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12 de novembro de 2009

Justiça? Arquive-se!! 

por Ana Gomes


"O processo Face Oculta volta a concentrar as atenções dos portugueses no cancro que é a corrupção. Não se trata apenas de um empresário desonesto acusado de corromper um ou outro político ou funcionário, mas de todo um sistema montado para apropriação de circuitos de decisão do Estado a fim de favorecer o enriquecimento privado à custa dos contribuintes. E o que mais choca é que os supostos guardiões da coisa pública - políticos, gestores de empresas públicas, altos funcionários - surgem não apenas como corrompidos, mas como agentes activos no processo de corrupção e controle do Estado.

A promiscuidade entre negócios e política, entre dinheiro e serviço público, não só vai cobrindo de lama a imagem da nossa República, como contribui para o afastamento dos cidadãos em relação à política. Que fazer? Do ponto do aperfeiçoamento das leis, urge adoptar a proposta do ex-ministro socialista João Cravinho no sentido de criminalizar o enriquecimento ilícito, cumprindo as obrigações que resultam da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida), que Portugal ratificou em 2007. Muito critiquei - e me entristeceu - a forma desencorajante como o PS, no governo e na AR, lidou com estas propostas no mandato legislativo passado.

Mas todos sabemos que leis não bastam e que o melhor enquadramento jurídico do mundo pode soçobrar nas areias movediças de um sistema de justiça minado pela falta de meios, pela incompetência e pela ânsia de não desagradar ao poder. E só assim se explica que investigações mediatizadas como as operações "Furacão" "Portucale", "Submarinos", "Freeport", BPN e BPP, etc.. tenham produzido tanto fumo e tão pouco fogo, sem ninguém até hoje responsabilizado e ainda menos punido.

Diferente é o que se passa em Itália, país com a vida política há muito ferida de morte pela corrupção. Berlusconi não passa da última e mais obscena encarnação do político sem escrúpulos que utiliza o poder em proveito próprio. Já nos anos 90 a justiça italiana tinha tido a coragem e a competência necessárias para expor uma vasta rede de corrupção ligada à máfia que não deixou nenhum partido político incólume. O próprio fenómeno Berlusconi é uma reacção do eleitorado cínico e desiludido em relação à podridão omnipresente no sistema político italiano. Mas tem sido a justiça italiana quem, resistindo corajosamente a todos os ataques infames, insiste em aplicar a lei ao quase-intocável Primeiro-ministro.

E se dúvidas houvesse de que a justiça é a ilha de decência que resta na vida pública italiana, a condenação recente, por parte de um tribunal de Milão, de 23 agentes americanos da CIA (e dois italianos) por envolvimento no rapto e "extraordinary rendition" de Abu Omar para o Egipto, demonstra que os procuradores e os juízes em Itália não têm medo de nada. Fez-se assim justiça num caso em que a CIA de Bush decidiu utilizar o território de um país aliado para raptar, com a ajuda dos serviços secretos nacionais, um indivíduo suspeito de terrorismo, levando-o para o Egipto onde ele podia ser torturado mais à vontade...

O contraste com Portugal é acabrunhante: a Procuradoria-geral da República (PGR) decidiu em Outubro engavetar a investigação sobre as "extraordinary renditions", ignorando um sem-número de preocupantes indícios e dados contraditórios que a sua própria pesquisa permitira recolher. O apurado até aqui não prova inequivocamente que a CIA usou Portugal nos circuitos da tortura entre as "prisões secretas" e Guantánamo operadas pela Administração Bush, nem se o fez com conhecimento, ou à revelia, das autoridades portuguesas. Mas demonstra que valia a pena continuar a investigar. Se se quisesse apurar a verdade, claro.

Ao arquivar a investigação nesta fase, a PGR demonstra não só não ter interesse na descoberta da verdade, mas também não atribuir importância ao respeito pela legalidade estando em causa direitos humanos e, sobretudo, o próprio funcionamento do Estado de direito em Portugal.

Com uma Procuradoria assim, com demasiadas demonstrações de ser incapaz de levar importantes processos com implicações políticas até ao fim, e em tempo útil - não há melhor legislação anti-corrupção que nos valha.


Artigo publicado no JORNAL DE LEIRIA de hoje, 12.11.2009

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