção social constitui um passo em frente na própria ideia de "mercado interno" da UE, sem fronteiras nacionais. De facto, não se vê como é que se pode falar de uma genuíno mercado integrado, sem a diminuição das diferenças de proteção dos trabalhadores em matéria de licença de maternidade (e paternidade) e de rendimento mínimo garantido. As assimetrias existentes traduzem-se num autêntico "dumping social" por parte dos países mais recuados, dando uma vantagem ilegítima às suas economias no âmbito do mercado único europeu.

Tudo o que contribua para atenuar as divergências nos custos globais do trabalho ajuda a constituir um "level playing field" nas relações económicas, que é condição de um verdadeiro mercado interno. A falta ou défice de proteção social do trabalho não podem constituir um fator de competitividade no seio da economia europeia integrada. Para dumping social já basta o das chamadas economias emergentes, a começar pela China.

A terceira virtude das referidas propostas aprovadas pelo Parlamento Europeu tem a ver diretamente com a mobilidade social dentro do espaço da União. Desde o início da integração económica europeia há mais de 50 anos está reconhecida a liberdade de circulação de trabalhadores entre todos os Estados-membros, a par da liberdade de circulação de mercadorias e de capitais e da prestação de serviços, bem como da liberdade de estabelecimento em todo o espaço comunitário. Todavia, enquanto a liberdade de circulação de mercadorias e de capitais, bem como a liberdade de estabelecimento, não conhecem dificuldades materiais significativas, o mesmo não sucede com a circulação e fixação de trabalhadores. Desconhecimento das línguas, dificuldades familiares, custos de viagem e de instalação contam-se entre as restrições reais à mobilidade das pessoas. Mas entre os fatores adversos inclui-se também seguramente o défice de harmonização da proteção social do trabalho (e dos que o não têm), incluindo, por exemplo, a proteção da maternidade/paternidade e o rendimento mínimo assegurado.

Por isso, todos os progressos na harmonização da proteção social do trabalho e na luta contra a pobreza constituem passos em frente na fluidez da mobilidade pessoal, especialmente laboral, na Europa e na criação de um verdadeiro mercado de trabalho integrado, que facilite a deslocação dos trabalhadores das regiões onde o emprego falta para aquelas onde os postos de trabalho disponíveis excedem a procura (e são milhões).

É evidente que no mundo globalizado em que vivemos - e que não tem regresso - e face à agressiva competitividade das novas potências económicas emergentes - caracterizadas por baixos salários e reduzidos níveis de proteção social e ambiental - a União Europeia tem de cuidar da sua própria competitividade económica, sob pena de não poder manter níveis razoáveis de crescimento e de emprego, que são condições imprescindíveis da sustentabilidade do próprio modelo social europeu. Por isso, todas as medidas que impliquem aumento, mesmo indireto, dos custos da economia devem ser objeto de uma cuidada avaliação dos seus impactos sobre a competitividade europeia global, sob pena de perda de mercado externos, de deslocalização das empresas europeias e de redução do investimento estrangeiro na economia europeia.

Passou definitivamente o tempo em que um elevado crescimento económico e um quase pleno emprego permitiam sustentar contínuos progressos na proteção social. Agora todos os passos terão de ser medidos à luz do seu impacto económico e financeiro. Mas nada justifica que se decrete o congelamento da harmonização relativa dos padrões europeus de proteção social em níveis condizentes com as conquistas sociais do século passado e com um renovado impulso no crescimento da economia europeia.

Numa União Europeia digna do seu nome não pode haver uma enorme assimetria entre a crescente integração económica e financeira (agora estendida ao governo da economia) e o défice de integração social. A Europa social deve acompanhar a Europa económica.

(Público, 26 de Outubro de 2010)

Uma espécie de Scut 

Por Vital Moreira

O setor público dos transportes é dos que mais pesam no défice global do Estado e no seu endividamento. Mesmo não contando diretamente para o défice orçamental, ele deveria ser prioritário no esforço de consolidação das finanças públicas. Não parece ser o caso, infelizmente.

Não há ninguém que não fique estarrecido com a dimensão do défice das empresas públicas de transportes terrestres - setor ferroviário e transportes urbanos de Lisboa e do Porto - e pelo crescimento do seu endividamento. Em vários casos as suas despesas de exploração ultrapassam muito as receitas correntes. Em alguns casos o que os utentes pagam equivale a menos de metade do custo real de cada viagem. O metro do Porto sobressai neste panorama.

