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30 de junho de 2004

"A Fuga e a Crise", por Vital Moreira 

O ainda primeiro-ministro português não tem nenhuma razão para se congratular com a sua precipitada (?) decisão de aceitar a nomeação para presidente da Comissão Europeia. Consentiu aparecer como solução de recurso para um cargo de que os melhores candidatos foram excluídos e outros recusaram; não consegue livrar-se da impressão de que corre para Bruxelas para fugir aos problemas que não era capaz de enfrentar em Lisboa; abriu uma crise de liderança no seu próprio partido de consequências imprevisíveis; e desencadeou uma crise política no país, cuja solução não está à vista e cujos estragos dificilmente são remendáveis. É obra!
Não é segredo para ninguém que Durão Barroso apareceu à última hora como solução de segunda linha e como "mínimo denominador comum" entre os demais chefes de Estado e de governo dos Estados-membros da UE, depois de afastados os candidatos mais fortes, por efeito de vetos cruzados dos grupos alinhados com o Reino Unido ou com o par franco-alemão e da recusa de vários outros de primeira escolha. Por outro lado, ele foi o único dos vários primeiros-ministros aventados para o cargo que o não recusou, tendo os demais preferido manter os seus compromissos nacionais à frente dos respectivos governos (desde o caso do Luxemburgo ao da própria Irlanda, que tinham seguramente o apoio de todos). Finalmente, sendo um dos menos conhecidos chefes de governo da UE, não são também muito grandes as expectativas sobre o seu desempenho à frente da Comissão. Ainda ontem o "Guardian" de Londres observava justamente que Barroso "não é conhecido por ter nenhum especial talento ou visão acerca da maneira de dirigir o desmoralizado Executivo da União e de gerir as relações frequentemente perturbadas com os seus membros".
O que mais surpreendeu na inesperada aceitação do cargo por Durão Barroso tem a ver seguramente com o abandono da chefia do Governo português nas circunstâncias presentes, depois de uma pesada derrota eleitoral que põe a nu o forte descontentamento popular e que abriu justificados receios sobre a capacidade de recuperação a tempo das eleições que se avizinham no próximo ano até as eleições legislativas de 2006. É manifesto que o primeiro-ministro estava perante tarefas cuja dificuldade não era menor do que a sua premência, designadamente uma remodelação governamental que desse novo "élan" ao Executivo, a reavaliação da linha de orientação do Governo, fortemente contestada dentro das estruturas locais do partido, a resolução da disputa sobre a candidatura presidencial do PSD (entre Cavaco Silva e Santana Lopes). É evidente que em vez de enfrentar estas dificuldades, ele preferiu fugir a elas, defraudando as expectativas dos que nele confiaram para levar até ao fim o projecto de regeneração financeira e de reforma do Estado a que se comprometeu há dois anos.
Comparada com a alegada fuga de Guterres, em 2001, no seguimento da derrota das eleições autárquicas, quando verificou não ter condições políticas para continuar (o que era verdade) e o assumiu expressamente, o abandono de Barroso é muito mais comprometedor, pois aproveita expeditamente a primeira oportunidade para fugir às suas responsabilidades de primeiro-ministro, sem poder invocar falta de condições políticas, dada a maioria parlamentar que a coligação continua a deter na Assembleia da República.
Por último, era tudo menos imprevisível que a saída do chefe do Governo suscitasse dificuldades tanto dentro do partido como em relação ao governo. A nível partidário interno, Santana Lopes pode ter seguramente o apoio da maior parte das bases partidárias, a quem a sua fácil popularidade pode acenar com futuras vitórias eleitorais, bem como dos dirigentes locais e presidentes de câmara municipal, a quem ele pode abrir perspectivas de alívio das limitações financeiras que ameaçam o resultado das eleições locais do próximo ano e das eleições gerais de 2006. Nas não pode deixar de suscitar a oposição de todas as personalidade que não se revêem no populismo do candidato e que não querem ver desperdiçados os sacrifícios que o Governo exigiu ao país em nome da regeneração das administração e as finanças públicas.
No respeitante à questão governativa, é evidente que, face às dificuldades que o Executivo enfrentava e ao divórcio que as recentes eleições revelaram entre o Governo e a opinião pública, a substituição do primeiro-ministro originário por outro que não detém nem a mesma legitimidade partidária nem eleitoral não podia deixar de criar dificuldades quanto à sua credibilidade e autoridade política. Acresce que, como já foi posto em relevo por vários observadores, a solução aventada para chefiar o novo governo implica seguramente uma ruptura de continuidade quanto à orientação política em relação a pelo menos dois "dossiers" decisivos, designadamente a política de rigor e disciplina das finanças públicas e a política europeia.
Impende agora sobre o Presidente da República a responsabilidade pela resolução da crise governativa. Constitucionalmente, tudo está em aberto. Sendo o nosso regime político de índole essencialmente parlamentar, é perfeitamente admissível a formação de um novo governo no quadro parlamentar existente, com outro primeiro-ministro. Mas conferindo a Constituição ao Presidente da República a uma grande liberdade de actuação nesta matéria, incluindo a dissolução parlamentar por iniciativa própria, não é menos lícita a opção pela convocação de eleições antecipadas. A questão é portanto exclusivamente política, tudo dependendo do juízo presidencial sobre as alternativas disponíveis
Em condições normais, havendo uma coligação para efeitos governamentais com maioria parlamentar, a solução passaria naturalmente pela formação de um segundo executivo, tanto mais que é conhecida a preferência do Presidente da República pela estabilidade política e pelo cumprimento das legislaturas e pelo entendimento das eleições antecipadas como último recurso.
Há, porém, três dificuldades não despiciendas nessa opção. Primeiro, a recondução da coligação no poder significaria um refrescamento da legitimidade governativa quando aquela acaba de sofrer um forte revés eleitoral, indubitavelmente devido ao descontentamento social em relação ao Governo. Ora, uma coisa é não pôr em causa a subsistência do governo, outra coisa é nomear um novo governo depois da demissão do primeiro-ministro, que talvez se ficou a dever muito justamente a essa derrota. Segundo, a menor autoridade e legitimidade política de qualquer sucessor na chefia do governo (sem falar no patente défice de credibilidade do candidato que se perfila para o cargo) tornará esta uma solução ainda mais frágil do que o desgastado governo cessante. Terceiro, a mais que provável mudança de orientação em duas áreas básicas da governação (consolidação das finanças públicas e política europeia) retira um dos pressupostos essenciais da vantagem da continuidade governativa. Afinal, não seria somente um novo governo, mas também uma muito diferente política.
Ou seja, nas circunstâncias existentes, um segundo governo da coligação pode bem ser uma solução altamente instável e controversa, desde logo pela contestação da sua legitimidade política. Por isso o dilema do Presidente da República pode bem ser este (para além da própria aceitabilidade de uma personalidade como Santana Lopes à frente do governo): uma solução no quadro parlamentar existente que afinal não oferece suficientes garantias de estabilidade (pelo contrário); ou o recurso a eleições antecipadas esperando uma subsequente solução governativa mais forte e mais duradoura, mas também sem nenhumas garantias de que assim seja. Por mais ponderada que seja a sua decisão expor-se-á facilmente à acusação de favorecimento seja do governo seja da oposição.
Durão Barroso devia envergonhar-se da situação em que a sua imprevidência política lançou o país.

