27 de novembro de 2010
Economia social de mercado
Por Vital Moreira
O Tratado de Lisboa não mudou somente a estrutura institucional da União Europeia. Mexeu também nos objetivos e nas políticas. Neste aspeto, uma das alterações mais significativas foi a introdução da noção de "economia social de mercado", para caracterizar a ordem económica da União. Ora, as mudanças conceptuais podem ser mais importantes do que as alterações institucionais.
A propósito dos 20 anos do lançamento da estratégia do "mercado único" (1987-1992), sob a égide de Jacques Delors, com o objetivo de unificar efetivamente o "mercado comum" - conceito-chave na construção inicial da Comunidade Económica Europeia (CEE) -, a Comissão Europeia acaba de lançar a ideia de um "Ato do mercado único", com um duplo objetivo: primeiro, dar um novo impulso à conclusão do mercado interno sem fronteiras nacionais; segundo, aprofundar a dimensão social da integração económica europeia. Trata-se de um vasto conjunto de iniciativas legislativas ou políticas, a serem tomadas nos próximos dois anos. As propostas da Comissão baseiam-se em grande parte do Relatório de Mario Monti (antigo comissário europeu da concorrência), que defende justamente a revitalização do mercado interno, tendo em conta o novo enquadramento do Tratado de Lisboa.
Quanto ao aprofundamento do mercado único, importa começar por sublinhar que mais de cinco décadas sobre o início da integração económica europeia e duas décadas após o lançamento do mercado interno, este continua um projeto inacabado, por força de obstáculos que permanecem e de peças que faltam para completar o mercado sem fronteiras internas e sem peias à liberdade de circulação de produtos, de prestação de serviços e de movimentação dos fatores de produção (capital e trabalho) dentro do espaço da União.
Entre os muitos casos enunciados na Comunicação da Comissão, citem-se três exemplos mais flagrantes. O primeiro é a falta de uma patente única europeia, capaz de substituir os 27 sistemas nacionais. Não se vê como é possível falar de um genuíno mercado interno sem um sistema unificado e centralizado de patentes, obrigando as empresas e instituições de investigação aplicada a patentear as suas invenções em cada um dos Estados-membros - com os inerentes encargos financeiros e administrativos - ou a desistirem de as proteger numa parte deles. Outro obstáculo diz respeito à falta de harmonização fiscal quanto ao imposto sobre as empresas. Embora a Comissão tenha prescindido de tentar um mínimo de harmonização das taxas do imposto, pelo menos defende fortemente a harmonização das suas bases de incidência, o que já não é pouco. Outro travão na integração económica tem a ver com a falta de fluidez na circulação de trabalhadores e de prestadores de serviços, desde logo por motivo de discrepâncias no sistema de certificação profissional. Ora, enquanto não houver um mercado de trabalho e de serviços genuinamente integrado, onde os trabalhadores e profissionais possam mudar-se sem dificuldades para outros países, não pode dar-se por concluído o mercado único.
No que respeita à dimensão social do mercado interno, também são numerosas as propostas da Comissão Europeia. Correndo o risco de alguma arbitrariedade na escolha, merecem relevo especial três iniciativas.
A primeira consiste num enquadramento legislativo europeu para os chamados "serviços de interesse económico geral" - onde se contam o fornecimento de água, de energia, de telecomunicações, de correios, de transportes públicos, etc. -, que foram objeto de liberalização e, muitas vezes, de privatização nos últimos 20 anos, sem que tivesse sido estabelecido um quadro europeu sobre as respetivas "obrigações de serviço público" ("serviço universal", etc.) e sobre o seu financiamento. A prioridade dada à liberalização desses serviços por parte da União Europeia, a fim de expandir o mercado interno, foi um dos motivos de crítica ao enviesamento neoliberal da União na construção do mercado único.
Não menos importante é o compromisso da Comissão de fazer conciliar as liberdades fundamentais do mercado interno com a liberdade de ação coletiva dos trabalhadores. De facto, numa orientação jurisprudencial ostensivamente favorável às primeiras, nomeadamente a liberdade de prestação de serviços e a liberdade de estabelecimento, o Tribunal de Justiça da União deu-lhes preferência contra o exercício da liberdade sindical e do direito à greve. Essas decisões, aliás proferidas antes de a Carta de Direitos Fundamentais da União ter adquirido força jurídica, foram justamente acusadas de ignorar a necessária compatibilização do mercado interno com os direitos dos trabalhadores.
Uma terceira medida digna de aplauso especial diz respeito ao enquadramento do chamado "terceiro setor", incluindo um estatuto europeu para as fundações, cooperativas e mutualidades, cujo peso económico e função social é incontornável.
Estas e muitas outras ideias mostram que o Tratado de Lisboa é para ser implementado, incluindo o conceito de economia social de mercado. Como disse o citado Mario Monti, apesar de o mercado interno não gozar hoje de grandes simpatias na opinião pública europeia, por causa das atuais dificuldades económicas e sociais, nunca foi tão necessária a sua defesa e o seu aprofundamento, justamente para responder à crise económica e social e para assegurar a competitividade externa da economia europeia e a sustentabilidade do modelo social europeu.
O mercado interno está obviamente na base da integração europeia. Mas, sem a necessária coesão social e territorial, a simples unificação dos mercados pode ser uma receita para a frustração com a União Europeia. É preciso levar a sério a noção de "economia social de mercado", agora no cerne da ordem económico-constitucional da União Europeia.
