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1 de junho de 2004

Para além da Concordata  

Por Vital Moreira

Num colóquio realizado na Universidade Católica sobre a nova Concordata, o prof. Sousa Franco, um dos negociadores do acordo por parte do Vaticano, declarou que ela "não vai mudar muita coisa". Na verdade, ela não representa, em alguns casos infelizmente, uma mudança global em relação à Concordata de 1940. Mas seria lamentável que ela não constituísse uma ocasião oportuna para alterar muitas coisas que, embora sem fundamento no texto concordatário, representam inaceitáveis infracções do princípio da separação entre o Estado e as confissões religiosas e situações de injustificado privilégio da Igreja Católica face às demais confissões religiosas.
Na verdade, algumas das mais ostensivas situações de envolvimento da Igreja Católica na esfera oficial do Estado não têm nenhuma cobertura na Concordata (nem poderiam ter, por serem manifestamente inconstitucionais), constituindo sobrevivências ou revivescências de um situação de integração entre o Estado e a Igreja Católica ou pelo menos de preferência católica do Estado que deveria dar-se por definitivamente superada.
Porventura a mais importante situação destas, sob o ponto de vista simbólico, é a presença de símbolos religiosos, nomeadamente crucifixos, em locais oficiais, por exemplo, em escolas. Embora longe de ser uma situação generalizada, não é uma ocorrência tão rara quanto se pode imaginar. Parece evidente que essa situação tinha sentido quando havia uma religião oficial (antes de 1910) ou oficiosa (durante o Estado Novo). Mas não tem nenhum sentido num Estado constitucionalmente aconfessional, por definição neutro e indiferente em matéria religiosa.
Uma das mais graves violações do princípio da separação é, porém, a celebração de cerimónias religiosas por decisão ou encomenda oficial, por exemplo missas ou cerimónias fúnebres. A incompatibilidade destas situações com os princípios constitucionais não poderia ser mais evidente, só sendo de admirar como é que elas podem ainda ocorrer nos dias de hoje. Obviamente não está excluída a realização dessas cerimónias por ocasião de eventos ou cerimónias oficiais, desde que promovidas paralelamente a título particular. É o que sucede, por exemplo, com a inauguração do ano judicial, em que os magistrados católicos mandam celebrar uma missa. Eis um exemplo que poderia ser seguido noutras circunstâncias em que a iniciativa é indevidamente tomada pelas próprias autoridades.
De idêntico teor são as cerimónias religiosas associadas à inauguração oficial de obras públicas (estradas, edifícios públicos, etc.) ou de outras realizações públicas. Talvez seja esta a mais frequente e ostensiva das situações de mistura religiosa em actos oficiais, comprometendo ilicitamente o princípio da separação. Também aqui não seria impossível realizar a cerimónia religiosa à margem da inauguração oficial, por iniciativa de alguma entidade ou associação religiosa e sob sua responsabilidade. O que é ilegítimo não é obviamente o acto religioso, mas sim a sua inserção oficial numa iniciativa da responsabilidade de uma entidade pública.
Porventura a mais formal infracção do princípio da separação seja a graduação militar dos eclesiásticos que prestam assistência religiosa nas Forças Armadas. É estranho como é que tanto as Forças Armadas como a própria Igreja convivem com esta situação, a qual, além de não ser necessária para assegurar aos militares católicos a assistência religiosa a que têm direito, constitui uma flagrante confusão entre cargos militares e papéis religiosos. Nos comentários até agora produzidos acerca deste ponto na nova Concordata diz-se, com razão, que ela deixa em aberto as formas de organizar a assistência religiosa nas Forças Armadas. Mas é de excluir liminarmente que entre as formas de o fazer esteja a que actualmente vigora.
A mais frequente presença católica na esfera oficial é seguramente a das cerimónias públicas, assegurando o protocolo oficial um lugar de destaque ao representante da Igreja Católica entre as personalidades oficiais. O que está em causa não é somente a questão do patente privilégio em relação às demais confissões religiosas, que não são sequer convidadas, mas sim a própria ideia de conferir a um representante religioso um lugar proeminente em iniciativas do Estado. É mais do que tempo de lhe pôr cobro.
Uma das situações mais contestáveis é o financiamento público da Igreja Católica, nomeadamente no que diz respeito aos subsídios para a construção de edifícios religiosos e outras iniciativas religiosas. Não está em causa naturalmente o financiamento público das iniciativas sociais das organizações católicas, designadamente das numerosas IPSS católicas, que se integra na política de apoio público ao chamado "terceiro sector", independentemente da natureza religiosa ou não dessas organizações de solidariedade social. O que importa aqui é somente o financiamento público de iniciativas estritamente religiosas, que não é conciliável com o princípio da separação. A nova Concordata garante a disponibilidade de terrenos para fins religiosos (embora não esclareça se é a título gratuito), bem como o financiamento público da manutenção dos edifícios religiosos que sejam considerados como património nacional protegido. Mas não garante mais do que isso (desde logo porque não poderia fazê-lo), nomeadamente o custeamento de tais edifícios ou de outras iniciativas religiosas, o qual não tem fundamento constitucional, nem legal.
Uma derradeira situação de privilégio criada sub-repticiamente à margem da Concordata (e da Constituição) foi a noção de "ensino concordatário", como tipo específico de ensino à margem do ensino público e do ensino particular, criada há uns 15 anos para dar cobertura à situação de privilégio legal da Universidade Católica face às demais universidades não públicas. A mistificação desse conceito era tanto mais flagrante quanto é certo que a Concordata de 1940 não lhe dava o mínimo esteio textual, sendo antes explícita em considerar as escolas católicas nos mesmos termos das demais do ensino particular. A nova Concordata garante a liberdade de criação de escolas católicas, que aliás está constitucionalmente assegurada, mas também não lhes confere nenhum privilégio em relação às demais escolas não públicas. E quanto à Universidade Católica, para além de a reconhecer explicitamente, limita-se a assegurar a sua "especificidade institucional", o que preserva a sua natureza jurídica e organização interna própria, mas em nada afecta os seus direitos e obrigações face ao Estado em comparação com as demais universidades não públicas, designadamente no que respeita aos requisitos de criação de cursos e de reconhecimento graus, de apoio financeiro, etc. A noção de "ensino concordatário" (apesar de entretanto constar de várias leis) continua a ser tão abusiva como antes à face do novo texto concordatário -, para além de constitucionalmente apócrifa, bem entendido.
A Concordata de 1940 instituiu sem dúvida um regime de protecção especial e de privilégio da Igreja Católica face aos Estado e às demais igrejas, situação que a nova Concordata manteve em alguns aspectos. Mas nem a anterior nem muito menos a nova podem servir de justificação para muitas situações de violação mais ou menos ostensiva do princípio da separação e de igualdade de tratamento das diversas confissões religiosas, estabelecidas na prática ou mesmo previstas nas leis. Agora que a Lei de Liberdade Religiosa garantiu os direitos das demais igrejas e que a nova Concordata moderou as regalias da Igreja Católica, é altura de proceder à harmonização da prática pública e da leis com os princípios constitucionais em matéria de liberdade e igualdade religiosa e de separação entre o Estado e a religião

(Público, Terça-feira, 01 de Junho de 2004)

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