(Público, Terça-feira, 29 de Junho de 2004)

25 de junho de 2004

Patriotas 

Por Luis Nazaré

Há muito tempo que não se falava tanto de patriotismos e de manifestações patrióticas. Ficamos a dever à economia e ao futebol o mérito de terem trazido o tema para a praça pública. Há ou não empresários patriotas? O que é ser patriota nos negócios? Quais são as manifestações politicamente correctas de patriotismo? A que causas colectivas aderir? Quando e onde se devem exibir os símbolos nacionais?

Na esfera empresarial, o conceito tem vindo a sofrer sucessivas adaptações por força da globalização dos negócios. Seria absurdo acusar um empresário de falta de patriotismo pelo facto de investir no estrangeiro ou por concentrar a sua carteira de encomendas no exterior. Onde a questão patriótica mais frequentemente se coloca é ao nível da propriedade do capital. Neste campo, existem três correntes de opinião: o neo-realismo, o romantismo e o grande liberalismo lusitano.

Os neo-realistas são uma espécie de ateus da economia. Tanto se lhes dá que o capital das empresas seja português ou estrangeiro, público ou privado, dependente ou independente de centros de decisão internacionais. Fiel ao velho princípio de que o capital não tem pátria, esta corrente é a mais comummente associada aos sentimentos antipatrióticos, embora nada permita concluir que não tenha aderido à onda das bandeiras Euro 2004. O grupo dos românticos, maioritariamente composto por nostálgicos da era pré-global, acredita no exercício da bondade mercantil desde que seja verde-rubra, tem uma fé ilimitada no portuguesismo empresarial e defende o uso de políticas e instrumentos que garantam a nacionalidade lusa dos capitais.

Por fim, a tribo mais numerosa ? o grande liberalismo lusitano. Moderadamente intervencionista (embora gostasse de poder sê-lo mais, só que não sabe como), formalmente respeitadora das regras de mercado, crente, é composta por clãs que passam o tempo a inventar diferenças entre si. É uma espécie de SEDES do mundo económico. Por isso, sempre que surge uma prova de fogo ao patriotismo empresarial, nunca consegue chegar a uma conclusão. Américo Amorim tem ou não amor à pátria? E Diogo Vaz Guedes? E os Mellos? E o BCP, a Sonae, ou o BES? Sim? Não? Depende?

Não está nada fácil a vida de um patriota. Nem agora, quando muitos pensavam que o futebol iria proporcionar uma manifestação colectiva de lusitanidade, os profissionais da dúvida desarmam. Desta vez, é o grupo dos intelectuais que detestam futebol, como Eduardo Lourenço, Bénard da Costa e outros. Curioso é o facto de a discussão estar focada na bandeira nacional -- faz ou não sentido exibi-la na varanda a propósito da Selecção -- e não propriamente no significado moderno de patriotismo.

Pela minha parte, não entendo bem a oposição encarniçada à onda das bandeiras (à qual não aderi). A menos que assente num preconceito de rejeição de todo o tipo de símbolos, o raciocínio dos detractores parece inconsequente. O que deduzir? Que a bandeira nunca deveria ser exibida? Ou que deveria estar sempre em exibição? Ou, talvez, que só devesse ser exibida para exaltar outros feitos que não os futebolísticos?

Suspeito que a terceira opção é a que os críticos têm em mente, embora não o digam de modo claro. Estamos, pois, perante um problema clássico de hierarquia de valores e de critérios de adesão colectiva a causas concretas. Percebo e respeito todos aqueles que desprezam o futebol, mas não creio que seja hoje possível encontrar um melhor factor de mobilização e exaltação nacional. Por mais que custe, não imagino os portugueses (nem outros povos) com as bandeiras desfraldadas para celebrar um feito científico ou artístico, para comemorar uma vitória económica ou sequer para prestar tributo a uma personalidade, uma efeméride ou um acontecimento histórico.

De qualquer modo, foi agradável ver o país, de norte a sul, embandeirado. Não me recordo de ter visto algo de parecido desde o 25 de Abril e não me choca que seja o futebol -- esse «desporto de cavalheiros praticado por energúmenos» -- o catalisador dos sentimentos de pertença a uma terra. Para quem ainda não percebeu, o futebol é o maior espectáculo do mundo. O festival da Eurovisão era dantes.

(Publicado no Jornal de Negócios, 25 de Junho de 2004)

