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13 de novembro de 2010

Mais república 

Por Vital Moreira

Comemorar o centenário da República em Portugal faz todo o sentido em si mesmo, pelo seu sentido e consequências históricas. Mas a celebração republicana deve proporcionar igualmente uma reflexão sobre o futuro do republicanismo, à luz das condições e dos desafios do século XXI.

Na sua essência, o republicanismo designa a organização política pela qual uma comunidade política decide coletivamente sobre os assuntos públicos ("res publica", coisa pública, em latim), definindo o interesse geral ou bem comum da coletividade. O essencial da ideia republicana está em três princípios: primeiro, a separação entre a esfera privada (res privata), onde se movem os particulares, e a esfera pública, onde relevam os cidadãos; segundo, a responsabilidade dos cidadãos na definição e direção da esfera pública (república como autogoverno dos cidadãos), embora confiada a magistrados eletivos e temporários, responsáveis perante os cidadãos; terceiro, a garantia da liberdade individual face ao poder por via da lei e das instituições.

As repúblicas modernas, nascidas com os Estados Unidos da América e com a República Francesa, caracterizam-se por serem repúblicas constitucionais, baseadas na democracia representativa e na separação de poderes e na progressiva universalização da cidadania (independentemente de condição económica, de género, de distinções étnicas, etc.). Todas as declinações políticas que, embora autoproclamando-se repúblicas, não preencham estes requisitos (como sucedeu com a "república corporativa" do Estado Novo em Portugal) não passam de pseudo-repúblicas. O republicanismo é incompatível tanto com o totalitarismo de Estado como com a anarquia dos interesses privados; tanto com a autocracia e o despotismo como com qualquer forma de "ditadura democrática".

Não são poucos os desafios com que se defronta o republicanismo contemporâneo.

O primeiro, e talvez o mais importante, tem a ver com a globalização e com a erosão da soberania do Estado nacional. Concebido originariamente num quadro de soberania nacional quase sem limites, o republicanismo moderno tem de confrontar-se com a emergência de poderes fácticos que escapam aos cidadãos (desde as empresas transnacionais ao terrorismo internacional), com o apagamento progressivo das fronteiras nacionais e com a emergência de formas supranacionais de organização interestatal (como a União Europeia) ainda não apropriadas pelos cidadãos. Sendo óbvio que o Estado "westfalliano" passou à história, a solução só pode estar em dar um sentido de cidadania republicana às novas formas de governação transnacional (o "republicanismo pós-nacional" de Habermas). A densificação política da noção de "cidadania europeia" - que os tratados da UE instituíram - e da noção de "cidadania global" - que o novo constitucionalismo global preconiza - é a única via de "republicanização" dos estratos transnacionais do "governo em vários níveis" ("multilevel government") que as últimas décadas geraram.

A segunda dificuldade tem a ver com o crescente império dos interesses privados e com a alienação cívica. Se existe uma ideia fundamental no republicanismo, ela está na noção de "coisa pública" ou interesse público, distinto e acima dos interesses privados, e na responsabilidade cívica pela participação na definição e na prossecução do interesse público. Todavia, tais noções são hoje frontalmente desafiadas pelo fundamentalismo neoliberal e pelo extremismo "libertário", que negam a própria existência de um interesse público acima dos indivíduos e dos grupos e de qualquer interesse geral acima dos interesses individuais ou corporativos. Do mesmo modo, a hipertrofia e a saturação do discurso dos direitos individuais e coletivos contra o Estado tende a esquecer os deveres e as responsabilidades dos cidadãos para com a coletividade, que estão no cerne do "republicanismo cívico".

Em terceiro lugar, uma das grandes realizações do republicanismo consiste na igualdade civil e política e na universalização e unidade da cidadania. A cidadania inclusiva é o cimento que une os membros da coletividade política para além das diferenças individuais e das solidariedades de grupo criadas pela diversidade de origem territorial, de religião, de pertença étnica, etc. Ora, é esse mesmo sentido de indiferenciação e inclusividade da cidadania que tem vindo a ser fragmentado, por efeito das visões comunitaristas e multiculturalistas, do fundamentalismo religioso, da crispação das identidades étnicas, das derivas xenófobas e etnófobas. Neste contexto, a principal tarefa do republicanismo consiste em desenvolver estratégias de coabitação pacífica das diferentes identidades grupais existentes na sociedade civil e da sua integração com a cidadania política, de modo a preservar a coesão e a inclusividade política da República.

Por último, um dos esteios do republicanismo foi desde sempre a ideia da "virtude cívica", que exige aos magistrados políticos da República dedicação à causa pública, probidade e sentido de responsabilidade, e que reclama dos cidadãos envolvimento ativo nos assuntos públicos, cumprimento dos deveres cívicos, bem como "deferência" e respeito pela República e pelos seus magistrados. Todavia, a própria noção de virtude republicana tem vindo a sofrer forte erosão, de uma banda e de outra, pela persistência da corrupção e da irresponsabilidade política e pela invasão de um "cinismo democrático" que desvaloriza a ética politica e a responsabilidade cívica, elogia o abstencionismo político, desculpa a fuga ao cumprimento dos deveres cívicos e ridiculariza a deferência para com a República, os seus símbolos e os seus dirigentes.

Celebraremos bem o nosso centenário republicano se dermos passos significativos na resposta a estes (e outros) desafios com que se defrontam as repúblicas contemporâneas, e não só a nossa. A República obviamente está para ficar. Mas precisamos de mais república como antídoto ao empobrecimento da República.

(Público, 5 de Outubro de 2010)

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