13 de novembro de 2010
Construindo a União Europeia
Por Vital Moreira
A aprovação pelo Parlamento Europeu, na semana passada, do pacote legislativo sobre as autoridades europeias de supervisão financeira não é somente a mais importante das lições retiradas da crise bancária e financeira oriunda dos Estados Unidos há dois anos mas também um enorme passo em frente na construção institucional da União Europeia. Haverá mais regulação, mais supervisão e mais Europa.
O impacto da crise no sistema bancário e financeiro na Europa revelou três défices de regulação e supervisão que os espíritos mais avisados já antecipavam desde há muito. Primeiro, uma insuficiência de regulação substantiva quanto a muitas actividades, produtos e instituições financeiras, em consequência da hegemonia das ideias neoliberais da desregulação, da auto-regulação e da soberania do mercado, que contaminaram mesmo a tradicional "economia de mercado ordenada" de matriz europeia. Segundo, uma falta de supervisão a nível europeu, traduzido na ausência de autoridades de supervisão da própria UE, quando entretanto se criou e desenvolveu o mercado interno dos serviços financeiros, incluindo poderosos operadores transfronteiriços, e quando metade dos bancos que operam nos Estados-membros da UE está sediada no estrangeiro. Terceira falha, a ausência de um mecanismo geral de monitorização e prevenção dos riscos para a estabilidade do sistema financeiro, que as instituições sectoriais de microssupervisão financeira não podem naturalmente assegurar.
O primeiro dos referidos défices só pode ser suprido por uma regulação mais extensa e mais intensa do sector financeiro, sem deixar de fora nenhum produto, nenhuma instituição nem nenhum território, como insiste em dizer, e bem, o comissário europeu para as questões financeiras, Michel Barnier. Agências de rating e "produtos derivados", fundos de investimento e hedge funds, nada pode ser deixado fora de adequada regulação, a qual, num mercado integrado como o europeu, só pode ser eficaz e consistente se definida de forma unificada a nível da União. Esta reforma está em curso, com algumas iniciativas legislativas da Comissão já aprovadas (por exemplo, regulação das agências de rating) e várias outras em diferentes estádios de elaboração legislativa.
A falta de instâncias europeias de supervisão acaba de ser superada pela aprovação do referido pacote legislativo, que cria três entidades sectoriais de supervisão, uma para a banca, outra para os seguros e fundos de pensões e outra para os mercados de valores mobiliários, designadamente as bolsas. Trata-se, acima de tudo, de ultrapassar a óbvia assimetria até agora existente entre, por um lado, a criação de um verdadeiro mercado integrado de serviços financeiros, sem fronteiras nacionais quanto à actividade das instituições e à prestação de serviços e, por outro lado, a fragmentação da supervisão a nível nacional, mediante autoridades de supervisão com jurisdição limitada a cada país. Uma tal discrepância não podia perdurar sem a visão europeia que a existência do mercado interno de serviços financeiros impunha, sob pena de sérias lacunas e falhas de supervisão. Um mercado único exigia autoridades supervisoras únicas a nível da UE, sem prejuízo da jurisdição doméstica das autoridades nacionais.
É pena que as novas autoridades europeias não tenham sido dotadas de poderes de supervisão directa das instituições e operações financeiras transfronteiriças, o que para já só sucederá no respeitante às agências de rating. Mas, mesmo assim, a sua criação representa um inestimável progresso, permitido a coordenação das autoridades nacionais de supervisão e o suprimento das insuficiências e deficiências destas. Sendo aquelas autoridades dotadas de autonomia face à Comissão Europeia, trata-se de verdadeiras autoridades de supervisão independentes, sem prejuízo da prestação de contas perante o Parlamento Europeu. Uma nova figura organizativa acaba de nascer na arquitectura institucional da UE.
Finalmente, a falta de um mecanismo de monitorização e prevenção de ameaças à estabilidade do sistema financeiro - que a crise financeira pôs em especial relevo - está também contemplada no pacote legislativo acabado de aprovar, com a criação de um organismo de controlo do risco sistémico ("supervisão macroprudencial"), presidido, como não podia deixar de ser, pelo presidente do Banco Central Europeu. Não é necessário sublinhar a importância desta inovação institucional, nem a mais-valia que ela traz para um eficaz e consistente controlo das situações que possam tornar-se perigosas para a estabilidade do sistema financeiro a nível global.
Para quem acusa a União Europeia de não responder, ou de tardar a responder, aos desafios que lhe são colocados, este pacote da supervisão financeira constitui um notável desmentido. Tendo tido por base o relatório Larosière do início de 2009, a Comissão anunciou antes do Verão do ano passado a suas principais opções, que mais tarde verteu nas propostas legislativas apresentadas ao Parlamento ainda antes do fim de 2009. Após laboriosa, e em alguns casos conflituosa, disputa com o Conselho, onde vários Estados-membros manifestaram a sua oposição à supervisão supranacional, e apesar do poderoso lobby financeiro da City de Londres, o Parlamento Europeu pôde aprovar o conjunto de leis que seguramente ficará como marco na construção da UE e de uma verdadeira ordem económica europeia.
Para mais, este pacote legislativo pôde beneficiar do voto favorável de uma vasta convergência política, desde o PPE aos socialistas europeus, só ficando de fora os grupos anti-europeístas do costume, designadamente a "Esquerda Unida Europeia" (que integra os deputados do PCP e do BE) e a direita nacionalista, que preferiram votar contra ou abster-se. Como se vê, uma reforçada legitimidade política para esta verdadeira revolução na edificação constitucional europeia.