22 de junho de 2004

A refundação da União Europeia 

Por Vital Moreira

A aprovação da Constituição europeia não poderia falhar uma segunda vez, sob pena de descrédito e impasse de funestas consequências. Depois da concretização do alargamento a 25 membros e do desconforto provocado pela forte abstenção nas recentes eleições europeus, incluindo o reforço de posições antieuropeias em alguns Estados-membros, os líderes europeus tinham de revelar a determinação e a flexibilidade necessárias para chegar a um acordo que restabelecesse a confiança na UE e permitisse "dar a volta por cima". Conseguiram-no!
Como é próprio destes exercícios, o "tratado constitucional" -- que, apesar das alterações, não se afasta muito do projecto elaborada pela Convenção presidida por Giscard d'Estaing ao longo de 2002-2003 -- representa um compromisso de diversas correntes e sensibilidades, presentes na integração europeia desde a sua origem. Por um lado, entre a linha federalista e a linha soberanista nacional, mais uma vez protagonizados pelo Reino Unido; por outro lado, entre a linha mais liberal-conservadora e a linha social-progressista em matéria económica e social. O aprofundamento dos traços integracionistas é evidente (reforço dos poderes do PE, presidente permanente do CE, dependência da Comissão face ao PE, política externa e de defesa comum, explícita afirmação da primazia do direito comunitário sobre o direito nacional, etc.); mas isso está longe de representar o fim da soberania dos Estados-membros. A linha liberal do mercado único europeu, baseada na concorrência e na liberdade de estabelecimento, é reafirmada; mas os traços sociais saem igualmente reforçados ("economia social de mercado", "serviços de interesse económico geral", direitos sociais da carta de direitos fundamentais, etc.), viabilizando por isso o "modelo social europeu" e deixando amplitude suficiente para diferentes orientações políticas, de acordo com as forças políticas dominantes no PE, por um lado, e no Conselho Europeu e Conselhos de ministros, por outro lado.
Tomadas em consideração todas as inovações no seu conjunto, a Constituição Europeia constitui uma verdadeira refundação e reordenação da UE. Unificação institucional, pondo fim ao dualismo CE-UE, fusão dos respectivos tratados, melhor definição de princípios e das atribuições, incorporação da carta de direitos fundamentais, maiores poderes do Parlamento europeu, maior envolvimento dos parlamentos nacionais, presidente próprio do Conselho Europeu, regra da decisão por maioria qualificada (em vez da unanimidade), maior papel dos cidadãos (direitos fundamentais, iniciativa legislativa popular), política externa e defesa comum (incluindo um ministros dos negócios estrangeiros próprio) --, eis o conjunto de pontos principais que fazem da Constituição Europeia um notável passo em frente na transformação da UE em entidade política plurifuncional (e não somente votada a fins económicos, como era inicialmente a CEE) assente simultaneamente numa cidadania europeia e numa união de Estados. A nova definição de princípios e de atribuições e o novo quadro institucional (parte I), bem como a incorporação da carta de direitos fundamentais (Parte II), fazem toda a diferença em relação aos tratados existentes.
Com a aprovação da Constituição europeia conclui-se um processo iniciado na cimeira de Laeken (Bélgica) de Dezembro de 2001, que instituiu a "Convenção para o futuro da Europa", composta por representantes do PE e da Comissão, bem como dos parlamento e governos nacionais, a quem coube preparar o projecto do novo tratado. Tendo em conta essa composição, bem como a transparência e abertura dos seus trabalhos ao exterior, incluindo a participação de numerosas organizações da "sociedade civil europeia", e se juntarmos o acompanhamento público do debate nas cimeiras europeias até à sua aprovação final, pode afirmar-se sem margem para contestação que este tratado é de longe o que dispôs de maior participação procedimental. Basta comparar com o secretismo que rodeou entre nós a negociação da recente Concordata com o Vaticano, cujo texto só se conheceu depois da assinatura! Se há alguma coisa de que a Constituição europeia não pode ser acusada é de ter sido ?cozinhada? nas costas da opinião pública. Considerando que ela ainda vai ter de ser aprovada pelos parlamentos nacionais e/ou por referendos nacionais antes de ratificada pelos chefes de Estado dos 25, com o debate que esse processo desencadeará, então não será ousado dizer que poucas constituições nacionais, se alguma, terá alguma vez passado por tantos procedimentos e crivos democráticos.
A fase seguinte consiste justamente na aprovação e ratificação nacional da Constituição, de acordo com os procedimentos constitucionais de cada país. Nalguns bastará a aprovação parlamentar. Em vários dos Estados-membros haverá referendos, não estando garantido o seu desfecho favorável em alguns deles, nomeadamente no Reino Unido. Tudo indica que Portugal vai adoptar a via referendária, a ter em conta as posições tomadas pelas diversas forças políticas, do PND ao BE, não sendo de prever que o Presidente da República, a quem compete convocá-lo, rejeite uma proposta da AR nesse sentido. A importância do novo tratado constitucional justifica o referendo popular. No entanto, ele levanta vários problemas, nomeadamente a formulação da(s) pergunta(s) a serem colocadas aos cidadãos e a data mais apropriada para realizar a consulta popular.
Segundo a CRP não pode haver um voto popular directamente sobre o próprio texto do tratado constitucional, mas somente sobre questões concretas nele envolvidas. A dificuldade está em formular uma ou mais perguntas (preferivelmente só uma, par eliminar o risco de respostas discrepantes) que condensem o fundamental das questões políticas compreendidas na constituição europeia. Não se afigura ser tarefa fácil, sobretudo tendo em conta o critério exigente estabelecido nesta matéria pelo Tribunal Constitucional no caso da abortada tentativa de referendo europeu de 1998 sobre o tratado de Amesterdão.
Quanto à data do previsível referendo, afigura-se que ele deve ter lugar após as eleições regionais deste Outono, ainda este ano ou o mais tardar no início de 2005, ou seja, antes de a agenda política nacional começar a ser dominada pela aproximação do ciclo eleitoral iniciado pelas eleições locais de Outono do próximo ano. Sendo evidente que o referendo vai consistir numa opção "sim ou não", colocando face a face essencialmente as posições pró-UE (ou seja, o PSD e o PS) e as posições anti-UE ou eurocépticas à direita e à esquerda -- além dos desejáveis grupos cívicos independentes em ambos os campos --, há todo o interesse em que ele seja realizado tão longe quanto possível de disputas eleitorais, onde os alinhamentos políticos e partidários são muito diferentes.

(Público, 22 de Junho de 2004)

17 de junho de 2004

Uma resposta para os sobreendividados  

por Maria Manuel Leitão Marques

Em 2001, com o apoio da Secretaria de Estado para a Defesa do Consumidor, foi criado, em Coimbra, o Observatório do Endividamento dos Consumidores (OEC).
O seu objectivo principal era analisar a informação, no domínio do crédito aos consumidores, e realizar estudos comparativos que permitissem conhecer as principais tendências do endividamento das famílias. A investigação antes realizada, mostrava-nos que a democratização do crédito, sendo uma vantagem para a maioria das famílias, geraria necessariamente algumas situações graves de ruptura financeira.
Apesar de todo o apoio concedido ao OEC ter sido retirado no início de 2003, justamente quando o aumento do desemprego veio ampliar o risco de sobreendividamento, tornando, por isso, mais importante a sua monitorização, o Observatório continuou a acompanhar, na medida do possível, a evolução da conjuntura.
De então para cá, é com frequência que recebemos pedidos de apoio de famílias sobreendividadas que não sabem como gerir a sua situação financeira. O seu desespero é normalmente grande e a nossa dificuldade em lhes dar uma resposta eficaz também. Com efeito, salvo o Gabinete de Apoio aos Sobreendividados, mantido pela Deco, não existe qualquer outra instituição em Portugal de aconselhamento especializado para quem os possamos reencaminhar. E mesmo a sugestão de que devem tentar negociar com o credor só funcionará, com grande probabilidade, se a família sobreendividada tiver apenas uma dívida. Ora, a nossa experiência prova-nos que sobreendividamento e multiendividamento estão quase sempre associados. Nestes casos, é muito difícil ao devedor negociar sozinho com os seus diferentes credores um plano de reestruturação do passivo.
É por isso que, desde 1998, vimos defendendo a criação de um sistema de apoio aos sobreendividados que passe pelo aconselhamento, à primeira dificuldade, e pela mediação, quando o incumprimento se estende a vários créditos. Ou seja, entendemos que qualquer resposta mais judicializada ou formal, a existir, deverá ser sempre antecedida ou combinada com outra mais simplificada, célere, próxima das partes e co-responsabilizadora. Uma forma pouco onerosa de concretizar esta sugestão era a de capacitar os Centros Autárquicos de Informação ao Consumidor, que constituem uma rede de mais de meia centena de centros espalhados pelo país, para poderem desempenhar a função de aconselhamento em matéria de crédito ao consumo, no momento do endividamento e nas primeiras dificuldades de cumprimento.
Mais recentemente, sustentámos que a mediação poderia ter lugar nos julgados de paz, ainda que fosse necessário dar alguma formação especializada aos mediadores que neles trabalham.
Qualquer destas propostas tinha a vantagem de aproveitar a capacidade institucional já instalada, valorizando-a e requalificando-a, sem que para tal fossem exigidos recursos financeiros substanciais. Mas caíram em saco roto.
A política do consumidor desapareceu em 2002, provavelmente enterrada nas fundações de algum dos estádios que entretanto se construíram, sob tutela do mesmo ministro.
Pelo seu lado, o Ministério da Justiça preferiu optar por verter em lei sistema complexo, altamente judicializado, de tratamento da insolvência dos consumidores, o qual entrará em vigor no próximo mês de Setembro. Está contido no novo Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
Assim, no Observatório, continuaremos com o mesmo problema: o de não ter uma resposta para os pedidos de apoio às famílias sobreendividadas. Mandamo-las para os tribunais comuns, no âmbito do processo de insolvência, na certeza que esperarão muito tempo por uma solução, para além do custo financeiro do processo? Remetemo-las para a Deco como até aqui temos feito, sendo certo que esta associação tem apenas cinco delegações, além da sede no centro de Lisboa, e que não intervém quando já existem acções executivas instauradas? Ou apenas, com alguma angústia, ouvimos o relato do seu problema e respondemos que não está ao nosso alcance poder solucioná-lo?

