<$BlogRSDUrl$>

13 de novembro de 2010

Uma espécie de Scut 

Por Vital Moreira

O setor público dos transportes é dos que mais pesam no défice global do Estado e no seu endividamento. Mesmo não contando diretamente para o défice orçamental, ele deveria ser prioritário no esforço de consolidação das finanças públicas. Não parece ser o caso, infelizmente.

Não há ninguém que não fique estarrecido com a dimensão do défice das empresas públicas de transportes terrestres - setor ferroviário e transportes urbanos de Lisboa e do Porto - e pelo crescimento do seu endividamento. Em vários casos as suas despesas de exploração ultrapassam muito as receitas correntes. Em alguns casos o que os utentes pagam equivale a menos de metade do custo real de cada viagem. O metro do Porto sobressai neste panorama.

Custa a entender como é que os habituais partidos e comentadores que mais zelam pelo rigor financeiro das obras públicas e pelo princípio do utilizador-pagador tenham metodicamente silenciado este sorvedouro escandaloso de dinheiros públicos, enquanto diabolizam o novo aeroporto de Lisboa (que não custará nada às finanças públicas) e o TGV para Madrid (que custa uma percentagem ínfima do respetivo investimento).

O problema dos transportes urbanos de Lisboa e do Porto é particularmente grave porque, embora se trate de um serviço de âmbito local, é gerido por empresas do Estado, sem que os municípios beneficiários tenham de suportar os seus encargos, ao contrário do que sucede nos demais municípios. Trata-se de uma enorme injustiça territorial, visto que os contribuintes do resto do país, que têm de pagar os transportes urbanos dos seus municípios, têm também de subvencionar maciçamente os das duas principais cidades. Não tem de ser assim, nem deve ser assim.

São conhecidas as razões do descalabro financeiro do setor público de transportes. Tarifas degradadas, artificialmente subfixadas por razões eleitoralistas, falta de definição das obrigações de serviço público e do montante da respetiva compensação orçamental, manutenção de alguns serviços injustificáveis, ineficiência na gestão. A questão principal está no facto de todos pagarem aquilo de que alguns beneficiam, assim anestesiando o peso dos custos e maximizando o poder negocial dos beneficiários.

É evidente que os transportes públicos têm uma importante vertente de serviço público, que não deve ser suportada pelos utentes mas sim pela coletividade nacional ou local, conforme os casos. Há linhas de transporte e horários que têm de ser mantidos, ainda que deficitários, pelo serviço sem alternativa que prestam. Mas essas obrigações de serviço público, bem como o respetivo financiamento, devem ser devidamente justificados e contabilizados num contrato de serviço público. Fora isso, não existe nenhuma razão para manter as tarifas de transporte público muito abaixo do respetivo custo, num injustificável sistema de Scut parcial.

Nem se diga que o "dumping" nas tarifas de transporte é o preço a pagar pela necessidade de lutar contra a invasão das cidades pelos automóveis. Esse objetivo deve ser conseguido por outros meios, designadamente encarecendo o transporte rodoviário, interiorizando os custos de CO2, aumentando as taxas de estacionamento urbano, acabando com o estacionamento gratuito nos serviços públicos, criando taxas de circulação urbana. Não há nenhuma razão para que o controlo do automóvel nas cidades tenha de ser feito por via de subsidiação maciça do transporte público, fora das obrigações de serviço público.

Urge também municipalizar os transportes urbanos de Lisboa e do Porto, cuja responsabilidade estadual atenta flagrantemente contra o princípio constitucional da subsidiariedade na prestação de serviços públicos. A manutenção dos transportes coletivos urbanos deve incumbir às coletividades locais (municipais ou intermunicipais, conforme os casos), sem exceção. Não há nenhuma razão para que o resto do país subsidie Lisboa e Porto. Há dias, o antigo ministro Murteira Nabo lembrava que há quase três décadas foi criada legalmente uma taxa municipal de transportes para financiar a vertente social dos transportes urbanos, mas que tal figura nunca foi implementada. Na verdade, tal não faz falta quando o orçamento do Estado acaba por pagar a conta...

Por último, há que encarar a hipótese de concessão da exploração do setor público dos transportes, salvo da infraestrutura ferroviária. Nenhum dogma impõe a sua gestão pública, só por terem uma vertente de serviço público. Há muito que deixou de ser tabu a gestão privada de serviços públicos "comerciais" a nível nacional ou local. O único limite é de natureza constitucional, em relação aos serviços públicos sem natureza comercial (nomeadamente saúde e educação).

A privatização da exploração dos trasnportes públicos teria pelo menos duas vantagens. Primeiro, obrigaria a contratualizar rigorosamente as obrigações de serviço público, definindo a longo prazo os encargos orçamentais do Estado ou dos municípios, consoante os casos; segundo, despolitizaria a questão das tarifas, cujos critérios de fixação seriam igualmente contratualizados pelo tempo da concessão, ficando fora dos cálculos eleitorais.

É hoje evidente que tanto para os mercados financeiros como para a União Europeia o montante do endividamento público global vai ser tão importante como o défice orçamental anual. Não podem continuar a existir avenidas de despesa pública incontrolada fora do Orçamento, assim continuando a aumentar a dívida. Portugal não pode manter setores tão deficitários como o dos transportes públicos. É nos momentos de crise, como o atual, que se impõem as grandes decisões. Não faz sentido cortar nas despesas de saúde e de proteção social e manter a atual sangria no setor dos transportes.

Falhar no controlo do endividamento público é continuar a hipotecar o equilíbrio das contas públicas no futuro.

(Público, 19 de Outubro de 2010)

This page is powered by Blogger. Isn't yours?