13 de novembro de 2010
A provação e o teste
Por Vital Moreira
Menos de um ano depois da sua entrada em vigor, o Tratado de Lisboa, que procedeu à última grande revisão "constitucional" da União Europeia (UE), vai ser ele mesmo revisto. Assim foi decidido na reunião do Conselho Europeu do fim-de-semana passado. "Revisão pontual", asseveram-nos. A principal dificuldade vai ser mesmo impedir que a revisão extravase o propósito que a justifica. A bem da estabilidade institucional da União.
Era de esperar que o Tratado de Lisboa, pelas dificuldades do seu parto e pela sua extensão e profundidade, permanecesse sem alterações de fundo durante muitos anos. Infelizmente, não se puderam antecipar as sequelas da grande crise financeira e económica de 2008-2009, que, por via da crise orçamental grega, ameaçou a própria estabilidade do euro, revelando a falta de mecanismos de resposta da UE a situações como essa.
A verdade é que o mecanismo de salvaguarda financeiro criado a título transitório para a Grécia não encontra suficiente base constitucional nos tratados da UE, não podendo assim ser substituído por um mecanismo permanente com sólida base legal, depois da caducidade daquele dentro de três anos. O Tribunal Constitucional Alemão, em especial, não deixa dúvidas sobre o risco de um tal mecanismo ser julgado incompatível com os tratados. Por conseguinte, se queremos institucionalizar essa solução, que é essencial para defender o euro contra eventuais futuras situações como a grega, temos de aceitar a proposta de correcção pontual dos tratados.
Tal revisão deve ser feita de forma expedita, dispensando a reunião de uma "convenção europeia", tal como o próprio Tratado da UE prevê para revisões de pequeno alcance. Preferivelmente, deve mesmo dispensar-se um tratado autónomo de revisão, aproveitando o próximo tratado de adesão da Croácia para "contrabandear" essa alteração.
De resto, deve recordar-se que já tinha sido acordado mexer no Tratado de Lisboa aquando do segundo referendo irlandês, abrindo à Irlanda (e à República Checa) a possibilidade de fazerem opting out em relação à Carta de Direitos Fundamentais da UE, cuja concretização já tinha sido deixada para a oportunidade do próximo tratado de adesão.
Se se não pode negar à Alemanha o interesse em ultrapassar as objecções do seu Tribunal Constitucional quanto ao mecanismo de socorro financeiro, já não existe razão nenhuma para concordar com os alemães na sua proposta de acrescentar às sanções por violação das regras de estabilidade financeira a privação do direito de voto no Conselho aos Estados que incorram nessa situação. Sem dívida que há que reforçar as sanções por incumprimento dos limites ao défice e ao endividamento público, que põem em causa a estabilidade da moeda única. Mas parece francamente desajustado a introdução de sanções dessa natureza. As sanções já previstas nos tratados, incluindo um depósito obrigatório e a aplicação de multas, podem ser suficientemente punitivas, se aplicadas a tempo e de forma determinada.
De resto, é fácil imaginar que a instituição de tais sanções tornaria improvável a ratificação nacional de qualquer tratado que as previsse. Não se vê como é que os governos poderiam convencer os seus parlamentos nacionais e as respectivas opiniões públicas a aceitar sanções tão gravosas, sobretudo no caso dos países mais susceptíveis de virem a ser vítimas delas. Por conseguinte, a previsão de tais sanções seria um verdadeiro "tiro no pé", não tendo nenhumas condições para vingar.
Dito isto, convém dizer aos antieuropeístas - que obviamente estão longe de morrer de amores pelo Tratado de Lisboa e que rejubilam com todas as dificuldades que possam surgir - que esta decisão de encetar uma revisão pontual não se vai traduzir numa "corrida à revisão", muito menos numa descaracterização dos tratados. É certo que não faltarão tentativas para aproveitar esta oportunidade para tentar lançar na agenda uma série vasta de propostas de revisão, incluindo algumas bem-intencionadas. Importa porém assegurar que não sejam bem sucedidas.
Em primeiro lugar, bem se sabe que uma revisão sem estritos limites à partida significaria reabrir ingloriamente todas as controvérsias institucionais da União que precederem o Tratado de Lisboa, restabelecendo um clima de incerteza institucional. Em segundo lugar, importa afirmar sem perigo de desmentido que o Tratado de Lisboa constituiu um notável avanço na integração europeia e na democracia europeia. Há um antes e um depois do Tratado de Lisboa. Um ano depois da sua entrada em vigor, isso é notório designadamente no campo da política externa comum da União, com a criação do "serviço de acção externa", no enorme alargamento de poderes do Parlamento Europeu, reforçando a legitimidade democrática da União, na atribuição de força jurídica efectiva à Carta de Direitos Fundamentais da União e na adesão à Convenção Europeia de Direitos Humanos (em vias de ser decidida), na instituição do mecanismo da "iniciativa dos cidadãos", conferindo um novo direito de cidadania europeia, no reforço dos instrumentos de governo económico, de forma a assegurar uma maior integração das políticas financeiras e económicas europeias.
Sim, temos de aceitar que nem o Tratado de Lisboa escapa incólume ao impacto da crise financeira e económica dos últimos três anos. Mas o que surpreende é que a União que ele reformou tenha resistido e reagido tão bem como o fez aos devastadores efeitos da grande crise. Os que nos dois últimos anos previram o falhanço do euro, senão da própria UE, foram desmentidos. A UE enfrentou a maior provação da sua história - e passou o teste. Assim também o Tratado de Lisboa.