(Diário Económico, 17 de Junho)

Contra-Regulação 

Por Luis Nazaré

A independência das autoridades reguladoras em Portugal poderá ter os dias contados. Se o Governo persistir no seu projecto de Lei Quadro das Entidades Reguladoras Independentes (ERI), pouco restará de um dos mais interessantes edifícios administrativos criados após o 25 de Abril. O novo dispositivo legal é aterrador, embora se lhe reconheça a marca de frontalidade da ministra da Reforma do Estado. De facto, não ficam quaisquer dúvidas sobre as suas intenções nem sobre os seus mecanismos. O que o Governo pretende, com toda a clareza, é a instrumentalização política, pura e dura, da actividade regulatória.
Quando, em Outubro de 2002, me referi a este assunto num artigo intitulado «O Império contra-ataca», publicado neste jornal (então semanário), mal imaginava que, menos de dois anos volvidos, brotaria da cabeça dos actuais governantes um tal atentado às regras e às práticas comunitárias no tocante ao funcionamento das entidades reguladoras.
Os autores do projecto-assassino revelam, aliás, um preocupante desconhecimento sobre esta matéria, ao ponto de o seu âmbito de aplicação (artigo primeiro) ser definido do seguinte modo: «Podem assumir a natureza de entidades administrativas independentes os institutos públicos que tenham como atribuição a regulação das condições do mercado de uma actividade em que o próprio Estado concorra, directa ou indirectamente, com entidades privadas, sempre que o interesse público envolvido na regulação imponha que a entidade reguladora não fique sujeita a superintendência do Governo no exercício dessa actividade». Duvido que alguém consiga discorrer, a partir de uma tal confusão de conceitos, quais os sectores e as entidades que são objecto do diploma. Senhores legisladores: a regulação, enquanto instrumento público de correcção de anomalias de mercado em certos sectores de actividade, é indiferente à natureza dos capitais sociais das empresas; haja ou não interesses accionistas do Estado, os sectores da energia, comunicações, águas, transportes, banca ou seguros, deverão estar sujeitos a regulação. Em que fonte da teoria económica ou mesmo do direito se foram os senhores inspirar? E quais são as «categorias» de interesse público que justificam a «sujeição [das ERI] à superintendência do Governo»? E que bons motivos explicam o regresso à condição de comuns institutos públicos, algo que todas as práticas internacionais contrariam?
Mas o pior ainda está para vir. As normas relativas à independência (artigo 3º), tutela (artigo 6º) e cessação de mandato (artigo 12º) são autênticos tiros de zagalote na independência das ERI. Se o projecto for avante, terão de passar a «observar os princípios orientadores das políticas sectoriais fixadas pelo Governo» e a estar sujeitos à sua fiscalização. Se não o fizerem, ou, presume-se, se interpretarem indevidamente os «princípios orientadores», ficam sujeitos a inquéritos, sindicâncias e processos disciplinares ordenados pela tutela. Do mesmo modo, os conselhos directivos (um termo certamente desenterrado das profundezas da Praça do Comércio) das ERI terão de se habituar a receber «advertências formais e escritas» sempre que desrespeitarem os tais «princípios orientadores», podendo mesmo vir a ser destituídos se reincidirem no «desrespeito». Para rematar, a própria intendência das ERI perde toda a sua autonomia. Do plano de actividades ao orçamento, da gestão de recursos humanos às normas contabilísticas, nada escapará ao controlo governamental.
Não, caro leitor, não é o script de uma ficção arrepiante. É a realidade da Reforma do Estado na versão drª Manuela Ferreira Leite. Talvez a senhora ministra tenha simplesmente confiado nos seus juristas e nos seus serviços, talvez a mão controleira da Horta Seca a tenha desviado de propósitos mais elevados, talvez a iminência de uma nova autoridade reguladora para a comunicação social tenha despertado velhas tentações. Talvez sim. Quando o diploma vir a luz do dia, ficaremos a conhecer melhor os seus mandantes e as suas intenções.

(Jornal de Negócios, 17 de Junho de 2004)

15 de junho de 2004

E todavia avança  

Por VITAL MOREIRA

No plano nacional, o que mais avulta nas eleições europeias é obviamente a rotunda vitória socialista, a grande amplitude da votação da esquerda conjugada e a profundidade da derrota da coligação governamental, que ultrapassou o que as sondagens indicavam. O PS ganhou decididamente a aposta no "cartão amarelo" ao Governo; a coligação governamental sofreu um severo castigo.
A grande abstenção, embora superior à média da UE, ficou porém abaixo das piores perspectivas, dadas as condições especialmente desfavoráveis à mobilização eleitoral. Em qualquer caso, não tem sentido tentar desvalorizar o significado político do resultado eleitoral (tipo "quem ganhou foi a abstenção"), como alguns na área da coligação governamental tentaram, até porque não existe nenhuma indicação de que os abstencionistas se contaram sobretudo entre os possíveis apoiantes do Governo. Numa democracia eleitoral quem conta são os que votam e não os que o não fazem.
Com esta expressiva vitória eleitoral, a maior de sempre do PS em termos de percentagem eleitoral - que numas eleições legislativas lhe garantiria provavelmente uma maioria absoluta na Assembleia da República -, Ferro Rodrigues consolida naturalmente a sua posição de secretário-geral face aos opositores internos, tendo praticamente assegurada a sua liderança até às eleições legislativas de 2006. Um tema a menos na agenda da especulação política.
A vitória socialista é tanto mais de sublinhar quanto ela não foi conseguida à custa dos partidos à sua esquerda, numa lógica de "voto útil", visto que o PCP se aguentou relativamente bem, tendo baixado pouco, enquanto o Bloco de Esquerda protagonizou a subida mais espectacular em relação às suas anteriores prestações eleitorais. Numas eleições legislativas, seria de admitir uma maior pressão para a concentração de votos, pelo que o "score" do PS poderia sair reforçado. Em qualquer caso, a soma dos três partidos representa a maior votação de sempre da esquerda.
Simetricamente, os partidos da coligação de direita sofreram a sua maior derrota de sempre, conseguindo piorar os resultados das europeias de há cinco anos, já de si muito pobres. Comparados com as legislativas de 2002, estes resultados representam um desastre eleitoral. Ora, se existe alguma convergência na análise destas eleições, é que elas foram sobretudo um castigo do desempenho do Governo nesta primeira metade do seu mandato.
Além de precipitar provavelmente mexidas na composição do executivo, este desaire vai seguramente acentuar as tensões dentro da coligação, designadamente quanto ao peso excessivo do CDS-PP. Além disso, são de esperar pressões para a suspensão ou inversão de algumas políticas, nomeadamente as que têm impacto mais negativo sobre a opinião pública, pondo em causa a continuidade de algumas das reformas em curso. Terceiro, com a aproximação das eleições locais de 2005, os autarcas do PSD vêem nestes resultados um forte perigo (muitos presidentes de câmara, a começar em Lisboa, perderiam o seu mandato se estas fossem eleições locais), o que os levará a tornar-se especialmente reivindicativos face ao Governo. Finalmente, face à grande dimensão da derrota, é provável que instale a dúvida sobre se a incerta retoma económica ainda virá a tempo de favorecer os partidos da coligação governamental nas eleições legislativas de 2006. Tudo somado não seria de admirar que se iniciasse um período de assinalável agitação e nervosismo quer na coligação quer no seio de cada um dos partidos integrantes, especialmente o PSD, o principal perdedor destas eleições.
Uma das curiosidades destas eleições era a prestação do novo PND, de Manuel Monteiro. Foi uma decepção, tanto mais que o CDS-PP estava constrangido na sua posição eurocéptica pela sua inclusão na coligação. Definitivamente não existe espaço em Portugal para a direita antieuropeia. Desse ponto de vista, as eleições europeias foram um triunfo esmagador das posições europeístas entre nós, o que deixa perspectivas optimistas para o prometido referendo sobre a futura Constituição europeia.
A nível europeu, alguns dos traços marcantes destas eleições são comuns ao caso português. Verifica-se desde logo o crescimento da abstenção, sendo a participação eleitoral especialmente baixa na generalidade dos novos Estados-membros. O segundo traço geral foi a punição dos governos em funções, fossem de esquerda (Reino Unido, Alemanha, Polónia) ou de direita (França ou Itália, embora aqui com expressão muito reduzida), com excepção dos países com governos recentes (como a Espanha e a Grécia). Claramente, tal como em Portugal, as eleições europeias foram aproveitadas para assinalar o descontentamento face ao mau desempenho da economia e às reformas dos serviços públicos (saúde, segurança social, educação, etc.), a que se somou noutros casos uma punição pela participação na guerra do Iraque (Reino Unido, Polónia, etc.). Neste aspecto são verdadeiramente estrondosas as derrotas do Partido Trabalhista britânico, do Partido Social-Democrata alemão e da coligação social-democrata polaca. Já os partidos da coligação de direita italiana, que se apresentaram isoladamente a eleições, conseguiram resultados menos negativos do que se esperava.
No que respeita aos partidos antieuropeus, a imagem é assaz mista. Há países onde as forças nacionalistas de direita perderam deputados (por exemplo na Áustria) e outros onde mantiveram ou ganharam posições, como em França ou sobretudo no Reino Unido e na Polónia. Tudo somado, as posições antieuropeístas averbaram um reforço no Parlamento Europeu, revelando o aumento do desencanto da UE em alguns países. Em todo o caso, com excepção do Reino Unido, os resultados eleitorais deixam algum optimismo quanto à ratificação doméstica da Constituição europeia, que está em vias de ser aprovada. O caso mais bicudo é naturalmente o britânico, não somente pelo crescimento do apoio ao Partido Independentista, militantemente antieuropeu, mas também pela posição fortemente eurocrítica do próprio Partido Conservador.
Apesar de manter o maior grupo parlamentar no PE, o PPE ficou aquém das expectativas quanto ao reforço das suas posições, o que pode ser relevante quanto à política de alianças para a formação de maiorias, incluindo no que respeita à ratificação da composição da Comissão Europeia, a começar pela aprovação do respectivo presidente.
Em suma, as eleições europeias ainda não versam principalmente sobre questões europeias. Ainda não são determinantes na escolha do governo europeu e na orientação das respectivas políticas. Sofrem de baixa participação eleitoral, claramente inferior à das eleições internas. Mas o simples facto de se realizarem e de mobilizarem centenas de milhões de eleitores em 25 países, dos Açores a Chipre e da Madeira à Lapónia, testemunha a vitalidade do projecto europeu. Há cinco décadas, mesmo os mais visionários dos pais fundadores da integração europeia não imaginariam este prodígio. Apesar de tudo, a UE avança.