Custa a entender como é que os habituais partidos e comentadores que mais zelam pelo rigor financeiro das obras públicas e pelo princípio do utilizador-pagador tenham metodicamente silenciado este sorvedouro escandaloso de dinheiros públicos, enquanto diabolizam o novo aeroporto de Lisboa (que não custará nada às finanças públicas) e o TGV para Madrid (que custa uma percentagem ínfima do respetivo investimento).

O problema dos transportes urbanos de Lisboa e do Porto é particularmente grave porque, embora se trate de um serviço de âmbito local, é gerido por empresas do Estado, sem que os municípios beneficiários tenham de suportar os seus encargos, ao contrário do que sucede nos demais municípios. Trata-se de uma enorme injustiça territorial, visto que os contribuintes do resto do país, que têm de pagar os transportes urbanos dos seus municípios, têm também de subvencionar maciçamente os das duas principais cidades. Não tem de ser assim, nem deve ser assim.

São conhecidas as razões do descalabro financeiro do setor público de transportes. Tarifas degradadas, artificialmente subfixadas por razões eleitoralistas, falta de definição das obrigações de serviço público e do montante da respetiva compensação orçamental, manutenção de alguns serviços injustificáveis, ineficiência na gestão. A questão principal está no facto de todos pagarem aquilo de que alguns beneficiam, assim anestesiando o peso dos custos e maximizando o poder negocial dos beneficiários.

É evidente que os transportes públicos têm uma importante vertente de serviço público, que não deve ser suportada pelos utentes mas sim pela coletividade nacional ou local, conforme os casos. Há linhas de transporte e horários que têm de ser mantidos, ainda que deficitários, pelo serviço sem alternativa que prestam. Mas essas obrigações de serviço público, bem como o respetivo financiamento, devem ser devidamente justificados e contabilizados num contrato de serviço público. Fora isso, não existe nenhuma razão para manter as tarifas de transporte público muito abaixo do respetivo custo, num injustificável sistema de Scut parcial.

Nem se diga que o "dumping" nas tarifas de transporte é o preço a pagar pela necessidade de lutar contra a invasão das cidades pelos automóveis. Esse objetivo deve ser conseguido por outros meios, designadamente encarecendo o transporte rodoviário, interiorizando os custos de CO2, aumentando as taxas de estacionamento urbano, acabando com o estacionamento gratuito nos serviços públicos, criando taxas de circulação urbana. Não há nenhuma razão para que o controlo do automóvel nas cidades tenha de ser feito por via de subsidiação maciça do transporte público, fora das obrigações de serviço público.

Urge também municipalizar os transportes urbanos de Lisboa e do Porto, cuja responsabilidade estadual atenta flagrantemente contra o princípio constitucional da subsidiariedade na prestação de serviços públicos. A manutenção dos transportes coletivos urbanos deve incumbir às coletividades locais (municipais ou intermunicipais, conforme os casos), sem exceção. Não há nenhuma razão para que o resto do país subsidie Lisboa e Porto. Há dias, o antigo ministro Murteira Nabo lembrava que há quase três décadas foi criada legalmente uma taxa municipal de transportes para financiar a vertente social dos transportes urbanos, mas que tal figura nunca foi implementada. Na verdade, tal não faz falta quando o orçamento do Estado acaba por pagar a conta...

Por último, há que encarar a hipótese de concessão da exploração do setor público dos transportes, salvo da infraestrutura ferroviária. Nenhum dogma impõe a sua gestão pública, só por terem uma vertente de serviço público. Há muito que deixou de ser tabu a gestão privada de serviços públicos "comerciais" a nível nacional ou local. O único limite é de natureza constitucional, em relação aos serviços públicos sem natureza comercial (nomeadamente saúde e educação).

A privatização da exploração dos trasnportes públicos teria pelo menos duas vantagens. Primeiro, obrigaria a contratualizar rigorosamente as obrigações de serviço público, definindo a longo prazo os encargos orçamentais do Estado ou dos municípios, consoante os casos; segundo, despolitizaria a questão das tarifas, cujos critérios de fixação seriam igualmente contratualizados pelo tempo da concessão, ficando fora dos cálculos eleitorais.

