17 de novembro de 2010
Fúteis e funestas
Por Vital Moreira
Depois de o PSD ter anunciado repetidamente a sua intenção de abrir uma crise política algures no próximo ano, com o objectivo de derrubar o governo do PS e interromper a actual legislatura, não têm faltado as mais imaginosas ideias por parte de outros quadrantes políticos, incluindo dentro do PS, para alterar a actual fórmula governativa, sem recurso a eleições antecipadas e sem afastar o PS do Governo. Sendo todas manifestamente irrealistas ou descabidas no actual quadro político, todas contribuem porém para alimentar um clima de incerteza e instabilidade política, que só pode perturbar a consolidação orçamental em curso e os interesses financeiros do país.
Analisemos as diversas propostas por ordem da sua recente aparição.
A primeira fórmula veio do líder do CSD, defendendo um suposto "governo de salvação nacional" no actual quadro parlamentar, na base de uma coligação PS-PSD-CDS.
Uma lucubração política como esta não tem um mínimo de justificação nem de praticabilidade, não passando de uma "prova de vida" da fértil imaginação política de Paulo Portas. Nem Portugal está a passar por uma catástrofe que justificasse colocar entre parêntesis as enormes diferenças políticas entre os três partidos, nem uma tal coligação estaria em condições de levar a cabo a mais decisiva das tarefas políticas actuais, que é cumprir as metas do défice orçamental nos próximos dois anos, tão distintas são as posições quanto ao modo de a realizar. Não se vê como é que o CDS, que descartou qualquer possibilidade de viabilizar o orçamento, nem o PSD, que só pretendeu tornar mais difícil a equação orçamental, poderiam compartilhar de um programa comum de disciplina orçamental
A segunda hipótese foi veiculada pelo PÚBLICO, que há dias dizia haver entre os socialistas (embora sem citar nomes...) quem admita um novo governo do PS sem Sócrates, que pudesse beneficiar do apoio parlamentar do PSD, numa espécie de governo de bloco central apócrifo a cargo do PS.
Mesmo que tenha autor, a hipótese carece de um mínimo de sentido. Primeiro, seria necessário que Sócrates aceitasse ser imolado em benefício de tal coligação imperfeita. Segundo, quem escolhe a solução governativa em caso de interrupção governamental é o Presidente da República e não o partido que tinha o Governo, não sendo garantido que Cavaco Silva aceitasse viabilizar tal "negócio". Terceiro, é evidente que o PSD não se conformaria com o papel de "pau-de-cabeleira" de um novo governo PS, a não ser para fazer o "trabalho sujo" em seu proveito. Quarto, como mostrou o Governo Santana Lopes, um primeiro-ministro que não tenha uma legitimidade eleitoral directa padece de um défice de legitimidade e de autoridade política. Os que no PS pensam em "tirar o tapete" a Sócrates, "fazem a cama" ao governo do PS. O PSD agradece.
A terceira alternativa de governo proveio do próprio ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, que veio defender explicitamente um governo de coligação - que na nossa geografia política só poderia ser entre o PS e o PSD -, de modo a enfrentar os graves problemas orçamentais e económicos que a crise internacional trouxe ao país. Embora a oportunidade para a defender seja questionável, não há surpresa nesta posição, tendo em conta as posições do autor a este respeito desde há muito.
Todavia, uma coligação de governo entre o PS e o PSD é tão improvável e tão problemática hoje como era antes da crise. Primeiro, a deriva neoliberal de Passos Coelho dificulta enormemente qualquer entendimento com o PS sobre o modo de resolver as dificuldades orçamentais e económicas do país. Segundo, uma coligação de governo entre os dois partidos centrais do espectro partidário só alimentaria a contestação social e política das medidas de austeridade por parte da esquerda radical. Terceiro, não se vê como poderia haver uma tal coligação sem novas eleições e sem mudança de liderança num dos partidos em causa (ou em ambos). Quarto, como mostrou a experiência de governo de bloco central de 1983-85, quem depois paga politicamente o seu preço político é o PS...
O que há de comum entre estas diferentes propostas é que todas elas implicam que o PS aceitasse compartilhar o poder com a direita e, expressa ou implicitamente, que Sócrates aceitasse abandonar a chefia do Governo, a favor de outro primeiro-ministro, socialista ou independente. Na verdade, o PS passaria a ter de ceder à direita no que respeita às políticas a seguir, a troco do seu apoio, sem porém poder descartar o principal peso da responsabilidade política pelas mesmas, por ser o partido que ganhou as eleições e continuar a dar a marca ao Governo. Não se vê como é que qualquer das referidas hipóteses governativas possa ser aceite pelo PS, tal a assimetria entre poder e responsabilidade, nem aliás pelo PSD, que ambiciona ganhar as próximas eleições legislativas e que não pode estar interessado em se comprometer formalmente com o PS antes disso, sob pena de deixar de ser visto como verdadeira alternativa governativa.
Contudo, não sendo politicamente viáveis, as referidas propostas governativas têm porém o inevitável efeito de gerar dúvidas sobre a estabilidade governativa e sobre a capacidade política para levar a cabo o exigentíssimo programa de disciplina orçamental, que só uma vontade política forte pode realizar. Especular sobre cenários de mudança governativa a curto prazo só pode alimentar as ilusões das forças políticas que ainda apostam na contestação social e política das medidas de austeridade para fazer descarrilar o processo de consolidação orçamental.
Para além de fúteis como exercícios políticos, elas são também assaz funestas para os interesses do país na actual situação.
