14 de julho de 2005
A singularidade da escola pública
por Vital Moreira
Se existe um prémio apetecido na ofensiva contra o "Estado social" e na luta pela privatização dos serviços públicos, ele é seguramente o sistema público de ensino, que concita contra si uma federação de forças tão díspares como a Igreja Católica, as correntes neoliberais e os simples interesses económicos apostados no mercado do ensino. Não admira por isso que eles coloquem a educação à cabeça da agenda política da revisão das funções sociais do Estado.
Cumpre contestar à partida a ideia de que entre nós vigora um sistema de "monopólio de escola pública", como é dito, sem o mínimo rigor, pelos adversários da escola pública. O sistema público de ensino é constitucionalmente obrigatório, mas que não tem, nem poderia ter, nenhuma posição exclusiva. É livre a criação de escolas particulares, tal como a sua frequência. O seu número é, aliás, considerável, desde o ensino básico ao ensino superior. Nem o facto de o ensino básico e secundário público ser gratuito impede a coexistência de um sistema privado paralelo. Tal como sucede na área da saúde e da segurança social, a existência de sistemas públicos não preclude a existência de sectores privados concorrentes.
Sucede, aliás, que entre nós as escolas privadas são oficialmente equiparadas às escolas públicas para efeitos de paralelismo pedagógico e de avaliação e concessão de diplomas, o que está longe de ser uma solução universal em países política a culturalmente próximos de nós. Acresce que as despesas de educação são deduzíveis em sede fiscal, pelo que o Estado acaba por subsidiar indirectamente o ensino particular. Se a isto se adicionarem os "contratos de associação" - pelos quais o Estado subcontrata e paga o serviço público de ensino a escolas privadas, em caso de insuficiência da rede pública -, bem como os consideráveis apoios ao ensino superior particular (acção social escolar, apoios a infra-estruturas, equipamentos, etc.), é fácil constatar como são desprovidas de fundamento, e de senso, as acusações de "totalitarismo de Estado" (sic) com que alguns adversários da escola pública tentam demonizar a actual situação.
Sob o ponto de vista constitucional, a escola pública é entre nós um direito de todos e uma obrigação do Estado, enquanto a escola privada constitui uma liberdade dos interessados, que o Estado deve respeitar e que pode ou não apoiar, desde que prejudique as suas obrigações em relação à escola pública. Não tem nenhum fundamento a peregrina tese segundo a qual o Estado deve garantir um suposto direito ao ensino privado, suportando financeiramente as escolas privadas ou os candidatos a frequentá-las. Tal como sucede com outros direitos sociais gratuitos, como por exemplo a saúde, o Estado só tem a obrigação de assegurar e sustentar o sistema público para toda a gente, mas não a de assegurar e sustentar cuidados de saúde ou sistemas de segurança social ou escolas do sector privado.
Na maior parte dos casos, o ataque à escola pública vem inserido na luta pelo desmantelamento do Estado social, através da eliminação ou redução das responsabilidades públicas na garantia dos tradicionais direitos sociais e na sustentação dos respectivos serviços públicos. Mas o direito ao ensino e à escola pública têm origem e justificação bem anteriores à teoria do Estado social e dos serviços públicos prestacionais. O direito ao ensino público surgiu ainda no século XIX, como instrumento de construção da cidadania e das virtudes cívicas, de integração social e de coesão e unidade nacional. Por isso, constituía não somente um direito, mas também uma obrigação (ensino público obrigatório). Não por acaso, a instrução foi desde o início considerada como condição do próprio direito de voto, tendo o direito ao ensino (e a obrigação de ensino) feito parte, desde sempre, de projectos políticos assaz liberais.
O direito ao ensino foi portanto concebido como direito à escola pública e não como direito a qualquer ensino e a qualquer escola. Só a escola pública, socialmente aberta e plural, bem como neutral sob o ponto de vista ideológico e confessional, é que poderia constituir a plataforma adequada para as referidas funções cívicas de socialização política, de coesão social e de unidade nacional, num quadro de pluralismo político e religioso. A escola pública surge portanto ao serviço de um projecto de universalização da educação, como alternativa à insuficiência e ao fechamento social e religioso das escolas das igrejas, que durante muito tempo mantiveram um quase monopólio do ensino pré-universitário, destinado a uma pequeníssima minoria da população.
É certo que os defensores da privatização do ensino não desejam a total desresponsabilização do Estado na garantia do direito à educação. Na sua perspectiva, o Estado deve continuar a ter o insubstituível papel de financiador. Na verdade, pelo menos em palavras, muitos deles nem sequer preconizam o fim da escola pública. O que dizem querer é a garantia da "liberdade de escolha", através de um sistema que permitisse optar por escolas públicas ou privadas. A solução consistiria no célebre modelo do voucher ou "cheque-ensino" ou num sistema de reembolso de despesas, de efeito equivalente. E, na verdade, se esse sistema de afastamento do Estado como prestador directo tem bons resultados no caso de outras prestações públicas (desde a saúde à assistência social), por que é que ele não pode ser explorado no caso do ensino?