É hoje evidente que tanto para os mercados financeiros como para a União Europeia o montante do endividamento público global vai ser tão importante como o défice orçamental anual. Não podem continuar a existir avenidas de despesa pública incontrolada fora do Orçamento, assim continuando a aumentar a dívida. Portugal não pode manter setores tão deficitários como o dos transportes públicos. É nos momentos de crise, como o atual, que se impõem as grandes decisões. Não faz sentido cortar nas despesas de saúde e de proteção social e manter a atual sangria no setor dos transportes.

Falhar no controlo do endividamento público é continuar a hipotecar o equilíbrio das contas públicas no futuro.

(Público, 19 de Outubro de 2010)

A China como problema 

Por Vital Moreira

Terminou em embaraçoso fracasso a cimeira da semana passada entre a UE e a China em Bruxelas. A verdade é que alguns dos problemas pendentes entre as duas partes, entre os quais os respeitantes às relações económicas, estão a tornar-se intratáveis.

O mais recente factor "irritante" nas relações bilaterais tem a ver com a cotação artificialmente baixa da moeda chinesa. Juntando-se aos Estados Unidos, embora de forma bem mais moderada, a União terá instado a liderança chinesa a valorizar o yuan. Numa reação pública à margem dos encontros oficiais, o chefe do Governo de Beijing rejeitou desafiadoramente a exigência europeia, invocando os efeitos nocivos que isso teria sobre a economia chinesa.

A explicação do líder chinês apenas vem confirmar que é a subvalorização do yuan que alimenta boa parte do crescimento das exportações chinesas. Na verdade, isso traduz-se num subsídio geral às exportações e numa taxa sobre as importações de produtos alheios, distorcendo completamente a concorrência comercial internacional. Há uns meses, perante a pressão norte-americana, as autoridades chinesas anunciaram uma pequena margem de flutuação da sua moeda, mas de efeitos assaz limitados. O Congresso norte-americano iniciou recentemente a discussão de um projeto de lei visando dar aos Estados Unidos a possibilidade de impor taxas de importação aos produtos chineses, de modo a compensar a vantagem derivada da subcotação do yuan. A China já reagiu com aspereza a esta iniciativa, ameaçando contra-atacar com outros instrumentos, utilizando a sua posição de principal credor da dívida externa norte-americana.

No caso europeu, a situação também se tem vindo a degradar. O défice comercial não pára de crescer em favor da China. O euro tem continuado a valorizar-se em relação à moeda chinesa, dando cada vez mais vantagens nos termos de troca entre as duas economias. A essa valorização não é provavelmente alheia a compra de obrigações de dívida pública de Estados europeus por parte dos chineses, aumentando a procura de euros no mercado monetário internacional.

Essa vantagem comercial de origem monetária soma-se aos demais mecanismos com que a China "dopa" as suas exportações, incluindo uma maciça política de subvenções (especialmente em matéria de crédito à exportação) que confere vantagens comerciais às empresas chinesas, sem esquecer os casos de dumping puro e duro, ou seja, venda ao exterior a preços abaixo dos custos, contra os quais a União Europeia se viu obrigada a reagir (como sucedeu no caso do calçado).

Se a isto juntarmos o défice de proteção dos direitos de propriedade intelectual - não há nada que não seja copiado na China - e a falta de reciprocidade no acesso ao mercado de compras públicas, incluindo obras públicas, é fácil verificar que as vantagens comerciais chinesas não se limitam ao "dumping social" (baixos salários e ausência de proteção social) e ao "dumping ambiental" (menores custos com a proteção ambiental), sem esquecer a poupança dos custos da própria democracia, que a China desconhece. Tudo somado, não admira a invasão do mercado europeu de produtos chineses a baixo preço, que já se não limitam aos produtos de consumo de gama baixa. Mais importante do que isso, há um crescente número de empresas europeias e norte-americanas que se instalam na China, tirando partido dos baixos custos, para alimentar diretamente o mercado chinês (por exemplo, automóveis), ou que lá encomendam o fabrico dos seus produtos para os mercados nacionais ou para o mercado mundial (especialmente na área eletrónica). Há cada vez mais produtos no mercado provindos da China ou com incorporação chinesa.