(Público, 16 de Novembro de 2010)
Depois de o PSD ter anunciado repetidamente a sua intenção de abrir uma crise política algures no próximo ano, com o objectivo de derrubar o governo do PS e interromper a actual legislatura, não têm faltado as mais imaginosas ideias por parte de outros quadrantes políticos, incluindo dentro do PS, para alterar a actual fórmula governativa, sem recurso a eleições antecipadas e sem afastar o PS do Governo. Sendo todas manifestamente irrealistas ou descabidas no actual quadro político, todas contribuem porém para alimentar um clima de incerteza e instabilidade política, que só pode perturbar a consolidação orçamental em curso e os interesses financeiros do país.
Analisemos as diversas propostas por ordem da sua recente aparição.
A primeira fórmula veio do líder do CSD, defendendo um suposto "governo de salvação nacional" no actual quadro parlamentar, na base de uma coligação PS-PSD-CDS.
Uma lucubração política como esta não tem um mínimo de justificação nem de praticabilidade, não passando de uma "prova de vida" da fértil imaginação política de Paulo Portas. Nem Portugal está a passar por uma catástrofe que justificasse colocar entre parêntesis as enormes diferenças políticas entre os três partidos, nem uma tal coligação estaria em condições de levar a cabo a mais decisiva das tarefas políticas actuais, que é cumprir as metas do défice orçamental nos próximos dois anos, tão distintas são as posições quanto ao modo de a realizar. Não se vê como é que o CDS, que descartou qualquer possibilidade de viabilizar o orçamento, nem o PSD, que só pretendeu tornar mais difícil a equação orçamental, poderiam compartilhar de um programa comum de disciplina orçamental
A segunda hipótese foi veiculada pelo PÚBLICO, que há dias dizia haver entre os socialistas (embora sem citar nomes...) quem admita um novo governo do PS sem Sócrates, que pudesse beneficiar do apoio parlamentar do PSD, numa espécie de governo de bloco central apócrifo a cargo do PS.
Mesmo que tenha autor, a hipótese carece de um mínimo de sentido. Primeiro, seria necessário que Sócrates aceitasse ser imolado em benefício de tal coligação imperfeita. Segundo, quem escolhe a solução governativa em caso de interrupção governamental é o Presidente da República e não o partido que tinha o Governo, não sendo garantido que Cavaco Silva aceitasse viabilizar tal "negócio". Terceiro, é evidente que o PSD não se conformaria com o papel de "pau-de-cabeleira" de um novo governo PS, a não ser para fazer o "trabalho sujo" em seu proveito. Quarto, como mostrou o Governo Santana Lopes, um primeiro-ministro que não tenha uma legitimidade eleitoral directa padece de um défice de legitimidade e de autoridade política. Os que no PS pensam em "tirar o tapete" a Sócrates, "fazem a cama" ao governo do PS. O PSD agradece.
A terceira alternativa de governo proveio do próprio ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, que veio defender explicitamente um governo de coligação - que na nossa geografia política só poderia ser entre o PS e o PSD -, de modo a enfrentar os graves problemas orçamentais e económicos que a crise internacional trouxe ao país. Embora a oportunidade para a defender seja questionável, não há surpresa nesta posição, tendo em conta as posições do autor a este respeito desde há muito.
Todavia, uma coligação de governo entre o PS e o PSD é tão improvável e tão problemática hoje como era antes da crise. Primeiro, a deriva neoliberal de Passos Coelho dificulta enormemente qualquer entendimento com o PS sobre o modo de resolver as dificuldades orçamentais e económicas do país. Segundo, uma coligação de governo entre os dois partidos centrais do espectro partidário só alimentaria a contestação social e política das medidas de austeridade por parte da esquerda radical. Terceiro, não se vê como poderia haver uma tal coligação sem novas eleições e sem mudança de liderança num dos partidos em causa (ou em ambos). Quarto, como mostrou a experiência de governo de bloco central de 1983-85, quem depois paga politicamente o seu preço político é o PS...
O que há de comum entre estas diferentes propostas é que todas elas implicam que o PS aceitasse compartilhar o poder com a direita e, expressa ou implicitamente, que Sócrates aceitasse abandonar a chefia do Governo, a favor de outro primeiro-ministro, socialista ou independente. Na verdade, o PS passaria a ter de ceder à direita no que respeita às políticas a seguir, a troco do seu apoio, sem porém poder descartar o principal peso da responsabilidade política pelas mesmas, por ser o partido que ganhou as eleições e continuar a dar a marca ao Governo. Não se vê como é que qualquer das referidas hipóteses governativas possa ser aceite pelo PS, tal a assimetria entre poder e responsabilidade, nem aliás pelo PSD, que ambiciona ganhar as próximas eleições legislativas e que não pode estar interessado em se comprometer formalmente com o PS antes disso, sob pena de deixar de ser visto como verdadeira alternativa governativa.
Contudo, não sendo politicamente viáveis, as referidas propostas governativas têm porém o inevitável efeito de gerar dúvidas sobre a estabilidade governativa e sobre a capacidade política para levar a cabo o exigentíssimo programa de disciplina orçamental, que só uma vontade política forte pode realizar. Especular sobre cenários de mudança governativa a curto prazo só pode alimentar as ilusões das forças políticas que ainda apostam na contestação social e política das medidas de austeridade para fazer descarrilar o processo de consolidação orçamental.
Para além de fúteis como exercícios políticos, elas são também assaz funestas para os interesses do país na actual situação.
(Público, 16 de Novembro de 2010)