26 de janeiro de 2005
Restabelecer a confiança dos cidadãos na política e nas instituições
por Vital Moreira
Caros amigos
1. Sou reincidente. Passados 10 anos sobre os Estados Gerais, de boa memória mas de efémeros resultados, apraz-me participar de novo convosco nesta manifestação de abertura do PS ao exterior. E não o faço com menos convicção e empenho do que há uma década.
Não está em causa somente o apelo da responsabilidade cívica ao homem de esquerda que eu sou e ao antigo militante político que eu fui. Se há momentos em que todos cidadãos que se interessam pelos destinos da República ? mesmo se retirados da política e sem filiação partidária ? não devem ficar indiferentes, este tempo por que passamos é seguramente um deles. Na verdade, mais grave do que a crise das finanças públicas é a crise de confiança na política em geral e na governação em especial.
Aos dois governos da coligação PSD-CDS, especialmente ao de Santana Lopes, devemos seguramente um dos mais graves momentos de degenerescência e degradação da legitimidade da política e da credibilidade da democracia. Ninguém poderia imaginar que, 30 anos depois do 25 de Abril, um Governo e um primeiro-ministro revelassem tanta ausência de sentido de Estado e tanta falta de decência e de simples decoro político, que acaba na indigna litania da vitimização.
No plano político, estas eleições colocam fundamentalmente três desafios ao PS, como candidato natural à governação do País:
1º - Resgatar a seriedade e responsabilidade da política;
2º - Restaurar a dignidade e a autoridade do Estado e do governo;
3º - Devolver aos cidadãos a confiança na política e o sentido de identificação com as instituições.
2. Começo naturalmente pelo primeiro.
O que mais tem faltado em Portugal nos últimos 5 meses não são meios para equilibrar as contas públicas, mas sim competência, seriedade e responsabilidade política. Em vez disso tem sobrado o populismo, a imprevisibilidade política, o arrivismo, o triunfo dos interesses sectoriais, o favoritismo político, o assalto partidário ao aparelho do Estado, e por último o abuso de poder (como mostra a vertigem governativa do Governo depois de demitido).
Numa competição desleal com humoristas e cartunistas, o Primeiro-ministro e vários dos seus ministros dedicaram-se metodicamente a desacreditar a política em geral e o governo em especial, numa sucessão de demagogia, de intrigas intestinas, de ingerências nos media e de inconstância errática de políticas.
Entre os estragos a consertar pelo futuro governo socialista, a prioridade só pode ir para o resgate da seriedade e responsabilidade da política. Tanto como restaurar a saúde financeira, urge recuperar a saúde política. Só merece alcançar o poder quem, pelo seu passado, carácter, cultura política e fibra moral der garantias de uma governação conforme à Constituição e aos ditames da ética, da decência e da responsabilidade democrática.
3. O segundo desafio consiste em restaurar a dignidade e a eminência do Estado e do poder público democrático.
Sob a capa neoliberal, vai campeando por aí um discurso anarco-capitalista, que exalta o mercado e o privado acima de todas as coisas e que diaboliza e degrada o conceito de Estado e do poder público. Mas quanto maior for a erosão da autoridade do Estado, menor é a sua capacidade para cumprir as funções de que está constitucionalmente incumbido, maior é a margem de domínio e influência dos grupos de interesse e das corporações, e mais fundo é o sentimento de desamparo e de insegurança dos cidadãos comuns, em especial dos mais débeis e desprotegidos. Parafraseando um protagonista da Revolução Francesa, entre o fraco e o forte é o Estado que liberta e é a ausência dele que oprime.
Sem uma indiscutível respeitabilidade e autoridade do poder público e sem a reabilitação da esfera pública, o Estado democrático não está em condições de preencher as suas incontornáveis missões de garante das instituições democráticas, de responsável pela justiça e pela segurança, de regulador de mercado e da "auto-regulação privada", de esteio dos serviços públicos essenciais, como a educação, a saúde e os demais serviços básicos, e de participação condigna nas instituições europeias e na cena internacional.
Um Estado-de-Direito democrático pressupõe a separação entre o que é público e o que é privado, entre a lógica do interesse público e a lógica dos interesses particulares. Essa separação ontológica está em risco, sempre que se manifestam fenómenos de promiscuidade entre o Estado e os interesses organizados, sejam eles de natureza económica, profissional, religiosa, desportiva, etc.
Há que pôr-lhes fim, a bem da autonomia e autoridade do poder público.
4. A terceira aposta tem de ser o restabelecimento da confiança dos cidadãos na política e nas instituições.
Um recente inquérito de opinião confirmou e reforçou a descrença da maioria dos cidadãos na política, nos partidos políticos e nas instituições, bem como a sua crescente desafeição em relação à participação democrática, em geral, e eleitoral, em particular. Outros inquéritos revelam idêntica decepção quanto à Administração e aos serviços públicos. Agrava-se a percepção relativa à corrupção e a outras práticas lesivas do interesse público.