O problema desta "invasão chinesa" está em que, se ela implica um ganho para os consumidores europeus - que têm acesso a produtos mais baratos - e para as empresas europeias que se deslocalizam ou encomendam os seus produtos na China - que assim obtêm mais lucros -, também implica correspondentes perdas para a indústria e o emprego na Europa, bem como a criação de um enorme défice comercial entre as duas economias. Para agravar a situação, sucede que este conflito de interesses se reflete numa divisão interna à UE, entre os países que são menos afetados pela concorrência chinesa e só beneficiam das importações baratas e os países que suportam os prejuízos, ou seja, aqueles cuja indústria é mais lesada pela concorrência chinesa baseada nos baixos salários e na manipulação monetária. É fácil ver que Portugal se conta entre os segundos, não só porque a nossa indústria ainda assenta em alguns setores tradicionais, onde a China se tornou praticamente imbatível, sem que as nossas empresas, por falta de dimensão e capacidade, tenham grande possibilidade de tirar proveito do crescente mercado interno chinês.

A União Europeia não devia consentir a continuação desta situação de desvantagem comercial. O comércio internacional supõe igualdade de condições. A União deve obviamente combater as distorções comerciais, não somente pelos canónicos "instrumentos de defesa comercial" (anti-dumping, antissubsídio) mas também pelo rebalanceamento da cotação relativa do yuan e do euro. Deve estabelecer um estrito princípio de reciprocidade em matéria de investimento estrangeiro e de acesso ao mercado de compras públicas. Deve exigir de Beijing o respeito dos direitos de propriedade intelectual, incluindo as patentes, como condição de reconhecimento de estatuto de "economia de mercado". Deve sujeitar qualquer nova abertura comercial ao respeito de critérios básicos em matéria de padrões laborais e de sustentabilidade ambiental (incluindo limites à produção de CO2).

Só um neoliberalismo ingénuo é que pode defender o livre-cambismo sem regras.

(Público, 12 de Outubro de 2010)

Mais república 

Por Vital Moreira

Comemorar o centenário da República em Portugal faz todo o sentido em si mesmo, pelo seu sentido e consequências históricas. Mas a celebração republicana deve proporcionar igualmente uma reflexão sobre o futuro do republicanismo, à luz das condições e dos desafios do século XXI.

Na sua essência, o republicanismo designa a organização política pela qual uma comunidade política decide coletivamente sobre os assuntos públicos ("res publica", coisa pública, em latim), definindo o interesse geral ou bem comum da coletividade. O essencial da ideia republicana está em três princípios: primeiro, a separação entre a esfera privada (res privata), onde se movem os particulares, e a esfera pública, onde relevam os cidadãos; segundo, a responsabilidade dos cidadãos na definição e direção da esfera pública (república como autogoverno dos cidadãos), embora confiada a magistrados eletivos e temporários, responsáveis perante os cidadãos; terceiro, a garantia da liberdade individual face ao poder por via da lei e das instituições.

As repúblicas modernas, nascidas com os Estados Unidos da América e com a República Francesa, caracterizam-se por serem repúblicas constitucionais, baseadas na democracia representativa e na separação de poderes e na progressiva universalização da cidadania (independentemente de condição económica, de género, de distinções étnicas, etc.). Todas as declinações políticas que, embora autoproclamando-se repúblicas, não preencham estes requisitos (como sucedeu com a "república corporativa" do Estado Novo em Portugal) não passam de pseudo-repúblicas. O republicanismo é incompatível tanto com o totalitarismo de Estado como com a anarquia dos interesses privados; tanto com a autocracia e o despotismo como com qualquer forma de "ditadura democrática".

Não são poucos os desafios com que se defronta o republicanismo contemporâneo.

O primeiro, e talvez o mais importante, tem a ver com a globalização e com a erosão da soberania do Estado nacional. Concebido originariamente num quadro de soberania nacional quase sem limites, o republicanismo moderno tem de confrontar-se com a emergência de poderes fácticos que escapam aos cidadãos (desde as empresas transnacionais ao terrorismo internacional), com o apagamento progressivo das fronteiras nacionais e com a emergência de formas supranacionais de organização interestatal (como a União Europeia) ainda não apropriadas pelos cidadãos. Sendo óbvio que o Estado "westfalliano" passou à história, a solução só pode estar em dar um sentido de cidadania republicana às novas formas de governação transnacional (o "republicanismo pós-nacional" de Habermas). A densificação política da noção de "cidadania europeia" - que os tratados da UE instituíram - e da noção de "cidadania global" - que o novo constitucionalismo global preconiza - é a única via de "republicanização" dos estratos transnacionais do "governo em vários níveis" ("multilevel government") que as últimas décadas geraram.