(Público, Terça-feira, 15 de Junho de 2004)

8 de junho de 2004

Os Parlamentos Nacionais?  

Por VITAL MOREIRA

Durante muito tempo, a construção europeia foi feita nas costas dos parlamentos dos Estados-membros. A transferência de funções para a esfera comunitária significava automaticamente que aqueles perdiam poderes políticos e legislativos nas áreas correspondentes, que passavam a ser exercidos pelas instituições comunitárias, designadamente o Conselho de Ministros e a Comissão (e mais tarde o Parlamento Europeu), à margem daqueles.
Por um lado, os parlamentos nacionais estiveram durante muito tempo privados, na ordem doméstica, de meios de controlo eficazes sobre as posições e decisões assumidas pelos seus governos nas instâncias comunitárias, desde logo no que respeitava à produção legislativa ou paralegislativa (regulamentos e directivas comunitárias). Os procedimentos comunitários, incluindo os procedimentos legislativos, eram demasiado opacos para poderem ser tempestivamente acompanhados pelos parlamentos nacionais; além disso, faltaram durante muito tempo instrumentos adequados para chamar os governos a prestar contas internamente pela sua actuação em Bruxelas. A construção europeia implicou por isso uma acentuada governamentalização das áreas de decisão comunitarizadas, em prejuízo dos parlamentos. É mesmo de admitir que uma parte da transferência de poderes para a CE/UE se deveu também ao interesse dos governos em fugirem às competências e ao escrutínio dos respectivos parlamentos.
Por outro lado, os parlamentos nacionais têm estado desde o início afastados de participação directa na integração europeia, quer quanto ao procedimento de revisão dos tratados (salvaguardada a aprovação final para ratificação) quer no respeitante ao desempenho das competências das instituições comunitárias. Além disso, com excepção da inicial indicação da representação nacional no Parlamento Europeu, antes de este passar a ser eleito directamente, os parlamentos nacionais também não têm nenhuma participação na designação dos candidatos nacionais a cargos comunitários (comissários, juízes, etc.). Estabeleceu-se assim uma espécie de "apartheid" entre a esfera parlamentar nacional e esfera comunitária.
Com o tempo, porém, os parlamentos nacionais foram-se munindo de instrumentos para fiscalizar internamente a actuação dos respectivos governos a nível comunitário. Sendo uma questão do foro interno, as soluções variam de país para país, sendo mais intenso nuns do que noutros o papel dos parlamentos. Assim, entre nós, apesar da existência de uma norma constitucional explícita, o escrutínio da Assembleia da República sobre a condução governamental da política comunitária, incluindo sobre o exercício de poderes legislativos comunitários ou a celebração de convenções internacionais da CE/UE com terceiros, nunca foi muito forte, mesmo no caso de afectar o âmbito da competência reservada da AR a nível interno. O recente episódio do tratado com os Estados Unidos em matéria de extradição testemunha o notável défice de acompanhamento parlamentar das questões comunitárias.
Já no que respeita à participação directa da Assembleia da República nos assuntos da UE, o alheamento tradicional só foi substancialmente modificado com a introdução do "método da convenção", pela primeira vez na preparação da Carta de Direitos Fundamentais da UE (1999-2000) e posteriormente na preparação do projecto de Constituição europeia (2002-2003), agora em vias de ser aprovada a nível da "conferência intergovernamental". Na verdade, esses dois importantes documentos foram previamente debatidos e consensualizados no seio de um órgão "ad hoc", não previsto nos tratados, composto por representantes do Parlamento Europeu (PE) e dos parlamentos nacionais, bem como de outras instâncias comunitárias (especialmente a Comissão) e dos governos nacionais. O que importa aqui destacar é o considerável papel atribuído aos parlamentos nacionais na preparação e adopção destes documentos "constitucionais" da UE, em comparação com a anterior reserva destas matérias aos governos dos Estados-membros, eventualmente com a intervenção auxiliar das instâncias comunitárias (Comissão e PE).
Ora, uma das grandes novidades do projecto de Constituição europeia é justamente a institucionalização da intervenção dos parlamentos nacionais na vida da UE. Por um lado, o método convencional tornar-se-á norma no procedimento de futuras revisões da própria Constituição. Além de impor a notificação imediata de todas as propostas de alteração constitucional aos parlamentos nacionais, o tratado constitucional torna obrigatório o estabelecimento de uma "convenção" - com a referida composição mista -, encarregada de analisar os projectos de revisão constitucional apresentados e adoptar uma recomendação sobre eles (salvo quando se tratar de alterações de pequeno alcance).
Os mecanismos de participação dos parlamentos nacionais na vida da UE previstos no novo tratado constitucional não se ficam por aqui. Um dos protocolos anexos é mesmo especificamente dedicado ao "papel dos parlamentos nacionais na UE". Assim, impõem-se obrigações de informação sistemática dos parlamentos nacionais em relação a todos os documentos de política e todas as iniciativas legislativas da Comissão Europeia, as ordens do dia e as actas das sessões do Conselho de Ministros em matéria legislativa, etc. Institucionalizam-se formas de cooperação dos parlamentos nacionais entre si e com o PE, incluindo a realização de conferências das comissões parlamentares de assuntos europeus, com o poder de adoptar sugestões e recomendações ao PE.
A mais importante inovação nesta área é todavia a possibilidade de os parlamentos nacionais contestarem qualquer iniciativa comunitária à luz do "princípio da subsidiariedade", pondo em causa o cabimento da competência da UE nesse caso, por a matéria poder ser tratada melhor a nível nacional. Se pelo menos 1/3 dos parlamentos nacionais convergirem numa objecção dessas, a Comissão Europeia tem de proceder a uma nova análise da iniciativa, fundamentando a sua decisão. E se esta insistir na iniciativa, fica aberto o caminho para a contestação jurídica da mesma junto do Tribunal de Justiça da UE.
Se a Constituição vier a ser adoptada, sabemos que o Parlamento Europeu verá as suas competências muito aumentadas no contexto das instituições comunitárias. Mas o mesmo sucederá com o papel dos parlamentos nacionais na vida da UE. Em ambos os casos existem razões para aplaudir. A UE só ganha em democraticidade e em legitimidade política.