Um governo PS não pode conformar-se com esta situação. Há que provar que os partidos não são "todos iguais"; que não andam "todos ao mesmo"; que as eleições são a escolha entre reais alternativas de valores, de políticas e de governantes; que o eleitoralismo populista deve ceder lugar à credibilidade das propostas eleitorais; que os compromissos eleitorais são para cumprir; que os políticos podem e devem ser impolutos e que a política não é um meio de enriquecimento nem de favorecimento pessoal; que o acesso aos cargos públicos se pautará por critérios de imparcialidade e de competência; que a improbidade e o compadrio serão combatidas com determinação.
5. Para responder a estes reptos há seguramente que efectuar reformas políticas (muitas das quais se arrastam há vários anos): desde o sistema eleitoral até à transparência administrativa; desde a limitação de mandatos políticos até aos inquéritos parlamentares; desde as imunidades políticas até à forma de recrutamento dos dirigentes administrativos. Mas nenhuma reforma será suficiente sem uma forte convicção e determinação política para mudar as coisas.
Uma das primeiras iniciativas do novo governo socialista espanhol foi a aprovação de um código de conduta do Governo e dos seus membros. É um documento notável, como o tem sido aliás a sua acção em muitos outros aspectos. De facto, tanto como as políticas, contam os governantes e o modo de governar.
Na nossa tradição republicana, um governo democrático não pode deixar de pautar-se por uma forte ética de dedicação à causa pública, de elevação cívica e de responsabilidade pessoal. Para um Governo do PS ? que é herdeiro dessa tradição e que terá de preparar a comemoração do centenário da República, daqui a cinco anos ?, é imperativo convocar de novo o espírito tutelar da cidadania republicana.
Estas eleições devem ser obviamente um confronto entre diferentes valores, ideias e políticas. Mas devem ser também ? e talvez principalmente ?, um confronto entre diferentes visões e práticas do Estado e do modo de fazer política. Da parte do PS ? se necessário, fazendo uma revisão crítica da sua própria experiência governativa ?, importa afirmar um novo modo de governar.
O que fica para a história dos governos não são somente as grandes decisões e reformas, mas também o carácter e a estatura da governação. É este o desafio do PS e de José Sócrates, em particular, e de todos nós, em geral. Que estejamos todos à altura dele!
Obrigado pela vossa atenção.
(Intervenção na "Convenção Novas Fronteiras". Estoril, 22 Janeiro 2005)
Caros amigos
1. Sou reincidente. Passados 10 anos sobre os Estados Gerais, de boa memória mas de efémeros resultados, apraz-me participar de novo convosco nesta manifestação de abertura do PS ao exterior. E não o faço com menos convicção e empenho do que há uma década.
Não está em causa somente o apelo da responsabilidade cívica ao homem de esquerda que eu sou e ao antigo militante político que eu fui. Se há momentos em que todos cidadãos que se interessam pelos destinos da República ? mesmo se retirados da política e sem filiação partidária ? não devem ficar indiferentes, este tempo por que passamos é seguramente um deles. Na verdade, mais grave do que a crise das finanças públicas é a crise de confiança na política em geral e na governação em especial.
Aos dois governos da coligação PSD-CDS, especialmente ao de Santana Lopes, devemos seguramente um dos mais graves momentos de degenerescência e degradação da legitimidade da política e da credibilidade da democracia. Ninguém poderia imaginar que, 30 anos depois do 25 de Abril, um Governo e um primeiro-ministro revelassem tanta ausência de sentido de Estado e tanta falta de decência e de simples decoro político, que acaba na indigna litania da vitimização.
No plano político, estas eleições colocam fundamentalmente três desafios ao PS, como candidato natural à governação do País:
1º - Resgatar a seriedade e responsabilidade da política;
2º - Restaurar a dignidade e a autoridade do Estado e do governo;
3º - Devolver aos cidadãos a confiança na política e o sentido de identificação com as instituições.
2. Começo naturalmente pelo primeiro.
O que mais tem faltado em Portugal nos últimos 5 meses não são meios para equilibrar as contas públicas, mas sim competência, seriedade e responsabilidade política. Em vez disso tem sobrado o populismo, a imprevisibilidade política, o arrivismo, o triunfo dos interesses sectoriais, o favoritismo político, o assalto partidário ao aparelho do Estado, e por último o abuso de poder (como mostra a vertigem governativa do Governo depois de demitido).
Numa competição desleal com humoristas e cartunistas, o Primeiro-ministro e vários dos seus ministros dedicaram-se metodicamente a desacreditar a política em geral e o governo em especial, numa sucessão de demagogia, de intrigas intestinas, de ingerências nos media e de inconstância errática de políticas.
