17 de setembro de 2006
A INDISPENSÁVEL EUROPA
por Ana Gomes
A disponibilidade de enviar 7000 tropas para o sul do Líbano revela que a Europa está a preparar-se para assumir um papel mais activo na cena internacional e no Processo de Paz do Médio Oriente em particular. Os governos europeus não podem enviar tantos soldados para uma zona tão perigosa, e sob um mandato da ONU tão ambíguo, sem tomar a decisão de se envolver activamente na resolução do conflito que levou ao envio.
Porém, os comentários surpreendidos sobre as decisões da França, da Itália, da Espanha, de Portugal e até da Alemanha em arriscar as suas tropas (e as suas marinhas) no pântano libanês, mais parecem reflectir a "Europa fechada sobre si própria", "impotente", "irrelevante", "desunida", "antimilitar" etc.
Na verdade, o envio de tropas europeias para o Líbano - ainda que fora de estruturas da União Europeia (UE) - reflecte não o corte com um passado de impotência, mas sim a continuidade da dinâmica de afirmação europeia na esfera internacional que, desde 2003 (apesar das clivagens sobre o Iraque, ou por causa delas...), inclui o uso de meios militares quando estes se afiguram necessários.
Em Junho de 2003, a missão militar Artémis da UE no Nordeste da República Democrática do Congo (RDC) foi decisiva para pôr fim às atrocidades que se cometiam na região de Ituri, ao mesmo tempo que permitiu à ONU a transição para uma missão MONUC II reforçada - que hoje, com 17.000 elementos, é a maior missão de paz da ONU. No mês passado, a força militar europeia que se encontra no Congo, a EUFOR-RDC - que inclui fuzileiros portugueses - teve um papel decisivo em fazer calar as armas entre as forças dos candidatos presidenciais Kabila e Bemba, incorrígiveis senhores da guerra.
Ao participar na missão de observação do Parlamento Europeu às eleições presidenciais e legislativas de 30 de Julho na RDC, testemunhei a gigantesca operação logística de organizar eleições num país do tamanho da Europa Ocidental. Esta operação - e de facto, todo o processo de transição da RDC desde 2003 - não podia nunca ter chegado até aqui sem a UE. Se as eleições devem ser motivo de orgulho para o povo congolês, também assim será para a Europa, que as financiou a 80%, (só Comissão Europeia contribuiu com ?165 milhões).
O envolvimento da UE na RDC, desde o fim da terrível guerra que devastou o país, tem sido o melhor exemplo da aplicação no terreno da Estratégia Europeia de Segurança, de 2003: ajuda humanitária e ao desenvolvimento, apoio técnico à desmobilização e ao desarmamento de milícias, sustentação do processo político e instrumentos da Política Europeia de Segurança e Defesa - todos são meios complementares, usados de forma coerente para atingir um fim último: um Congo democrático, pacífico, próspero e estável, capaz de controlar os fabulosos recursos em favor do seu povo. O Congo ilustra o que os líderes europeus têm de saber explicar aos seus concidãos: o 'multilateralismo eficaz' que a Europa quer construir também tem de passar pelo arriscar da vida de soldados europeus, no uso da força militar estritamente aplicada no quadro da legalidade internacional.
A UE já tem neste momento cerca de 6000 tropas na Bósnia, 2000 em África no contexto da EUFOR RDC, sem falar nas importantes - mas cada dia mais insuficientes - contribuições europeias no Afeganistão e no Darfur. Além do Líbano, poderá ter de refroçar forças na Palestina (já tem em Gaza duas missões, uma afecta à formação da Polícia, outra vigiando a fronteira com o Egipto). Em todos estes casos, a abordagem europeia tem integrado o uso de meios militares e policiais numa paciente estratégia politica de estabilização, desenvolvimento e democratização a longo prazo. Isto nada tem a ver com aventuras militares e ânsias de 'regime change'. Trata-se de conceber a segurança como um complexo articulado de factores económicos, políticos, humanitários, e sim, militares - e de agir quando é preciso agir. A Europa não faz milagres, não liberta de um dia para o outro países do jugo de um ditador sanguinário. Mas também não mergulha países em sangrentas guerras civis...
Nesse sentido, a participação europeia na força da ONU no Sul do Líbano pode representar um passo de gigante no amadurecimento de uma política externa europeia. Enquanto a Comissão Europeia contribui para a reconstrução, para a ajuda humanitária e para o desenvolvimento do Líbano, as capitais europeias colocam tropas no terreno e injectam capital político e uma nova dinâmica num processo de paz que parecia moribundo, desde há muito abandonado por Washington.
Talvez tudo isto não dê em nada. Talvez um reacender das hostilidades entre Hezbollah e Israel deite tudo a perder. Mas antes desta última guerra no Médio Oriente insistia-se que sem o envolvimento dos EUA não haveria paz entre árabes e israelitas. Agora tudo indica que sem a indispensável Europa não haverá paz no Médio Oriente.
