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5 de julho de 2005

O PLAYBOY QUE CHORAVA NAS CANÇÕES DE AMOR 

Luís Filipe Borges

Sara

Foi na entrega do primeiro teste de Ciência Política com o Professor Marcelo Rebelo de Sousa. O anfiteatro 1 da Faculdade de Direito de Lisboa cheio com cerca de 300 caloiros desejosos de agradar e com o nervoso miudinho de quem vai ouvir a sua primeira nota enquanto universitários. Marcelo entregou os testes um a um, dizendo em voz alta o nome do aluno e a nota atribuída. Começou pelas mais altas e pelo anfiteatro iam ecoando os pacóvios gritos de espanto e um ou outro falso aplauso espontâneo.
Creio que a frequência tinha 3 perguntas e uma delas era qualquer coisa como, ?Quais as diferenças entre os sistemas políticos português, alemão e inglês??. O Professor Marcelo chegou à nota mais baixa e, pela primeira vez, não pode conter uma citação directa do teste. A resposta do aluno fora ?Só Deus sabe?. A sala veio abaixo entre gargalhadas de puro gozo ou puro escárnio. Aquele riso próprio de uma certa maldade infantil que os seres humanos nunca perdem pela vida fora. Como quando um estranho se estatela no passeio à nossa frente e todos os transeuntes se riem porque continuam de pé. Sentem-se superiores.
A Sara desceu corajosamente as escadas do anfiteatro até à mesa do catedrático e recebeu o seu teste. Estava-se nas tintas para o seu público sacrifício e olhava os carrascos com, dir-se-ia, um terno desdém. Foi quando me interessei a sério pela minha colega.
Já conhecia a Sara há dois meses. Partilhávamos uma arrecadação à qual, por conveniência, o Conselho Directivo chamava ?sala?, e onde tinha sido literalmente enfiada a nossa sub-turma. Era difícil não reparar nela porque a Sara, com vontade, assumira naturalmente o papel de ?palhaço da turma?. Sim, era a colega que fazia rir os outros. Aquela espécie de parceiro que não conseguimos imaginar a viver um dia mau. Conseguem imaginar o Jim Carrey a chorar baba e ranho? Pois. Ela representava isso para o resto de nós.
A Sara foi a mais feia de todas as mulheres bonitas que conheci. Porque não a mais bonita de todas as mulheres feias? Qual a diferença? A diferença está na forma como se tratava. Ou como não o fazia. Era evidentemente bonita. Loura, de olhos verdes, um tom escuro que se mascarava de cinzento à noite. Sorriso rasgado, baixa mas de formas voluptuosas. Contudo, ao contrário de qualquer outra mulher com as mesmas características, a Sara não só não se fazia valer dos seus atributos como parecia fazer gala em escondê-los. Citando uma colega qualquer, ela ?vestia-se à mãe?. Nunca ninguém a viu de saias ou maquilhada. Usava calças de ganga, invariavelmente, camisas apertadas até ao penúltimo botão e casacos compridos. Mas o mais interessante era, sem dúvida, o seu acessório preferido, a sua imagem de marca: um guarda-chuva. Trazia o maldito guarda-chuva consigo todos os dias, em qualquer estação do ano, mesmo que o Inverno se tivesse enganado e trouxesse, por um qualquer descuido, calor e sol.
No dia em que recebeu o dito teste das mãos do Professor, falámos a sério pela primeira vez. Eu trazia desde o primeiro dia de aulas uma dúvida pertinente ? acreditava que a cara dela era-me familiar. Mas não tinha encontrado o timing certo para fazer essa pergunta sem que parecesse uma deixa banal da canção do bandido. Finalmente, mais à vontade, descoberta a nossa antipatia comum pelo ensino do Direito naquela faculdade antiquada, confirmei a minha impressão: conhecia o rosto da Sara de um concurso de TV. O Pátio da Fama, apresentado por Diogo Infante, onde candidatos a actores interpretavam excertos de filmes conhecidos numa competição para decidir quem ganharia uma bolsa de estudo em Nova Iorque. A Sara chegou à final como Clarice Starling (a personagem que Jodie Foster imortalizou em ?Silêncio dos Inocentes?).
Falámos muito de coisas inúteis ? ela era especialista em coisas inúteis, e isso também nos aproximou ? desde o facto dos alemães não usarem guardanapos até aos nomes de directores de fotografia de filmes conhecidos, enfim, rimos de trivialidades e creio que nenhum de nós se apercebeu de que tínhamos dado as mãos durante essa conversa e que um hábito acabara de nascer.