As razões para a resistência ao financiamento público de escolas privadas, mesmo nos ambientes mais liberais e avessos à intervenção pública (como os Estados Unidos, onde a sua implementação é muito escassa), são da mais variada ordem, desde as de natureza financeira até às de cariz político e ideológico, passando pelos argumentos de desigualdade social. Sob o ponto de vista financeiro, a solução seria incomportavelmente onerosa, pelo menos numa primeira fase, visto que o Estado passaria a ter uma despesa adicional (o pagamento dos alunos das escolas privadas) sem poder reduzir concomitantemente as despesas com as escolas públicas (edifícios, equipamentos e sobretudo pessoal).
Sob o ponto de vista social, sendo inquestionável que as escolas privadas de qualidade são muito caras e que o reembolso público não poderia cobrir todas as despesas, o resultado acabaria por redundar num subsídio público das famílias mais abastadas que podem suportar o diferencial de custo e que na maior parte dos casos já frequentam, por razões sociais ou ideológicas, as escolas privadas de nomeada.
Mas as principais razões contra a privatização do ensino público têm a ver com a referida singularidade da escola pública no contexto das prestações públicas. Diferentemente do que sucede noutros serviços públicos, em que as prestações são "fungíveis", sendo indiferente a natureza pública ou privada do estabelecimento que as executa (por exemplo, uma intervenção cirúrgica), no ensino a questão essencial está justamente na mais-valia inerente à escola pública em termos de liberdade individual de aprender e ensinar, de pluralismo, de neutralidade ideológica e confessional, de coabitação e integração social. O "pluralismo externo" de escolas confessionalmente orientadas, com a sua lógica de identificação (e de exclusão) social, confessional ou étnica não é o mesmo que o "pluralismo interno" das escolas públicas, com a sua lógica de inclusão e abrangência social, étnica e religiosa.
Essa função não diminuiu nas sociedades contemporâneas, pelo contrário, dada a crescente pluralidade étnica, religiosa e cultural trazida pela mobilidade social e pela imigração, tornando o ensino público um imprescindível factor de cidadania e de inclusão social. É isso que o torna incontornavelmente resistente à lógica da privatização.
(Público, 3ª feira, 12 de Julho de 2005)
Se existe um prémio apetecido na ofensiva contra o "Estado social" e na luta pela privatização dos serviços públicos, ele é seguramente o sistema público de ensino, que concita contra si uma federação de forças tão díspares como a Igreja Católica, as correntes neoliberais e os simples interesses económicos apostados no mercado do ensino. Não admira por isso que eles coloquem a educação à cabeça da agenda política da revisão das funções sociais do Estado.
Cumpre contestar à partida a ideia de que entre nós vigora um sistema de "monopólio de escola pública", como é dito, sem o mínimo rigor, pelos adversários da escola pública. O sistema público de ensino é constitucionalmente obrigatório, mas que não tem, nem poderia ter, nenhuma posição exclusiva. É livre a criação de escolas particulares, tal como a sua frequência. O seu número é, aliás, considerável, desde o ensino básico ao ensino superior. Nem o facto de o ensino básico e secundário público ser gratuito impede a coexistência de um sistema privado paralelo. Tal como sucede na área da saúde e da segurança social, a existência de sistemas públicos não preclude a existência de sectores privados concorrentes.
Sucede, aliás, que entre nós as escolas privadas são oficialmente equiparadas às escolas públicas para efeitos de paralelismo pedagógico e de avaliação e concessão de diplomas, o que está longe de ser uma solução universal em países política a culturalmente próximos de nós. Acresce que as despesas de educação são deduzíveis em sede fiscal, pelo que o Estado acaba por subsidiar indirectamente o ensino particular. Se a isto se adicionarem os "contratos de associação" - pelos quais o Estado subcontrata e paga o serviço público de ensino a escolas privadas, em caso de insuficiência da rede pública -, bem como os consideráveis apoios ao ensino superior particular (acção social escolar, apoios a infra-estruturas, equipamentos, etc.), é fácil constatar como são desprovidas de fundamento, e de senso, as acusações de "totalitarismo de Estado" (sic) com que alguns adversários da escola pública tentam demonizar a actual situação.
Sob o ponto de vista constitucional, a escola pública é entre nós um direito de todos e uma obrigação do Estado, enquanto a escola privada constitui uma liberdade dos interessados, que o Estado deve respeitar e que pode ou não apoiar, desde que prejudique as suas obrigações em relação à escola pública. Não tem nenhum fundamento a peregrina tese segundo a qual o Estado deve garantir um suposto direito ao ensino privado, suportando financeiramente as escolas privadas ou os candidatos a frequentá-las. Tal como sucede com outros direitos sociais gratuitos, como por exemplo a saúde, o Estado só tem a obrigação de assegurar e sustentar o sistema público para toda a gente, mas não a de assegurar e sustentar cuidados de saúde ou sistemas de segurança social ou escolas do sector privado.
