8 de junho de 2004
Os Parlamentos Nacionais?
Por VITAL MOREIRA
Durante muito tempo, a construção europeia foi feita nas costas dos parlamentos dos Estados-membros. A transferência de funções para a esfera comunitária significava automaticamente que aqueles perdiam poderes políticos e legislativos nas áreas correspondentes, que passavam a ser exercidos pelas instituições comunitárias, designadamente o Conselho de Ministros e a Comissão (e mais tarde o Parlamento Europeu), à margem daqueles.
Por um lado, os parlamentos nacionais estiveram durante muito tempo privados, na ordem doméstica, de meios de controlo eficazes sobre as posições e decisões assumidas pelos seus governos nas instâncias comunitárias, desde logo no que respeitava à produção legislativa ou paralegislativa (regulamentos e directivas comunitárias). Os procedimentos comunitários, incluindo os procedimentos legislativos, eram demasiado opacos para poderem ser tempestivamente acompanhados pelos parlamentos nacionais; além disso, faltaram durante muito tempo instrumentos adequados para chamar os governos a prestar contas internamente pela sua actuação em Bruxelas. A construção europeia implicou por isso uma acentuada governamentalização das áreas de decisão comunitarizadas, em prejuízo dos parlamentos. É mesmo de admitir que uma parte da transferência de poderes para a CE/UE se deveu também ao interesse dos governos em fugirem às competências e ao escrutínio dos respectivos parlamentos.
Por outro lado, os parlamentos nacionais têm estado desde o início afastados de participação directa na integração europeia, quer quanto ao procedimento de revisão dos tratados (salvaguardada a aprovação final para ratificação) quer no respeitante ao desempenho das competências das instituições comunitárias. Além disso, com excepção da inicial indicação da representação nacional no Parlamento Europeu, antes de este passar a ser eleito directamente, os parlamentos nacionais também não têm nenhuma participação na designação dos candidatos nacionais a cargos comunitários (comissários, juízes, etc.). Estabeleceu-se assim uma espécie de "apartheid" entre a esfera parlamentar nacional e esfera comunitária.
Com o tempo, porém, os parlamentos nacionais foram-se munindo de instrumentos para fiscalizar internamente a actuação dos respectivos governos a nível comunitário. Sendo uma questão do foro interno, as soluções variam de país para país, sendo mais intenso nuns do que noutros o papel dos parlamentos. Assim, entre nós, apesar da existência de uma norma constitucional explícita, o escrutínio da Assembleia da República sobre a condução governamental da política comunitária, incluindo sobre o exercício de poderes legislativos comunitários ou a celebração de convenções internacionais da CE/UE com terceiros, nunca foi muito forte, mesmo no caso de afectar o âmbito da competência reservada da AR a nível interno. O recente episódio do tratado com os Estados Unidos em matéria de extradição testemunha o notável défice de acompanhamento parlamentar das questões comunitárias.
Já no que respeita à participação directa da Assembleia da República nos assuntos da UE, o alheamento tradicional só foi substancialmente modificado com a introdução do "método da convenção", pela primeira vez na preparação da Carta de Direitos Fundamentais da UE (1999-2000) e posteriormente na preparação do projecto de Constituição europeia (2002-2003), agora em vias de ser aprovada a nível da "conferência intergovernamental". Na verdade, esses dois importantes documentos foram previamente debatidos e consensualizados no seio de um órgão "ad hoc", não previsto nos tratados, composto por representantes do Parlamento Europeu (PE) e dos parlamentos nacionais, bem como de outras instâncias comunitárias (especialmente a Comissão) e dos governos nacionais. O que importa aqui destacar é o considerável papel atribuído aos parlamentos nacionais na preparação e adopção destes documentos "constitucionais" da UE, em comparação com a anterior reserva destas matérias aos governos dos Estados-membros, eventualmente com a intervenção auxiliar das instâncias comunitárias (Comissão e PE).