(Público, Terça-feira, 8 de Junho de 2004)

4 de junho de 2004

Má educação  

Vicente Jorge Silva

Em "Má Educação", o último Almodóvar, as laboriosas marcas do espartilho conceptual do argumento (o filme dentro do filme, a duplicação das personagens, o jogo das identidades equívocas) acabam por abafar o golpe de asa criativo que tinha feito voar as suas duas obras anteriores: "Tudo Sobre a Minha Mãe" e "Fala Com Ela".

Almodóvar quis sublimar uma obsessão freudiana da sua história pessoal que há longo tempo o perseguia. Por isso, ao investimento nas emoções do melodrama preferiu aqui a intelectualização de um frio distanciamento. Mas, com Almodóvar, a decepção é sempre relativa. E "Má Educação" é um filme que trata assuntos sórdidos com uma inteligência, uma contenção, uma recusa de demagogia, que não deixam lugar a mensagens rudimentares.

Só a infinita estupidez de influentes meios eclesiásticos fez com que "Má Educação" beneficiasse de uma intensa promoção pela negativa (e sabe-se que quanto mais o fruto é proibido tanto mais é apetecido). Tomou-se "Má Educação" por um manifesto simplista contra a hipocrisia da Igreja Católica em matéria de internatos escolares, sexualidade e pedofilia (tema que está no centro do filme mas não resume, longe disso, a sua complexidade). Obviamente, isso favoreceu a campanha de lançamento de "Má Educação". Com o seu sagaz instinto publicitário, Almodóvar aproveitou uma onda que, em Portugal, pode ser facilmente cavalgada no processo Casa Pia. E como Deus escreve direito por linhas tortas, "Má Educação" servirá para evocar um dos aspectos que acabou por ser praticamente escamoteado desse caso: o papel da Casa Pia e outras pias instituições congéneres na "má educação" administrada às crianças e adolescentes entregues à sua guarda.

Precisamente, poucos dias depois da estreia de "Má Educação", a juíza Ana Teixeira e Silva, que sucedeu a Rui Teixeira na instrução do processo Casa Pia, pronunciou sete arguidos e despronunciou outros três que haviam sido acusados de atentados sexuais contra menores. Atendendo à notoriedade de algumas figuras envolvidas, é natural que todo o mundo -- a começar pelos media -- tenha concentrado a sua atenção nos nomes dos protagonistas e nos motivos invocados para a sua comparência ou não na barra do tribunal. Os aspectos judiciais e também políticos do caso -- que são, aliás, da maior relevância -- fizeram no entanto esquecer uma referência da juíza à dimensão assustadora que os crimes pedófilos haviam atingido no interior da instituição à qual tinham sido confiadas gerações sucessivas de crianças e adolescentes desde muito antes do 25 de Abril. O folhetim das perversões sexuais praticadas contra inocentes indefesos atravessam a ditadura e o regime democrático. Resta-nos apenas a consolação de só em democracia ter sido possível enfrentar o sinistro segredo - como acontece, aliás, no filme de Almodóvar. À força de falar-se de rede pedófila -- que a investigação judicial, escandalosamente parcial e incompetente, foi incapaz de reconstituir -- e de se especular sobre os nomes dos famosos e poderosos nela comprometidos, perdeu-se a noção da origem do mal. Um mal que, como mostra o filme de Almodóvar (embora essa seja, insisto, apenas uma das faces de "Má Educação"), põe em causa a natureza de entidades a quem o Estado e a Igreja -- coligados ou separados -- atribuíram a protecção e formação de menores desprotegidos. Se analisarmos as proporções internacionais desse escândalo (que abalou os alicerces da Igreja Católica nos Estados Unidos, por exemplo) verificamos a existência de um padrão comum de situações e comportamentos, pondo a nu a hipocrisia e a podridão moral no seio de instituições que era suposto representarem valores inatacáveis de vocação pia e boa-consciência social. Ora, o que está em causa na Casa Pia é a sua própria natureza como instituição. A "má educação" deriva da lógica moral de um universo concentracionário (seja ele qual for), do mesmo modo que o vício medra nas encenações hipócritas da virtude.

Mas o caso Casa Pia despoletou e fez convergir outros sintomas de "má educação". Vimos, assim, que a justiça e uma parte dos media estavam sintonizados e objectivamente cúmplices no culto do "voyeurismo" mais sórdido suscitado pelo escândalo. Chegou-se à ponta do icebergue mas não à sua parte oculta e submersa. Justiça tabloide e jornalismo tabloide deixaram-se embriagar pela caça aos notáveis, aos políticos e aos poderosos, numa vindicta de óbvia arbitrariedade selectiva. Só que tudo isso resultou numa magra colheita simbólica que não confirmou a extensão da rede pedófila anunciada, além de revelar uma fixação obsessiva em personalidades da oposição, desvalorizando ou escamoteando as suspeitas e indícios relativos a figuras da maioria governamental. Entretanto, porém, tinham ocorrido atentados sistemáticos ao Estado de direito: prisões preventivas abusivas, escutas telefónicas indiscriminadas envolvendo o maior partido da oposição, listas de identificação de suspeitos potenciais estabelecidas com critérios absurdos. A paranóia persecutória da justiça e dos media tabloidizados desenvolveu-se em total impunidade, até se perceber que a montanha tinha parido um rato e que, à custa disso, o sistema judicial, girando em roda livre, se aproximava do colapso. Pretende-se, agora, que o despacho de pronúncia da juíza Ana Teixeira e Silva repõe um pouco de ordem no caos precedente - e que o equilíbrio das razões desse despacho absolveria o caos motivado pela "má educação" da justiça. Nada mais errado. O despacho da sucessora de Rui Teixeira prova precisamente o contrário: a subjectividade das razões judiciais é de tal modo aleatória e errática que nos faz duvidar da própria racionalidade da justiça.