(publicado pelo COURRIER INTERNACIONAL em 15.9.06)
A disponibilidade de enviar 7000 tropas para o sul do Líbano revela que a Europa está a preparar-se para assumir um papel mais activo na cena internacional e no Processo de Paz do Médio Oriente em particular. Os governos europeus não podem enviar tantos soldados para uma zona tão perigosa, e sob um mandato da ONU tão ambíguo, sem tomar a decisão de se envolver activamente na resolução do conflito que levou ao envio.
Porém, os comentários surpreendidos sobre as decisões da França, da Itália, da Espanha, de Portugal e até da Alemanha em arriscar as suas tropas (e as suas marinhas) no pântano libanês, mais parecem reflectir a "Europa fechada sobre si própria", "impotente", "irrelevante", "desunida", "antimilitar" etc.
Na verdade, o envio de tropas europeias para o Líbano - ainda que fora de estruturas da União Europeia (UE) - reflecte não o corte com um passado de impotência, mas sim a continuidade da dinâmica de afirmação europeia na esfera internacional que, desde 2003 (apesar das clivagens sobre o Iraque, ou por causa delas...), inclui o uso de meios militares quando estes se afiguram necessários.
Em Junho de 2003, a missão militar Artémis da UE no Nordeste da República Democrática do Congo (RDC) foi decisiva para pôr fim às atrocidades que se cometiam na região de Ituri, ao mesmo tempo que permitiu à ONU a transição para uma missão MONUC II reforçada - que hoje, com 17.000 elementos, é a maior missão de paz da ONU. No mês passado, a força militar europeia que se encontra no Congo, a EUFOR-RDC - que inclui fuzileiros portugueses - teve um papel decisivo em fazer calar as armas entre as forças dos candidatos presidenciais Kabila e Bemba, incorrígiveis senhores da guerra.
Ao participar na missão de observação do Parlamento Europeu às eleições presidenciais e legislativas de 30 de Julho na RDC, testemunhei a gigantesca operação logística de organizar eleições num país do tamanho da Europa Ocidental. Esta operação - e de facto, todo o processo de transição da RDC desde 2003 - não podia nunca ter chegado até aqui sem a UE. Se as eleições devem ser motivo de orgulho para o povo congolês, também assim será para a Europa, que as financiou a 80%, (só Comissão Europeia contribuiu com ?165 milhões).
O envolvimento da UE na RDC, desde o fim da terrível guerra que devastou o país, tem sido o melhor exemplo da aplicação no terreno da Estratégia Europeia de Segurança, de 2003: ajuda humanitária e ao desenvolvimento, apoio técnico à desmobilização e ao desarmamento de milícias, sustentação do processo político e instrumentos da Política Europeia de Segurança e Defesa - todos são meios complementares, usados de forma coerente para atingir um fim último: um Congo democrático, pacífico, próspero e estável, capaz de controlar os fabulosos recursos em favor do seu povo. O Congo ilustra o que os líderes europeus têm de saber explicar aos seus concidãos: o 'multilateralismo eficaz' que a Europa quer construir também tem de passar pelo arriscar da vida de soldados europeus, no uso da força militar estritamente aplicada no quadro da legalidade internacional.
A UE já tem neste momento cerca de 6000 tropas na Bósnia, 2000 em África no contexto da EUFOR RDC, sem falar nas importantes - mas cada dia mais insuficientes - contribuições europeias no Afeganistão e no Darfur. Além do Líbano, poderá ter de refroçar forças na Palestina (já tem em Gaza duas missões, uma afecta à formação da Polícia, outra vigiando a fronteira com o Egipto). Em todos estes casos, a abordagem europeia tem integrado o uso de meios militares e policiais numa paciente estratégia politica de estabilização, desenvolvimento e democratização a longo prazo. Isto nada tem a ver com aventuras militares e ânsias de 'regime change'. Trata-se de conceber a segurança como um complexo articulado de factores económicos, políticos, humanitários, e sim, militares - e de agir quando é preciso agir. A Europa não faz milagres, não liberta de um dia para o outro países do jugo de um ditador sanguinário. Mas também não mergulha países em sangrentas guerras civis...
Nesse sentido, a participação europeia na força da ONU no Sul do Líbano pode representar um passo de gigante no amadurecimento de uma política externa europeia. Enquanto a Comissão Europeia contribui para a reconstrução, para a ajuda humanitária e para o desenvolvimento do Líbano, as capitais europeias colocam tropas no terreno e injectam capital político e uma nova dinâmica num processo de paz que parecia moribundo, desde há muito abandonado por Washington.
Talvez tudo isto não dê em nada. Talvez um reacender das hostilidades entre Hezbollah e Israel deite tudo a perder. Mas antes desta última guerra no Médio Oriente insistia-se que sem o envolvimento dos EUA não haveria paz entre árabes e israelitas. Agora tudo indica que sem a indispensável Europa não haverá paz no Médio Oriente.
(publicado pelo COURRIER INTERNACIONAL em 15.9.06)