(Público, 2 de Novembro de 2010)
Menos de um ano depois da sua entrada em vigor, o Tratado de Lisboa, que procedeu à última grande revisão "constitucional" da União Europeia (UE), vai ser ele mesmo revisto. Assim foi decidido na reunião do Conselho Europeu do fim-de-semana passado. "Revisão pontual", asseveram-nos. A principal dificuldade vai ser mesmo impedir que a revisão extravase o propósito que a justifica. A bem da estabilidade institucional da União.
Era de esperar que o Tratado de Lisboa, pelas dificuldades do seu parto e pela sua extensão e profundidade, permanecesse sem alterações de fundo durante muitos anos. Infelizmente, não se puderam antecipar as sequelas da grande crise financeira e económica de 2008-2009, que, por via da crise orçamental grega, ameaçou a própria estabilidade do euro, revelando a falta de mecanismos de resposta da UE a situações como essa.
A verdade é que o mecanismo de salvaguarda financeiro criado a título transitório para a Grécia não encontra suficiente base constitucional nos tratados da UE, não podendo assim ser substituído por um mecanismo permanente com sólida base legal, depois da caducidade daquele dentro de três anos. O Tribunal Constitucional Alemão, em especial, não deixa dúvidas sobre o risco de um tal mecanismo ser julgado incompatível com os tratados. Por conseguinte, se queremos institucionalizar essa solução, que é essencial para defender o euro contra eventuais futuras situações como a grega, temos de aceitar a proposta de correcção pontual dos tratados.
Tal revisão deve ser feita de forma expedita, dispensando a reunião de uma "convenção europeia", tal como o próprio Tratado da UE prevê para revisões de pequeno alcance. Preferivelmente, deve mesmo dispensar-se um tratado autónomo de revisão, aproveitando o próximo tratado de adesão da Croácia para "contrabandear" essa alteração.
De resto, deve recordar-se que já tinha sido acordado mexer no Tratado de Lisboa aquando do segundo referendo irlandês, abrindo à Irlanda (e à República Checa) a possibilidade de fazerem opting out em relação à Carta de Direitos Fundamentais da UE, cuja concretização já tinha sido deixada para a oportunidade do próximo tratado de adesão.
Se se não pode negar à Alemanha o interesse em ultrapassar as objecções do seu Tribunal Constitucional quanto ao mecanismo de socorro financeiro, já não existe razão nenhuma para concordar com os alemães na sua proposta de acrescentar às sanções por violação das regras de estabilidade financeira a privação do direito de voto no Conselho aos Estados que incorram nessa situação. Sem dívida que há que reforçar as sanções por incumprimento dos limites ao défice e ao endividamento público, que põem em causa a estabilidade da moeda única. Mas parece francamente desajustado a introdução de sanções dessa natureza. As sanções já previstas nos tratados, incluindo um depósito obrigatório e a aplicação de multas, podem ser suficientemente punitivas, se aplicadas a tempo e de forma determinada.
De resto, é fácil imaginar que a instituição de tais sanções tornaria improvável a ratificação nacional de qualquer tratado que as previsse. Não se vê como é que os governos poderiam convencer os seus parlamentos nacionais e as respectivas opiniões públicas a aceitar sanções tão gravosas, sobretudo no caso dos países mais susceptíveis de virem a ser vítimas delas. Por conseguinte, a previsão de tais sanções seria um verdadeiro "tiro no pé", não tendo nenhumas condições para vingar.
Dito isto, convém dizer aos antieuropeístas - que obviamente estão longe de morrer de amores pelo Tratado de Lisboa e que rejubilam com todas as dificuldades que possam surgir - que esta decisão de encetar uma revisão pontual não se vai traduzir numa "corrida à revisão", muito menos numa descaracterização dos tratados. É certo que não faltarão tentativas para aproveitar esta oportunidade para tentar lançar na agenda uma série vasta de propostas de revisão, incluindo algumas bem-intencionadas. Importa porém assegurar que não sejam bem sucedidas.
Em primeiro lugar, bem se sabe que uma revisão sem estritos limites à partida significaria reabrir ingloriamente todas as controvérsias institucionais da União que precederem o Tratado de Lisboa, restabelecendo um clima de incerteza institucional. Em segundo lugar, importa afirmar sem perigo de desmentido que o Tratado de Lisboa constituiu um notável avanço na integração europeia e na democracia europeia. Há um antes e um depois do Tratado de Lisboa. Um ano depois da sua entrada em vigor, isso é notório designadamente no campo da política externa comum da União, com a criação do "serviço de acção externa", no enorme alargamento de poderes do Parlamento Europeu, reforçando a legitimidade democrática da União, na atribuição de força jurídica efectiva à Carta de Direitos Fundamentais da União e na adesão à Convenção Europeia de Direitos Humanos (em vias de ser decidida), na instituição do mecanismo da "iniciativa dos cidadãos", conferindo um novo direito de cidadania europeia, no reforço dos instrumentos de governo económico, de forma a assegurar uma maior integração das políticas financeiras e económicas europeias.
Sim, temos de aceitar que nem o Tratado de Lisboa escapa incólume ao impacto da crise financeira e económica dos últimos três anos. Mas o que surpreende é que a União que ele reformou tenha resistido e reagido tão bem como o fez aos devastadores efeitos da grande crise. Os que nos dois últimos anos previram o falhanço do euro, senão da própria UE, foram desmentidos. A UE enfrentou a maior provação da sua história - e passou o teste. Assim também o Tratado de Lisboa.
(Público, 2 de Novembro de 2010)