Por coincidência, o tema da "má educação" acabou também por estar em foco na campanha para as eleições europeias. António José Teixeira - o mais equilibrado e isento dos comentadores políticos televisivos - defendia há dias, na SIC-Notícias, que não se deveria atribuir demasiada importância à deriva da linguagem (ou seja, dos insultos) nesta campanha, até porque já havia precedentes na matéria (como o inenarrável manifesto Candal contra Paulo Portas) e porque, no fundo, se tratava de uma estratégia da coligação da direita para desvalorizar umas eleições cujo resultado ameaça ser-lhe muito desfavorável. Percebo esses argumentos mas não os partilho. Por um lado, porque o manifesto anti-Portas constituiu um acto puramente isolado e sem conexão com o tom da campanha onde era suposto inserir-se. Mas sobretudo porque a convergência reiterada dos insultos -- visando características físicas de Sousa Franco -- não pode ser ocasional, nem gratuita, nem meramente "estratégica".

Por mais genuínas que consideremos as desculpas apresentadas por João de Deus Pinheiro acerca disso, a sua boa educação de "gentleman" contrasta, de modo claramente excêntrico, com a má educação ostensiva de alguns que participam com ele na batalha eleitoral. Ora, essa má educação é um sintoma de degradação dos costumes de civilidade política, que tem sido possível constatar, recentemente, no comportamento de alguns deputados da maioria parlamentar e figuras relevantes do Governo, como Manuela Ferreira Leite. O "ajardinamento" de linguagem do PSD, que referi na minha crónica da semana passada, é um facto que merece reflexão. Até porque coincide, significativamente, com a crescente tutela ideológica do PP sobre a coligação governamental, como vem sendo possível observar no Parlamento. A má educação assume muitas formas, desde o filme de Almodóvar, passando pelo caso Casa Pia, até ao estilo da campanha eleitoral da coligação Força Portugal. Mas essas formas disfarçam realidades que se querem ocultas e são, quase sempre, inconfessáveis.

(Diário Económico, 4 de Junho de 2004)

Bons banhos! 

Luis Nazaré

A maioria dos portugueses de género masculino confronta-se, há muitos anos, com um sério problema de logística - o bilhete de identidade não lhes cabe na carteira.
Chegou a nova época balnear. Preocupado como estou com o bem-estar dos decisores da pátria, aqui deixo algumas sugestões refrescantes.
1. A maioria dos portugueses de género masculino confronta-se, há muitos anos, com um sério problema de logística - o bilhete de identidade não lhes cabe na carteira. Quando, em Dezembro de 2002, o PS apresentou na Assembleia da República um projecto de lei para a criação de um cartão multiusos de identificação digital - designado por Cartão do Cidadão -, ainda tive a leve esperança de o texto ser aprovado. Bem sei que as maiorias confiantes desprezam sempre as propostas das minorias, mas, que diabo, a ideia era a todos os títulos louvável, estava conceptualmente bem construída e era tecnicamente exequível. Por que não levá-la à prática e disso retirar dividendos em benefício próprio?
Foi um chumbo redondo. A recusa da maioria baseou-se, entre dois ou três outros argumentos menores, na intenção governamental de, a breve trecho, levar por diante um projecto ainda mais ambicioso, conduzido pela UMIC. O Cartão do Cidadão pretendia integrar cinco cartões num só (BI, contribuinte, eleitor, segurança social e utente)? O cartão do ministro Arnaut teria o céu como limite, seria um caso mundial de sucesso! Read my lips.
Um ano e meio depois, nada. Pior ainda - não existe qualquer projecto em preparação nem haverá seguramente quaisquer novidades sobre a matéria até ao fim da actual legislatura. Continuaremos com a carteira a abarrotar de cartões e a não sabermos o que fazer do desgraçado bilhete de identidade. José Luís Arnaut anda ocupado com o Euro e Diogo Vasconcelos está visivelmente cansado. Recomendo ao ministro-adjunto a praia do Guincho, cuja água gelada dizem ser capaz de dar alma aos tecidos mais inertes. Ao gestor da UMIC sugere-se uma cura revigorante de talassoterapia em Vilalara.
2. O comité de sábios do dossiê Galp tomou a decisão patriótica que o país reclamava. Ao excluir a Luso-Oil de Carlucci, tranquilizou a consciência colectiva e contribuiu para o programa nacional de retoma da auto-estima. Ganhe quem ganhar, o mundo inteiro fica a saber que a Galp jamais cairá em mãos estrangeiras. Nada melhor para os três sábios do que uns bem merecidos mergulhos na praia Amorosa, junto à foz do rio Neiva.
3. Vem aí a privatização das OGMA. Segundo o ministro da Defesa, a fatia de capital a alienar será de 30 a 65 por cento. O que ninguém conhece, como vem sendo habitual, são os critérios de escolha e o cronograma decisional. Assim, florescem os rumores e as desconfianças. Os espíritos mais conspirativos vão ao ponto de pensar que as pobres OGMA estão condenadas ao calendário e às conveniências das compras de aviões militares.
Por mim, não acredito. Sei que o interesse nacional prevalecerá. Tenho a certeza de que a empresa não se converterá numa estação de serviço de um qualquer fabricante global, numa espécie de Sorefame da aeronáutica, condenada à sorte das influências e dos jogos intermédios. Tenho a certeza de que a perspectiva de criação de valor, assente numa base industrial sólida, vencerá os pequenos (?) interesses mercantis. Tenho, por fim, a certeza de que Paulo Portas saberá erguer bem alto a bandeira do progresso, mesmo que à custa de inconfessáveis ganhos de curto prazo. Com os olhos da nação postos em si e na sua coragem, o ministro da Defesa bem merece uns banhos tonificantes na praia dos Tomates.
4. O folhetim dos grémios patronais está para durar. Descontentes com o status quo e com a profusão de estruturas confederativas, a AIP e a AEP decidiram construir a sua própria torre de marfim. Rivais mas irmanados no desejo de ocupar o lugar da CIP, Rocha de Matos e Ludgero Marques decidiram-se desta vez a dar um passo em frente. Críticos como são da modorra lusitana, optaram por seguir as melhores práticas nacionais em matéria organizacional. Nada de soluções falsamente simples e práticas, nada de facilitismos, que a preparação é a base de tudo. Vai daí, criaram uma comissão instaladora para a nova super-estrutura, mandatada para encetar negociações com as incumbentes (CIP, CCP, CTP,CAP) com vista à sua assimilação. É uma tarefa árdua, tão árdua que já levou ao alargamento do comité de três para cinco pessoas. Suspeito, porém, que o grau de exigência do processo não deixará as coisas por aqui. Sempre na linha das melhores práticas, preparemo-nos para uma lógica moderna de governance na estrutura instaladora - a breve trecho, haverá um chairman, um CEO e não-sei-quantos administradores não-executivos. Ah, que bom podermos aprender com quem sabe!
As praias da Boa Nova (próxima do Porto) e da Terra Estreita (no concelho de Tavira) são as escolhas naturais para todos os que, de norte a sul, militam pela nobre causa associativa. Bons banhos