Digo-o assim, sem aviso prévio, porque não o sei explicar. Passou a ser a nossa forma habitual de estar. De mãos dadas. Naturalmente, a ideia que passava para as outras pessoas era a de que estávamos ?juntos? mas nós só estávamos assim, e juntos, na faculdade. À noite eu não pensava na Sara e fazia o que seria normal esperar de um açoriano que acabou de chegar a Lisboa e saiu de casa dos pais pela primeira vez. Vivia a minha liberdade, saía praticamente todos os dias e entrava e saia, repetidamente, de relacionamentos fugazes e sem significado. Nas manhãs seguintes, ao chegar às aulas, encontrava-a, e a Sara era a cura para a ressaca, era água, era a mão que me conduzia de volta à realidade.
Certa vez, uma amiga comum dada a misticismos, leu-nos as mãos que não conseguíamos separar. Lançou cartas, fez mapas astrais, leu búzios e o diabo a quatro, para concluir que éramos almas gémeas. Para ela, isso significava dois amantes de vidas passadas que se reencontravam de novo. O ?reencontro? era uma improvável partida pregada ao destino. Não era suposto aquilo estar a acontecer. Cruzarmo-nos novamente. Calculo que se estejam a rir com este parágrafo. Eu também estou.
O meu ritual com a Sara continuava, as gargalhadas também (ela também se divertiu muito com a história anterior porque era tão céptica quanto eu) mas ficava séria sempre que lhe perguntava pelo guarda-chuva. Por isso deixei de perguntar e habituei-me à ideia de que aquele acessório era outro pormenor inexplicável. A juntar às mãos juntas e ao facto de nunca me ter passado pela cabeça o impulso de beijar aquela mulher, por muito atraente que a achasse ou por muito que nos divertíssemos juntos.
Na primeira e única noite em que, finalmente, saímos os dois, pensava que já sabia tudo sobre ela. Era filha de médicos do Porto, que lha davam 200 contos de mesada, recusava os castings todos que lhe propunham, tinha sido a aluna com a média mais alta dos que entraram para direito, 95%, estava sempre bem-disposta, dava-se mal com o pai que encontrava todos os fins-de-semana porque todos os fins-de-semana ia a casa, sentia o mesmo que eu pela FDL, era expert em coisas inúteis e não parecia ter pressa em encontrar namorado.
Nessa noite saímos juntos por acaso. Tínhamos passado o dia com outro casal de amigos. A Sara trouxera duas barrigas falsas, para simular uma gravidez avançada, do consultório do pai. E passámos a tarde, os dois casais, a enganar as funcionárias das lojas da Baixa dedicadas às mães e aos recém-nascidos. Os passageiros do Metro cediam de bom grado os seus lugares às duas jovens ?grávidas?, os comerciantes eram atenciosos, as funcionárias dessas lojas sorriam com genuína ternura e os funcionários falavam connosco dos seus próprios filhos enquanto as nossas ?mulheres? viam berços.
À noite, o outro casal arranjou outra coisa que fazer e nós ficámos sós. Começou a chover torrencialmente. E, pela primeira e única vez, vi a Sara chorar. E aprendi que, afinal, as aparências iludem e sabia na verdade muito pouco sobre a miúda mais divertida da faculdade.
Ela contou enfim a história por detrás do guarda-chuva. Perdera três pessoas fundamentais em dias assim. O único namorado, o avô e uma amiga íntima. Temia a chuva, a tempestade, o dilúvio. Tapava o máximo do corpo que podia porque não se queria molhar e usava o guarda-chuva como um soldado nas trincheiras enverga a espingarda. Era a sua arma, a defesa possível que encontrou para não enlouquecer.
Na nossa única noite beijámo-nos pela única vez e, creio bem, por um único motivo: chovia demasiado, do céu e dos nossos olhos, e eu não sabia o que fazer e ela não tinha mais nada para dizer. A Sara, a menina rica que desperdiçava o dinheiro a pagar coisas aos colegas, a aluna brilhante que não queria saber de boas notas, a actriz talentosa que não aceitava trabalhos, a mulher bonita que não queria ser atraente, a miúda mais divertida da escola que não queria dar a conhecer a sua tragédia.
Nos primeiros dias do 2º ano do curso, a Sara deixou de vir. Nunca mais soube dela, passaram já 8 anos. Acredito que abandonou o guarda-chuva e emigrou para Sul, como os pássaros.

in A Capital

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