Ora, uma das grandes novidades do projecto de Constituição europeia é justamente a institucionalização da intervenção dos parlamentos nacionais na vida da UE. Por um lado, o método convencional tornar-se-á norma no procedimento de futuras revisões da própria Constituição. Além de impor a notificação imediata de todas as propostas de alteração constitucional aos parlamentos nacionais, o tratado constitucional torna obrigatório o estabelecimento de uma "convenção" - com a referida composição mista -, encarregada de analisar os projectos de revisão constitucional apresentados e adoptar uma recomendação sobre eles (salvo quando se tratar de alterações de pequeno alcance).
Os mecanismos de participação dos parlamentos nacionais na vida da UE previstos no novo tratado constitucional não se ficam por aqui. Um dos protocolos anexos é mesmo especificamente dedicado ao "papel dos parlamentos nacionais na UE". Assim, impõem-se obrigações de informação sistemática dos parlamentos nacionais em relação a todos os documentos de política e todas as iniciativas legislativas da Comissão Europeia, as ordens do dia e as actas das sessões do Conselho de Ministros em matéria legislativa, etc. Institucionalizam-se formas de cooperação dos parlamentos nacionais entre si e com o PE, incluindo a realização de conferências das comissões parlamentares de assuntos europeus, com o poder de adoptar sugestões e recomendações ao PE.
A mais importante inovação nesta área é todavia a possibilidade de os parlamentos nacionais contestarem qualquer iniciativa comunitária à luz do "princípio da subsidiariedade", pondo em causa o cabimento da competência da UE nesse caso, por a matéria poder ser tratada melhor a nível nacional. Se pelo menos 1/3 dos parlamentos nacionais convergirem numa objecção dessas, a Comissão Europeia tem de proceder a uma nova análise da iniciativa, fundamentando a sua decisão. E se esta insistir na iniciativa, fica aberto o caminho para a contestação jurídica da mesma junto do Tribunal de Justiça da UE.
Se a Constituição vier a ser adoptada, sabemos que o Parlamento Europeu verá as suas competências muito aumentadas no contexto das instituições comunitárias. Mas o mesmo sucederá com o papel dos parlamentos nacionais na vida da UE. Em ambos os casos existem razões para aplaudir. A UE só ganha em democraticidade e em legitimidade política.
(Público, Terça-feira, 8 de Junho de 2004)
Durante muito tempo, a construção europeia foi feita nas costas dos parlamentos dos Estados-membros. A transferência de funções para a esfera comunitária significava automaticamente que aqueles perdiam poderes políticos e legislativos nas áreas correspondentes, que passavam a ser exercidos pelas instituições comunitárias, designadamente o Conselho de Ministros e a Comissão (e mais tarde o Parlamento Europeu), à margem daqueles.
Por um lado, os parlamentos nacionais estiveram durante muito tempo privados, na ordem doméstica, de meios de controlo eficazes sobre as posições e decisões assumidas pelos seus governos nas instâncias comunitárias, desde logo no que respeitava à produção legislativa ou paralegislativa (regulamentos e directivas comunitárias). Os procedimentos comunitários, incluindo os procedimentos legislativos, eram demasiado opacos para poderem ser tempestivamente acompanhados pelos parlamentos nacionais; além disso, faltaram durante muito tempo instrumentos adequados para chamar os governos a prestar contas internamente pela sua actuação em Bruxelas. A construção europeia implicou por isso uma acentuada governamentalização das áreas de decisão comunitarizadas, em prejuízo dos parlamentos. É mesmo de admitir que uma parte da transferência de poderes para a CE/UE se deveu também ao interesse dos governos em fugirem às competências e ao escrutínio dos respectivos parlamentos.
Por outro lado, os parlamentos nacionais têm estado desde o início afastados de participação directa na integração europeia, quer quanto ao procedimento de revisão dos tratados (salvaguardada a aprovação final para ratificação) quer no respeitante ao desempenho das competências das instituições comunitárias. Além disso, com excepção da inicial indicação da representação nacional no Parlamento Europeu, antes de este passar a ser eleito directamente, os parlamentos nacionais também não têm nenhuma participação na designação dos candidatos nacionais a cargos comunitários (comissários, juízes, etc.). Estabeleceu-se assim uma espécie de "apartheid" entre a esfera parlamentar nacional e esfera comunitária.