(Jornal de Negócios, 3 de Junho de 2004)

1 de junho de 2004

Para além da Concordata  

Por Vital Moreira

Num colóquio realizado na Universidade Católica sobre a nova Concordata, o prof. Sousa Franco, um dos negociadores do acordo por parte do Vaticano, declarou que ela "não vai mudar muita coisa". Na verdade, ela não representa, em alguns casos infelizmente, uma mudança global em relação à Concordata de 1940. Mas seria lamentável que ela não constituísse uma ocasião oportuna para alterar muitas coisas que, embora sem fundamento no texto concordatário, representam inaceitáveis infracções do princípio da separação entre o Estado e as confissões religiosas e situações de injustificado privilégio da Igreja Católica face às demais confissões religiosas.
Na verdade, algumas das mais ostensivas situações de envolvimento da Igreja Católica na esfera oficial do Estado não têm nenhuma cobertura na Concordata (nem poderiam ter, por serem manifestamente inconstitucionais), constituindo sobrevivências ou revivescências de um situação de integração entre o Estado e a Igreja Católica ou pelo menos de preferência católica do Estado que deveria dar-se por definitivamente superada.
Porventura a mais importante situação destas, sob o ponto de vista simbólico, é a presença de símbolos religiosos, nomeadamente crucifixos, em locais oficiais, por exemplo, em escolas. Embora longe de ser uma situação generalizada, não é uma ocorrência tão rara quanto se pode imaginar. Parece evidente que essa situação tinha sentido quando havia uma religião oficial (antes de 1910) ou oficiosa (durante o Estado Novo). Mas não tem nenhum sentido num Estado constitucionalmente aconfessional, por definição neutro e indiferente em matéria religiosa.
Uma das mais graves violações do princípio da separação é, porém, a celebração de cerimónias religiosas por decisão ou encomenda oficial, por exemplo missas ou cerimónias fúnebres. A incompatibilidade destas situações com os princípios constitucionais não poderia ser mais evidente, só sendo de admirar como é que elas podem ainda ocorrer nos dias de hoje. Obviamente não está excluída a realização dessas cerimónias por ocasião de eventos ou cerimónias oficiais, desde que promovidas paralelamente a título particular. É o que sucede, por exemplo, com a inauguração do ano judicial, em que os magistrados católicos mandam celebrar uma missa. Eis um exemplo que poderia ser seguido noutras circunstâncias em que a iniciativa é indevidamente tomada pelas próprias autoridades.
De idêntico teor são as cerimónias religiosas associadas à inauguração oficial de obras públicas (estradas, edifícios públicos, etc.) ou de outras realizações públicas. Talvez seja esta a mais frequente e ostensiva das situações de mistura religiosa em actos oficiais, comprometendo ilicitamente o princípio da separação. Também aqui não seria impossível realizar a cerimónia religiosa à margem da inauguração oficial, por iniciativa de alguma entidade ou associação religiosa e sob sua responsabilidade. O que é ilegítimo não é obviamente o acto religioso, mas sim a sua inserção oficial numa iniciativa da responsabilidade de uma entidade pública.
Porventura a mais formal infracção do princípio da separação seja a graduação militar dos eclesiásticos que prestam assistência religiosa nas Forças Armadas. É estranho como é que tanto as Forças Armadas como a própria Igreja convivem com esta situação, a qual, além de não ser necessária para assegurar aos militares católicos a assistência religiosa a que têm direito, constitui uma flagrante confusão entre cargos militares e papéis religiosos. Nos comentários até agora produzidos acerca deste ponto na nova Concordata diz-se, com razão, que ela deixa em aberto as formas de organizar a assistência religiosa nas Forças Armadas. Mas é de excluir liminarmente que entre as formas de o fazer esteja a que actualmente vigora.
A mais frequente presença católica na esfera oficial é seguramente a das cerimónias públicas, assegurando o protocolo oficial um lugar de destaque ao representante da Igreja Católica entre as personalidades oficiais. O que está em causa não é somente a questão do patente privilégio em relação às demais confissões religiosas, que não são sequer convidadas, mas sim a própria ideia de conferir a um representante religioso um lugar proeminente em iniciativas do Estado. É mais do que tempo de lhe pôr cobro.
Uma das situações mais contestáveis é o financiamento público da Igreja Católica, nomeadamente no que diz respeito aos subsídios para a construção de edifícios religiosos e outras iniciativas religiosas. Não está em causa naturalmente o financiamento público das iniciativas sociais das organizações católicas, designadamente das numerosas IPSS católicas, que se integra na política de apoio público ao chamado "terceiro sector", independentemente da natureza religiosa ou não dessas organizações de solidariedade social. O que importa aqui é somente o financiamento público de iniciativas estritamente religiosas, que não é conciliável com o princípio da separação. A nova Concordata garante a disponibilidade de terrenos para fins religiosos (embora não esclareça se é a título gratuito), bem como o financiamento público da manutenção dos edifícios religiosos que sejam considerados como património nacional protegido. Mas não garante mais do que isso (desde logo porque não poderia fazê-lo), nomeadamente o custeamento de tais edifícios ou de outras iniciativas religiosas, o qual não tem fundamento constitucional, nem legal.
Uma derradeira situação de privilégio criada sub-repticiamente à margem da Concordata (e da Constituição) foi a noção de "ensino concordatário", como tipo específico de ensino à margem do ensino público e do ensino particular, criada há uns 15 anos para dar cobertura à situação de privilégio legal da Universidade Católica face às demais universidades não públicas. A mistificação desse conceito era tanto mais flagrante quanto é certo que a Concordata de 1940 não lhe dava o mínimo esteio textual, sendo antes explícita em considerar as escolas católicas nos mesmos termos das demais do ensino particular. A nova Concordata garante a liberdade de criação de escolas católicas, que aliás está constitucionalmente assegurada, mas também não lhes confere nenhum privilégio em relação às demais escolas não públicas. E quanto à Universidade Católica, para além de a reconhecer explicitamente, limita-se a assegurar a sua "especificidade institucional", o que preserva a sua natureza jurídica e organização interna própria, mas em nada afecta os seus direitos e obrigações face ao Estado em comparação com as demais universidades não públicas, designadamente no que respeita aos requisitos de criação de cursos e de reconhecimento graus, de apoio financeiro, etc. A noção de "ensino concordatário" (apesar de entretanto constar de várias leis) continua a ser tão abusiva como antes à face do novo texto concordatário -, para além de constitucionalmente apócrifa, bem entendido.
A Concordata de 1940 instituiu sem dúvida um regime de protecção especial e de privilégio da Igreja Católica face aos Estado e às demais igrejas, situação que a nova Concordata manteve em alguns aspectos. Mas nem a anterior nem muito menos a nova podem servir de justificação para muitas situações de violação mais ou menos ostensiva do princípio da separação e de igualdade de tratamento das diversas confissões religiosas, estabelecidas na prática ou mesmo previstas nas leis. Agora que a Lei de Liberdade Religiosa garantiu os direitos das demais igrejas e que a nova Concordata moderou as regalias da Igreja Católica, é altura de proceder à harmonização da prática pública e da leis com os princípios constitucionais em matéria de liberdade e igualdade religiosa e de separação entre o Estado e a religião

(Público, Terça-feira, 01 de Junho de 2004)

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