(Publico, 28 de Setembro de 2010)
A aprovação pelo Parlamento Europeu, na semana passada, do pacote legislativo sobre as autoridades europeias de supervisão financeira não é somente a mais importante das lições retiradas da crise bancária e financeira oriunda dos Estados Unidos há dois anos mas também um enorme passo em frente na construção institucional da União Europeia. Haverá mais regulação, mais supervisão e mais Europa.
O impacto da crise no sistema bancário e financeiro na Europa revelou três défices de regulação e supervisão que os espíritos mais avisados já antecipavam desde há muito. Primeiro, uma insuficiência de regulação substantiva quanto a muitas actividades, produtos e instituições financeiras, em consequência da hegemonia das ideias neoliberais da desregulação, da auto-regulação e da soberania do mercado, que contaminaram mesmo a tradicional "economia de mercado ordenada" de matriz europeia. Segundo, uma falta de supervisão a nível europeu, traduzido na ausência de autoridades de supervisão da própria UE, quando entretanto se criou e desenvolveu o mercado interno dos serviços financeiros, incluindo poderosos operadores transfronteiriços, e quando metade dos bancos que operam nos Estados-membros da UE está sediada no estrangeiro. Terceira falha, a ausência de um mecanismo geral de monitorização e prevenção dos riscos para a estabilidade do sistema financeiro, que as instituições sectoriais de microssupervisão financeira não podem naturalmente assegurar.
O primeiro dos referidos défices só pode ser suprido por uma regulação mais extensa e mais intensa do sector financeiro, sem deixar de fora nenhum produto, nenhuma instituição nem nenhum território, como insiste em dizer, e bem, o comissário europeu para as questões financeiras, Michel Barnier. Agências de rating e "produtos derivados", fundos de investimento e hedge funds, nada pode ser deixado fora de adequada regulação, a qual, num mercado integrado como o europeu, só pode ser eficaz e consistente se definida de forma unificada a nível da União. Esta reforma está em curso, com algumas iniciativas legislativas da Comissão já aprovadas (por exemplo, regulação das agências de rating) e várias outras em diferentes estádios de elaboração legislativa.
A falta de instâncias europeias de supervisão acaba de ser superada pela aprovação do referido pacote legislativo, que cria três entidades sectoriais de supervisão, uma para a banca, outra para os seguros e fundos de pensões e outra para os mercados de valores mobiliários, designadamente as bolsas. Trata-se, acima de tudo, de ultrapassar a óbvia assimetria até agora existente entre, por um lado, a criação de um verdadeiro mercado integrado de serviços financeiros, sem fronteiras nacionais quanto à actividade das instituições e à prestação de serviços e, por outro lado, a fragmentação da supervisão a nível nacional, mediante autoridades de supervisão com jurisdição limitada a cada país. Uma tal discrepância não podia perdurar sem a visão europeia que a existência do mercado interno de serviços financeiros impunha, sob pena de sérias lacunas e falhas de supervisão. Um mercado único exigia autoridades supervisoras únicas a nível da UE, sem prejuízo da jurisdição doméstica das autoridades nacionais.
É pena que as novas autoridades europeias não tenham sido dotadas de poderes de supervisão directa das instituições e operações financeiras transfronteiriças, o que para já só sucederá no respeitante às agências de rating. Mas, mesmo assim, a sua criação representa um inestimável progresso, permitido a coordenação das autoridades nacionais de supervisão e o suprimento das insuficiências e deficiências destas. Sendo aquelas autoridades dotadas de autonomia face à Comissão Europeia, trata-se de verdadeiras autoridades de supervisão independentes, sem prejuízo da prestação de contas perante o Parlamento Europeu. Uma nova figura organizativa acaba de nascer na arquitectura institucional da UE.
Finalmente, a falta de um mecanismo de monitorização e prevenção de ameaças à estabilidade do sistema financeiro - que a crise financeira pôs em especial relevo - está também contemplada no pacote legislativo acabado de aprovar, com a criação de um organismo de controlo do risco sistémico ("supervisão macroprudencial"), presidido, como não podia deixar de ser, pelo presidente do Banco Central Europeu. Não é necessário sublinhar a importância desta inovação institucional, nem a mais-valia que ela traz para um eficaz e consistente controlo das situações que possam tornar-se perigosas para a estabilidade do sistema financeiro a nível global.
Para quem acusa a União Europeia de não responder, ou de tardar a responder, aos desafios que lhe são colocados, este pacote da supervisão financeira constitui um notável desmentido. Tendo tido por base o relatório Larosière do início de 2009, a Comissão anunciou antes do Verão do ano passado a suas principais opções, que mais tarde verteu nas propostas legislativas apresentadas ao Parlamento ainda antes do fim de 2009. Após laboriosa, e em alguns casos conflituosa, disputa com o Conselho, onde vários Estados-membros manifestaram a sua oposição à supervisão supranacional, e apesar do poderoso lobby financeiro da City de Londres, o Parlamento Europeu pôde aprovar o conjunto de leis que seguramente ficará como marco na construção da UE e de uma verdadeira ordem económica europeia.
Para mais, este pacote legislativo pôde beneficiar do voto favorável de uma vasta convergência política, desde o PPE aos socialistas europeus, só ficando de fora os grupos anti-europeístas do costume, designadamente a "Esquerda Unida Europeia" (que integra os deputados do PCP e do BE) e a direita nacionalista, que preferiram votar contra ou abster-se. Como se vê, uma reforçada legitimidade política para esta verdadeira revolução na edificação constitucional europeia.
(Publico, 28 de Setembro de 2010)