A segunda dificuldade tem a ver com o crescente império dos interesses privados e com a alienação cívica. Se existe uma ideia fundamental no republicanismo, ela está na noção de "coisa pública" ou interesse público, distinto e acima dos interesses privados, e na responsabilidade cívica pela participação na definição e na prossecução do interesse público. Todavia, tais noções são hoje frontalmente desafiadas pelo fundamentalismo neoliberal e pelo extremismo "libertário", que negam a própria existência de um interesse público acima dos indivíduos e dos grupos e de qualquer interesse geral acima dos interesses individuais ou corporativos. Do mesmo modo, a hipertrofia e a saturação do discurso dos direitos individuais e coletivos contra o Estado tende a esquecer os deveres e as responsabilidades dos cidadãos para com a coletividade, que estão no cerne do "republicanismo cívico".

Em terceiro lugar, uma das grandes realizações do republicanismo consiste na igualdade civil e política e na universalização e unidade da cidadania. A cidadania inclusiva é o cimento que une os membros da coletividade política para além das diferenças individuais e das solidariedades de grupo criadas pela diversidade de origem territorial, de religião, de pertença étnica, etc. Ora, é esse mesmo sentido de indiferenciação e inclusividade da cidadania que tem vindo a ser fragmentado, por efeito das visões comunitaristas e multiculturalistas, do fundamentalismo religioso, da crispação das identidades étnicas, das derivas xenófobas e etnófobas. Neste contexto, a principal tarefa do republicanismo consiste em desenvolver estratégias de coabitação pacífica das diferentes identidades grupais existentes na sociedade civil e da sua integração com a cidadania política, de modo a preservar a coesão e a inclusividade política da República.

Por último, um dos esteios do republicanismo foi desde sempre a ideia da "virtude cívica", que exige aos magistrados políticos da República dedicação à causa pública, probidade e sentido de responsabilidade, e que reclama dos cidadãos envolvimento ativo nos assuntos públicos, cumprimento dos deveres cívicos, bem como "deferência" e respeito pela República e pelos seus magistrados. Todavia, a própria noção de virtude republicana tem vindo a sofrer forte erosão, de uma banda e de outra, pela persistência da corrupção e da irresponsabilidade política e pela invasão de um "cinismo democrático" que desvaloriza a ética politica e a responsabilidade cívica, elogia o abstencionismo político, desculpa a fuga ao cumprimento dos deveres cívicos e ridiculariza a deferência para com a República, os seus símbolos e os seus dirigentes.

Celebraremos bem o nosso centenário republicano se dermos passos significativos na resposta a estes (e outros) desafios com que se defrontam as repúblicas contemporâneas, e não só a nossa. A República obviamente está para ficar. Mas precisamos de mais república como antídoto ao empobrecimento da República.

(Público, 5 de Outubro de 2010)

Construindo a União Europeia 

Por Vital Moreira

A aprovação pelo Parlamento Europeu, na semana passada, do pacote legislativo sobre as autoridades europeias de supervisão financeira não é somente a mais importante das lições retiradas da crise bancária e financeira oriunda dos Estados Unidos há dois anos mas também um enorme passo em frente na construção institucional da União Europeia. Haverá mais regulação, mais supervisão e mais Europa.

O impacto da crise no sistema bancário e financeiro na Europa revelou três défices de regulação e supervisão que os espíritos mais avisados já antecipavam desde há muito. Primeiro, uma insuficiência de regulação substantiva quanto a muitas actividades, produtos e instituições financeiras, em consequência da hegemonia das ideias neoliberais da desregulação, da auto-regulação e da soberania do mercado, que contaminaram mesmo a tradicional "economia de mercado ordenada" de matriz europeia. Segundo, uma falta de supervisão a nível europeu, traduzido na ausência de autoridades de supervisão da própria UE, quando entretanto se criou e desenvolveu o mercado interno dos serviços financeiros, incluindo poderosos operadores transfronteiriços, e quando metade dos bancos que operam nos Estados-membros da UE está sediada no estrangeiro. Terceira falha, a ausência de um mecanismo geral de monitorização e prevenção dos riscos para a estabilidade do sistema financeiro, que as instituições sectoriais de microssupervisão financeira não podem naturalmente assegurar.