Entre os estragos a consertar pelo futuro governo socialista, a prioridade só pode ir para o resgate da seriedade e responsabilidade da política. Tanto como restaurar a saúde financeira, urge recuperar a saúde política. Só merece alcançar o poder quem, pelo seu passado, carácter, cultura política e fibra moral der garantias de uma governação conforme à Constituição e aos ditames da ética, da decência e da responsabilidade democrática.
3. O segundo desafio consiste em restaurar a dignidade e a eminência do Estado e do poder público democrático.
Sob a capa neoliberal, vai campeando por aí um discurso anarco-capitalista, que exalta o mercado e o privado acima de todas as coisas e que diaboliza e degrada o conceito de Estado e do poder público. Mas quanto maior for a erosão da autoridade do Estado, menor é a sua capacidade para cumprir as funções de que está constitucionalmente incumbido, maior é a margem de domínio e influência dos grupos de interesse e das corporações, e mais fundo é o sentimento de desamparo e de insegurança dos cidadãos comuns, em especial dos mais débeis e desprotegidos. Parafraseando um protagonista da Revolução Francesa, entre o fraco e o forte é o Estado que liberta e é a ausência dele que oprime.
Sem uma indiscutível respeitabilidade e autoridade do poder público e sem a reabilitação da esfera pública, o Estado democrático não está em condições de preencher as suas incontornáveis missões de garante das instituições democráticas, de responsável pela justiça e pela segurança, de regulador de mercado e da "auto-regulação privada", de esteio dos serviços públicos essenciais, como a educação, a saúde e os demais serviços básicos, e de participação condigna nas instituições europeias e na cena internacional.
Um Estado-de-Direito democrático pressupõe a separação entre o que é público e o que é privado, entre a lógica do interesse público e a lógica dos interesses particulares. Essa separação ontológica está em risco, sempre que se manifestam fenómenos de promiscuidade entre o Estado e os interesses organizados, sejam eles de natureza económica, profissional, religiosa, desportiva, etc.
Há que pôr-lhes fim, a bem da autonomia e autoridade do poder público.
4. A terceira aposta tem de ser o restabelecimento da confiança dos cidadãos na política e nas instituições.
Um recente inquérito de opinião confirmou e reforçou a descrença da maioria dos cidadãos na política, nos partidos políticos e nas instituições, bem como a sua crescente desafeição em relação à participação democrática, em geral, e eleitoral, em particular. Outros inquéritos revelam idêntica decepção quanto à Administração e aos serviços públicos. Agrava-se a percepção relativa à corrupção e a outras práticas lesivas do interesse público.
Um governo PS não pode conformar-se com esta situação. Há que provar que os partidos não são "todos iguais"; que não andam "todos ao mesmo"; que as eleições são a escolha entre reais alternativas de valores, de políticas e de governantes; que o eleitoralismo populista deve ceder lugar à credibilidade das propostas eleitorais; que os compromissos eleitorais são para cumprir; que os políticos podem e devem ser impolutos e que a política não é um meio de enriquecimento nem de favorecimento pessoal; que o acesso aos cargos públicos se pautará por critérios de imparcialidade e de competência; que a improbidade e o compadrio serão combatidas com determinação.
5. Para responder a estes reptos há seguramente que efectuar reformas políticas (muitas das quais se arrastam há vários anos): desde o sistema eleitoral até à transparência administrativa; desde a limitação de mandatos políticos até aos inquéritos parlamentares; desde as imunidades políticas até à forma de recrutamento dos dirigentes administrativos. Mas nenhuma reforma será suficiente sem uma forte convicção e determinação política para mudar as coisas.
Uma das primeiras iniciativas do novo governo socialista espanhol foi a aprovação de um código de conduta do Governo e dos seus membros. É um documento notável, como o tem sido aliás a sua acção em muitos outros aspectos. De facto, tanto como as políticas, contam os governantes e o modo de governar.
Na nossa tradição republicana, um governo democrático não pode deixar de pautar-se por uma forte ética de dedicação à causa pública, de elevação cívica e de responsabilidade pessoal. Para um Governo do PS ? que é herdeiro dessa tradição e que terá de preparar a comemoração do centenário da República, daqui a cinco anos ?, é imperativo convocar de novo o espírito tutelar da cidadania republicana.
Estas eleições devem ser obviamente um confronto entre diferentes valores, ideias e políticas. Mas devem ser também ? e talvez principalmente ?, um confronto entre diferentes visões e práticas do Estado e do modo de fazer política. Da parte do PS ? se necessário, fazendo uma revisão crítica da sua própria experiência governativa ?, importa afirmar um novo modo de governar.
O que fica para a história dos governos não são somente as grandes decisões e reformas, mas também o carácter e a estatura da governação. É este o desafio do PS e de José Sócrates, em particular, e de todos nós, em geral. Que estejamos todos à altura dele!
Obrigado pela vossa atenção.
(Intervenção na "Convenção Novas Fronteiras". Estoril, 22 Janeiro 2005)