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21 de setembro de 2006

Virtudes e limites do "governo pactício" 

Por Vital Moreira

O acordo entre o PS e o PSD sobre a reforma da justiça, que é de aplaudir em geral, desencadeou uma espécie de "vertigem pactícia". Há os que sentem excluídos do acordo e também queriam estar nele. A par de algumas críticas, há protagonistas políticos, alguns partidos, grupos sociais e observadores a clamar por mais. Porém, numa democracia maioritária, como a nossa, os acordos políticos à margem dos procedimentos normais da democracia parlamentar devem ser usados com toda a contenção.
As críticas ao acordo não vêm somente dos que pensam que não deve haver nenhum acordo privativo entre o Governo e PSD, como é o caso dos partidos da oposição de esquerda, mas também dos que acham que deveriam ter sido parte nele. Entre estes, para além dos partidos políticos que se sentem enjeitados (nomeadamente o CDS-PP), contam-se sobretudo os grupos profissionais do sector, designadamente as corporações judiciárias. Mas é evidente que o alargamento partidário do acordo tê-lo-ia tornado politicamente inviável e que não faz nenhum sentido a participação das corporações profissionais num acordo político formal sobre o sector da justiça.
Quanto aos partidos políticos, não carece de grande demonstração o argumento de que, enquanto a plataforma de convergência entre o PS e o PSD era muito grande à partida (além do mais, pela ausência de grandes divergências ideológicas nesta área), tornando viável o acordo sem grandes cedências recíprocas, já assim não sucederia se o espectro dos partidos envolvidos fosse mais amplo.
No que respeita à pretendida participação dos grupos profissionais do sector no referido acordo, ou à negociação prévia com os mesmos, ela não tem nenhuma lógica democrática. Em primeiro lugar, o acordo não tem por objecto principal, nem muito menos exclusivo, o estatuto profissional dos agentes do sector. Em segundo lugar, em matérias de construção do Estado, a primeira regra democrática é que elas são de interesse geral e não de interesse sectorial ou corporativo.

Uma das grandes virtudes deste acordo político é justamente o ter-se afastado deliberadamente da ideia tradicional de "pacto para a justiça" como compromisso entre o Governo e os agentes e operadores do sector, numa espécie de "concertação judiciária" abrangente (incluindo os sectores profissionais), assumindo-se antes como acordo estritamente político-partidário. Na verdade, se a "concertação social" é compreensível, como o nome sugere, nas áreas económicas e sociais (e mesmo aí com vários limites), já não faz sentido nos assuntos que têm a ver essencialmente com as instituições constitucionais.
Um das perversões da democracia é a captura das instituições pelos interesses profissionais nelas envolvidos. A Justiça é porventura a principal vítima desta expropriação do Estado pelos interesses profissionais. Nesse contexto, este acordo significa a recuperarão integral da responsabilidade política na área da justiça, ou seja, um triunfo do Estado sobre as corporações. Dizer que não pode haver reforma da justiça senão com os seus agentes e operadores, conferindo-lhes uma espécie de "direito de veto", é um sofisma que justifica toda a complacência e pusilanimidade do poder político na cedência aos interesses organizados. Nada permite admitir que os interesses privativos das profissões judiciárias coincidem com os interesses públicos gerais da justiça. Há dois interesses essenciais que não têm voz própria nem sindicato: os utentes da justiça e os contribuintes. É para eles que deve ser feita a reforma.
Sucede que, na senda do acordo sobre a reforma da justiça, rapidamente se desencadeou uma espécie de movimento em favor da adopção do mesmo método em vários outras esferas carecidas de reforma mais ou menos profundas, ou onde ela já está em curso, como a segurança social. Num excesso de entusiasmo, um comentador chegou a reclamar: «Venham mais quatro acordos»!
Esta nova teologia do "governo pactício", ou pactuado, deve ser esfriada e "desconfessionalizada". O cerne da democracia de partidos não consiste na consensualização sistemática de políticas entre o Governo e a oposição mas, inversamente, no confronto de posições, na justificação das soluções, na persuasão dos argumentos e na regra da maioria e da responsabilidade política de quem foi eleito para governar. É aliás suposto que entre o Governo e a oposição, que já governou e se candidata a governar no futuro, existam suficientes diferenças para justificar a alternância democrática e a mudança de políticas. Se se consensualizam e se rigidificam as principais políticas, o que é que resta para o debate e a dialéctica democrática?
Afora situações excepcionais (como a crise aguda das finanças públicas que em 2003 levou alguns, entre os quais me conto, a defender um acordo para a disciplina das finanças públicas, estando então em exercício o governo da coligação PSD-CDS), os pactos políticos só se justificam em determinadas circunstâncias (e desde que não seja possível obter as necessárias convergências no quadro dos procedimentos normais da democracia parlamentar), designadamente as seguintes: (i) quando os acordos sejam implicitamente "impostos" pela Constituição, como sucede com as decisões que carecem de uma maioria de 2/3 (revisão constitucional, sistema eleitoral, etc.); (ii) quando se trate de matérias de construção do Estado, nomeadamente as que afectam o funcionamento das instituições essenciais (Tribunal Constitucional, sistema judicial, regime dos partidos políticos, etc.); (iii) quando se trate de assuntos que criem situações irreversíveis e comprometam decisivamente os governos futuros (como, por exemplo, os compromissos políticos internacionais duradouras, de que são paradigma os que respeitam, à UE).
No acordo sobre a justiça estão em causa as instituições essenciais do Estado de direito. Além disso, as divergências partidárias são de baixa intensidade e o acordo tinha grande possibilidades de ser um arranjo "win-win", em que ambos os contratantes ganham: ganha o Governo, porque reforça a sua capacidade de levar a cabo uma reforma importante sem ter necessidade de transigir em nada de essencial no seu próprio programa, e ganha a oposição, porque se associa a uma reforma emblemática e consegue fazer valer alguns dos seus pontos de vista. Ora, tirando a reforma do sistema eleitoral, nenhum dos demais acordos aventados pela oposição e pelos observadores encaixa em qualquer das referidas situações.
Nas demais hipóteses, trata-se em geral de questões de natureza económica e social, que são normalmente aquelas em que a divisão entre o governo e a oposição é natural e desejável. Pode compreender-se o desejo da oposição de condicionar o Governo e pressioná-lo para adoptar as suas próprias políticas. Pode justificar-se uma eventual tentação do Governo em chegar a acordo com a oposição para melhorar as condições de êxito de uma reforma, ampliando o seu suporte político, mesmo tendo de ceder em alguns pontos importantes das suas posições. Mas nada disso pode justificar o sacrifício do programa político em que o Governo se encontra comprometido, nem os acordos forçados em matérias nas quais o Governo e a oposição se acham muito afastados à partida. É manifestamente o que sucede na segurança social, onde a proposta do PSD, para além de ser financeiramente insustentável durante um largo período de tempo, assenta em pressupostos ideológicos com os quais o PS não pode transigir.
Pior do que a falta de "acordos políticos" entre Governo e oposição pode ser a precipitação e o abuso deles.

(Publico, Terça-Feira, 12 de Setembro de 2006)

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