(Público, terça-feira, 23 de Novembro de 2010)
O Tratado de Lisboa não mudou somente a estrutura institucional da União Europeia. Mexeu também nos objetivos e nas políticas. Neste aspeto, uma das alterações mais significativas foi a introdução da noção de "economia social de mercado", para caracterizar a ordem económica da União. Ora, as mudanças conceptuais podem ser mais importantes do que as alterações institucionais.
A propósito dos 20 anos do lançamento da estratégia do "mercado único" (1987-1992), sob a égide de Jacques Delors, com o objetivo de unificar efetivamente o "mercado comum" - conceito-chave na construção inicial da Comunidade Económica Europeia (CEE) -, a Comissão Europeia acaba de lançar a ideia de um "Ato do mercado único", com um duplo objetivo: primeiro, dar um novo impulso à conclusão do mercado interno sem fronteiras nacionais; segundo, aprofundar a dimensão social da integração económica europeia. Trata-se de um vasto conjunto de iniciativas legislativas ou políticas, a serem tomadas nos próximos dois anos. As propostas da Comissão baseiam-se em grande parte do Relatório de Mario Monti (antigo comissário europeu da concorrência), que defende justamente a revitalização do mercado interno, tendo em conta o novo enquadramento do Tratado de Lisboa.
Quanto ao aprofundamento do mercado único, importa começar por sublinhar que mais de cinco décadas sobre o início da integração económica europeia e duas décadas após o lançamento do mercado interno, este continua um projeto inacabado, por força de obstáculos que permanecem e de peças que faltam para completar o mercado sem fronteiras internas e sem peias à liberdade de circulação de produtos, de prestação de serviços e de movimentação dos fatores de produção (capital e trabalho) dentro do espaço da União.
Entre os muitos casos enunciados na Comunicação da Comissão, citem-se três exemplos mais flagrantes. O primeiro é a falta de uma patente única europeia, capaz de substituir os 27 sistemas nacionais. Não se vê como é possível falar de um genuíno mercado interno sem um sistema unificado e centralizado de patentes, obrigando as empresas e instituições de investigação aplicada a patentear as suas invenções em cada um dos Estados-membros - com os inerentes encargos financeiros e administrativos - ou a desistirem de as proteger numa parte deles. Outro obstáculo diz respeito à falta de harmonização fiscal quanto ao imposto sobre as empresas. Embora a Comissão tenha prescindido de tentar um mínimo de harmonização das taxas do imposto, pelo menos defende fortemente a harmonização das suas bases de incidência, o que já não é pouco. Outro travão na integração económica tem a ver com a falta de fluidez na circulação de trabalhadores e de prestadores de serviços, desde logo por motivo de discrepâncias no sistema de certificação profissional. Ora, enquanto não houver um mercado de trabalho e de serviços genuinamente integrado, onde os trabalhadores e profissionais possam mudar-se sem dificuldades para outros países, não pode dar-se por concluído o mercado único.
No que respeita à dimensão social do mercado interno, também são numerosas as propostas da Comissão Europeia. Correndo o risco de alguma arbitrariedade na escolha, merecem relevo especial três iniciativas.
A primeira consiste num enquadramento legislativo europeu para os chamados "serviços de interesse económico geral" - onde se contam o fornecimento de água, de energia, de telecomunicações, de correios, de transportes públicos, etc. -, que foram objeto de liberalização e, muitas vezes, de privatização nos últimos 20 anos, sem que tivesse sido estabelecido um quadro europeu sobre as respetivas "obrigações de serviço público" ("serviço universal", etc.) e sobre o seu financiamento. A prioridade dada à liberalização desses serviços por parte da União Europeia, a fim de expandir o mercado interno, foi um dos motivos de crítica ao enviesamento neoliberal da União na construção do mercado único.
Não menos importante é o compromisso da Comissão de fazer conciliar as liberdades fundamentais do mercado interno com a liberdade de ação coletiva dos trabalhadores. De facto, numa orientação jurisprudencial ostensivamente favorável às primeiras, nomeadamente a liberdade de prestação de serviços e a liberdade de estabelecimento, o Tribunal de Justiça da União deu-lhes preferência contra o exercício da liberdade sindical e do direito à greve. Essas decisões, aliás proferidas antes de a Carta de Direitos Fundamentais da União ter adquirido força jurídica, foram justamente acusadas de ignorar a necessária compatibilização do mercado interno com os direitos dos trabalhadores.
Uma terceira medida digna de aplauso especial diz respeito ao enquadramento do chamado "terceiro setor", incluindo um estatuto europeu para as fundações, cooperativas e mutualidades, cujo peso económico e função social é incontornável.
Estas e muitas outras ideias mostram que o Tratado de Lisboa é para ser implementado, incluindo o conceito de economia social de mercado. Como disse o citado Mario Monti, apesar de o mercado interno não gozar hoje de grandes simpatias na opinião pública europeia, por causa das atuais dificuldades económicas e sociais, nunca foi tão necessária a sua defesa e o seu aprofundamento, justamente para responder à crise económica e social e para assegurar a competitividade externa da economia europeia e a sustentabilidade do modelo social europeu.
O mercado interno está obviamente na base da integração europeia. Mas, sem a necessária coesão social e territorial, a simples unificação dos mercados pode ser uma receita para a frustração com a União Europeia. É preciso levar a sério a noção de "economia social de mercado", agora no cerne da ordem económico-constitucional da União Europeia.
(Público, terça-feira, 23 de Novembro de 2010)