Na maior parte dos casos, o ataque à escola pública vem inserido na luta pelo desmantelamento do Estado social, através da eliminação ou redução das responsabilidades públicas na garantia dos tradicionais direitos sociais e na sustentação dos respectivos serviços públicos. Mas o direito ao ensino e à escola pública têm origem e justificação bem anteriores à teoria do Estado social e dos serviços públicos prestacionais. O direito ao ensino público surgiu ainda no século XIX, como instrumento de construção da cidadania e das virtudes cívicas, de integração social e de coesão e unidade nacional. Por isso, constituía não somente um direito, mas também uma obrigação (ensino público obrigatório). Não por acaso, a instrução foi desde o início considerada como condição do próprio direito de voto, tendo o direito ao ensino (e a obrigação de ensino) feito parte, desde sempre, de projectos políticos assaz liberais.
O direito ao ensino foi portanto concebido como direito à escola pública e não como direito a qualquer ensino e a qualquer escola. Só a escola pública, socialmente aberta e plural, bem como neutral sob o ponto de vista ideológico e confessional, é que poderia constituir a plataforma adequada para as referidas funções cívicas de socialização política, de coesão social e de unidade nacional, num quadro de pluralismo político e religioso. A escola pública surge portanto ao serviço de um projecto de universalização da educação, como alternativa à insuficiência e ao fechamento social e religioso das escolas das igrejas, que durante muito tempo mantiveram um quase monopólio do ensino pré-universitário, destinado a uma pequeníssima minoria da população.
É certo que os defensores da privatização do ensino não desejam a total desresponsabilização do Estado na garantia do direito à educação. Na sua perspectiva, o Estado deve continuar a ter o insubstituível papel de financiador. Na verdade, pelo menos em palavras, muitos deles nem sequer preconizam o fim da escola pública. O que dizem querer é a garantia da "liberdade de escolha", através de um sistema que permitisse optar por escolas públicas ou privadas. A solução consistiria no célebre modelo do voucher ou "cheque-ensino" ou num sistema de reembolso de despesas, de efeito equivalente. E, na verdade, se esse sistema de afastamento do Estado como prestador directo tem bons resultados no caso de outras prestações públicas (desde a saúde à assistência social), por que é que ele não pode ser explorado no caso do ensino?
As razões para a resistência ao financiamento público de escolas privadas, mesmo nos ambientes mais liberais e avessos à intervenção pública (como os Estados Unidos, onde a sua implementação é muito escassa), são da mais variada ordem, desde as de natureza financeira até às de cariz político e ideológico, passando pelos argumentos de desigualdade social. Sob o ponto de vista financeiro, a solução seria incomportavelmente onerosa, pelo menos numa primeira fase, visto que o Estado passaria a ter uma despesa adicional (o pagamento dos alunos das escolas privadas) sem poder reduzir concomitantemente as despesas com as escolas públicas (edifícios, equipamentos e sobretudo pessoal).
Sob o ponto de vista social, sendo inquestionável que as escolas privadas de qualidade são muito caras e que o reembolso público não poderia cobrir todas as despesas, o resultado acabaria por redundar num subsídio público das famílias mais abastadas que podem suportar o diferencial de custo e que na maior parte dos casos já frequentam, por razões sociais ou ideológicas, as escolas privadas de nomeada.
Mas as principais razões contra a privatização do ensino público têm a ver com a referida singularidade da escola pública no contexto das prestações públicas. Diferentemente do que sucede noutros serviços públicos, em que as prestações são "fungíveis", sendo indiferente a natureza pública ou privada do estabelecimento que as executa (por exemplo, uma intervenção cirúrgica), no ensino a questão essencial está justamente na mais-valia inerente à escola pública em termos de liberdade individual de aprender e ensinar, de pluralismo, de neutralidade ideológica e confessional, de coabitação e integração social. O "pluralismo externo" de escolas confessionalmente orientadas, com a sua lógica de identificação (e de exclusão) social, confessional ou étnica não é o mesmo que o "pluralismo interno" das escolas públicas, com a sua lógica de inclusão e abrangência social, étnica e religiosa.
Essa função não diminuiu nas sociedades contemporâneas, pelo contrário, dada a crescente pluralidade étnica, religiosa e cultural trazida pela mobilidade social e pela imigração, tornando o ensino público um imprescindível factor de cidadania e de inclusão social. É isso que o torna incontornavelmente resistente à lógica da privatização.
(Público, 3ª feira, 12 de Julho de 2005)