O primeiro dos referidos défices só pode ser suprido por uma regulação mais extensa e mais intensa do sector financeiro, sem deixar de fora nenhum produto, nenhuma instituição nem nenhum território, como insiste em dizer, e bem, o comissário europeu para as questões financeiras, Michel Barnier. Agências de rating e "produtos derivados", fundos de investimento e hedge funds, nada pode ser deixado fora de adequada regulação, a qual, num mercado integrado como o europeu, só pode ser eficaz e consistente se definida de forma unificada a nível da União. Esta reforma está em curso, com algumas iniciativas legislativas da Comissão já aprovadas (por exemplo, regulação das agências de rating) e várias outras em diferentes estádios de elaboração legislativa.

A falta de instâncias europeias de supervisão acaba de ser superada pela aprovação do referido pacote legislativo, que cria três entidades sectoriais de supervisão, uma para a banca, outra para os seguros e fundos de pensões e outra para os mercados de valores mobiliários, designadamente as bolsas. Trata-se, acima de tudo, de ultrapassar a óbvia assimetria até agora existente entre, por um lado, a criação de um verdadeiro mercado integrado de serviços financeiros, sem fronteiras nacionais quanto à actividade das instituições e à prestação de serviços e, por outro lado, a fragmentação da supervisão a nível nacional, mediante autoridades de supervisão com jurisdição limitada a cada país. Uma tal discrepância não podia perdurar sem a visão europeia que a existência do mercado interno de serviços financeiros impunha, sob pena de sérias lacunas e falhas de supervisão. Um mercado único exigia autoridades supervisoras únicas a nível da UE, sem prejuízo da jurisdição doméstica das autoridades nacionais.

É pena que as novas autoridades europeias não tenham sido dotadas de poderes de supervisão directa das instituições e operações financeiras transfronteiriças, o que para já só sucederá no respeitante às agências de rating. Mas, mesmo assim, a sua criação representa um inestimável progresso, permitido a coordenação das autoridades nacionais de supervisão e o suprimento das insuficiências e deficiências destas. Sendo aquelas autoridades dotadas de autonomia face à Comissão Europeia, trata-se de verdadeiras autoridades de supervisão independentes, sem prejuízo da prestação de contas perante o Parlamento Europeu. Uma nova figura organizativa acaba de nascer na arquitectura institucional da UE.

Finalmente, a falta de um mecanismo de monitorização e prevenção de ameaças à estabilidade do sistema financeiro - que a crise financeira pôs em especial relevo - está também contemplada no pacote legislativo acabado de aprovar, com a criação de um organismo de controlo do risco sistémico ("supervisão macroprudencial"), presidido, como não podia deixar de ser, pelo presidente do Banco Central Europeu. Não é necessário sublinhar a importância desta inovação institucional, nem a mais-valia que ela traz para um eficaz e consistente controlo das situações que possam tornar-se perigosas para a estabilidade do sistema financeiro a nível global.

Para quem acusa a União Europeia de não responder, ou de tardar a responder, aos desafios que lhe são colocados, este pacote da supervisão financeira constitui um notável desmentido. Tendo tido por base o relatório Larosière do início de 2009, a Comissão anunciou antes do Verão do ano passado a suas principais opções, que mais tarde verteu nas propostas legislativas apresentadas ao Parlamento ainda antes do fim de 2009. Após laboriosa, e em alguns casos conflituosa, disputa com o Conselho, onde vários Estados-membros manifestaram a sua oposição à supervisão supranacional, e apesar do poderoso lobby financeiro da City de Londres, o Parlamento Europeu pôde aprovar o conjunto de leis que seguramente ficará como marco na construção da UE e de uma verdadeira ordem económica europeia.

Para mais, este pacote legislativo pôde beneficiar do voto favorável de uma vasta convergência política, desde o PPE aos socialistas europeus, só ficando de fora os grupos anti-europeístas do costume, designadamente a "Esquerda Unida Europeia" (que integra os deputados do PCP e do BE) e a direita nacionalista, que preferiram votar contra ou abster-se. Como se vê, uma reforçada legitimidade política para esta verdadeira revolução na edificação constitucional europeia.

(Publico, 28 de Setembro de 2010)

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