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22 de janeiro de 2009

O desnorte 

Por Vital Moreira

Supostamente, a última mudança de liderança do PSD, culminando uma rápida sucessão de protagonistas desde 2005, destinava-se a recuperar a credibilidade perdida pelo principal partido da oposição. Vários meses passados sem conseguir registar nenhum ganho de credibilidade política (pelo menos a crer nas sondagens de opinião), o recente pronunciamento pelo cancelamento do projecto do TGV - que o próprio PSD aprovou enquanto governo - e a comprometedora e falsa acusação a uma agência noticiosa por causa disso mostram que, além da falta de credibilidade, o PSD carece também de sentido de responsabilidade e de sentido de Estado.

Ferreira Leite desvendou finalmente o mistério da sua militante oposição aos projectos de "grandes obras públicas". O alvo escolhido é o projecto de rede ferroviária de bitola europeia, vulgarmente conhecido como "projecto TGV". Trata-se de uma decisão radical de "riscar" o projecto em globo, e não de uma simples proposta de adiamento ou de suspensão provisória, o que não deixa margem para outro entendimento que não seja o seu cancelamento e a paragem de todo o processo, incluindo os concursos públicos já abertos.

Contudo, o principal argumento da líder do PSD para anunciar a sua extremista oposição a esse projecto - que ela aprovou, aliás em versão mais ampla, quando foi ministra das Finanças! - revela muita mistificação e maior preconceito.

Dizer que, por referência ao actual tráfego aéreo, o previsível número de passageiros na ligação Lisboa-Madrid (e só a essa se referiu especificamente) não garante a rentabilidade financeira do investimento, não revela somente uma enorme leviandade política (pois o argumento seria tão pertinente hoje como há cinco anos, quando o governo do PSD e Ferreira Leite aprovaram o mesmo projecto), também esquece deliberadamente que essa linha não servirá apenas para as viagens entre as duas capitais, mas também para as viagens de Évora, de Elvas/Badajoz e mesmo de Mérida e Cáceres para Lisboa (e em especial para o novo aeroporto de Lisboa), e que a mesma linha terá também valência de transporte de mercadorias, o que constitui outra fonte de receita, ao mesmo tempo que fomenta a utilização espanhola dos portos de Lisboa, Setúbal e Sines.

Seja como for, como mostram os estudos de viabilidade do projecto, na avaliação de um investimento desta natureza não podem ponderar exclusivamente os seus custos e as receitas directas. Para além da importância essencial da rede ferroviária de bitola europeia para a modernização da infra-estrutura de transportes do país e para a integração na rede europeia de grandes eixos de transportes - que por isso goza de substanciais apoios financeiros da UE, que seriam perdidos se o projecto fosse cancelado -, há pelo menos mais dois factores decisivos a considerar.

Por um lado, na equação financeira do TGV importa valorizar a sua enorme vantagem ambiental, traduzida na poupança de milhões de toneladas de CO2, em comparação com o transporte aéreo e rodoviário, cujos custos ambientais serão cada vez mais onerosos. Por outro lado, para além da sua expressão económica, os transportes colectivos têm desde sempre uma dimensão de serviço público, pelas suas vantagens sociais e ambientais. É por isso que eles beneficiam em geral de um financiamento público, a título de "indemnização de serviço público". Essa vertente de serviço público não pode ser ignorada especialmente no caso do transporte ferroviário, incluindo a nova rede de TGV. De outro modo, se se contabilizassem somente as despesas e as receitas efectivas, teriam de ser encerradas várias das actuais ligações ferroviárias no activo, bem como, por exemplo, todos os transportes colectivos urbanos de Lisboa e do Porto, que vivem em grande parte à conta do Orçamento do Estado...

Acresce que a fundamentalista opção por "riscar" todo o projecto ferroviário de bitola europeia, incluindo as duas linhas acordadas com Espanha e já em desenvolvimento no país vizinho (Vigo-Porto e Madrid-Lisboa), não pode deixar de suscitar delicados problemas de responsabilidade e mesmo de credibilidade internacional do Estado português.

De facto, causa o maior espanto que a líder do PSD, após ter acusado, com toda a ligeireza, a agência Lusa de, "a mando do Governo", ter ido ouvir a Madrid os "socialistas espanhóis" (o que se revelou totalmente falso), veio depois argumentar que a questão do TGV "apenas diz respeito à política interna portuguesa", não tendo os espanhóis nada a ver com isso. Lê-se, e não se acredita!

Deixando de lado a insólita e condenável investida contra a Lusa (que todavia exprime bem o desrespeito pela independência dos media...), é evidente que a partir do momento em que o projecto TGV integra linhas comuns a Portugal e a Espanha, que foram acordadas oficialmente entre os dois países, incluindo quanto ao calendário, a questão deixou de ser manifestamente uma simples "questão de política interna portuguesa". É indesmentível que as referidas linhas, cuja parte espanhola está em curso, estando a linha Lisboa-Madrid já em obras, pressupõem a construção dos troços portugueses, cumprindo a nossa parte no acordo entre os dois países. Se a situação fosse por acaso a inversa, recusando-se os espanhóis unilateralmente a avançar com essas linhas, será que os partidos portugueses se deveriam abster de protestar, por se tratar de "assunto interno de Espanha"? Haja decência!

Decididamente, com este irresponsável comportamento político, mais próprio de qualquer partido extremista de contrapoder, o PSD persiste em se confirmar como um partido não fiável, e também destituído de sentido de Estado. Só faltava agora pôr em causa os compromissos internacionais do país, que aliás ele mesmo firmou!

(Público, 3ª feira, 20.01.2009)

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