Com o tempo, porém, os parlamentos nacionais foram-se munindo de instrumentos para fiscalizar internamente a actuação dos respectivos governos a nível comunitário. Sendo uma questão do foro interno, as soluções variam de país para país, sendo mais intenso nuns do que noutros o papel dos parlamentos. Assim, entre nós, apesar da existência de uma norma constitucional explícita, o escrutínio da Assembleia da República sobre a condução governamental da política comunitária, incluindo sobre o exercício de poderes legislativos comunitários ou a celebração de convenções internacionais da CE/UE com terceiros, nunca foi muito forte, mesmo no caso de afectar o âmbito da competência reservada da AR a nível interno. O recente episódio do tratado com os Estados Unidos em matéria de extradição testemunha o notável défice de acompanhamento parlamentar das questões comunitárias.
Já no que respeita à participação directa da Assembleia da República nos assuntos da UE, o alheamento tradicional só foi substancialmente modificado com a introdução do "método da convenção", pela primeira vez na preparação da Carta de Direitos Fundamentais da UE (1999-2000) e posteriormente na preparação do projecto de Constituição europeia (2002-2003), agora em vias de ser aprovada a nível da "conferência intergovernamental". Na verdade, esses dois importantes documentos foram previamente debatidos e consensualizados no seio de um órgão "ad hoc", não previsto nos tratados, composto por representantes do Parlamento Europeu (PE) e dos parlamentos nacionais, bem como de outras instâncias comunitárias (especialmente a Comissão) e dos governos nacionais. O que importa aqui destacar é o considerável papel atribuído aos parlamentos nacionais na preparação e adopção destes documentos "constitucionais" da UE, em comparação com a anterior reserva destas matérias aos governos dos Estados-membros, eventualmente com a intervenção auxiliar das instâncias comunitárias (Comissão e PE).
Ora, uma das grandes novidades do projecto de Constituição europeia é justamente a institucionalização da intervenção dos parlamentos nacionais na vida da UE. Por um lado, o método convencional tornar-se-á norma no procedimento de futuras revisões da própria Constituição. Além de impor a notificação imediata de todas as propostas de alteração constitucional aos parlamentos nacionais, o tratado constitucional torna obrigatório o estabelecimento de uma "convenção" - com a referida composição mista -, encarregada de analisar os projectos de revisão constitucional apresentados e adoptar uma recomendação sobre eles (salvo quando se tratar de alterações de pequeno alcance).
Os mecanismos de participação dos parlamentos nacionais na vida da UE previstos no novo tratado constitucional não se ficam por aqui. Um dos protocolos anexos é mesmo especificamente dedicado ao "papel dos parlamentos nacionais na UE". Assim, impõem-se obrigações de informação sistemática dos parlamentos nacionais em relação a todos os documentos de política e todas as iniciativas legislativas da Comissão Europeia, as ordens do dia e as actas das sessões do Conselho de Ministros em matéria legislativa, etc. Institucionalizam-se formas de cooperação dos parlamentos nacionais entre si e com o PE, incluindo a realização de conferências das comissões parlamentares de assuntos europeus, com o poder de adoptar sugestões e recomendações ao PE.
A mais importante inovação nesta área é todavia a possibilidade de os parlamentos nacionais contestarem qualquer iniciativa comunitária à luz do "princípio da subsidiariedade", pondo em causa o cabimento da competência da UE nesse caso, por a matéria poder ser tratada melhor a nível nacional. Se pelo menos 1/3 dos parlamentos nacionais convergirem numa objecção dessas, a Comissão Europeia tem de proceder a uma nova análise da iniciativa, fundamentando a sua decisão. E se esta insistir na iniciativa, fica aberto o caminho para a contestação jurídica da mesma junto do Tribunal de Justiça da UE.
Se a Constituição vier a ser adoptada, sabemos que o Parlamento Europeu verá as suas competências muito aumentadas no contexto das instituições comunitárias. Mas o mesmo sucederá com o papel dos parlamentos nacionais na vida da UE. Em ambos os casos existem razões para aplaudir. A UE só ganha em democraticidade e em legitimidade política.
(Público, Terça-feira, 8 de Junho de 2004)