11 de janeiro de 2005
O Parlamento de Lisboa
Por Vital Moreira
Há momentos em que Lisboa descobre de bom grado o resto do país. É quando o seu pessoal político excedentário, que não cabe nas listas eleitorais da capital, invade "a província" à procura de um lugar que lhes garanta uma cadeira em São Bento. Lisboa elege só por si 48 dos 230 deputados da Assembleia da República. No final, provavelmente mais de uma centena dos parlamentares são de Lisboa.
O "assalto" começa naturalmente pelos lugares cimeiros dos círculos eleitorais "periféricos". Há círculos em que os cabeças de lista vêm quase todos de Lisboa. Mas a ocupação raramente se fica por aí. O importante é ocupar um "lugar elegível". Por vezes os forasteiros invocam uma ligação remota ao círculo eleitoral cooptado, como o lugar do nascimento ou uma passagem algures na vida profissional. Mas na maior parte dos casos, nem isso. Na sua crónica de domingo passado, no PÚBLICO, António Barreto ironizava com o facto de os candidatos colocados em lugares elegíveis por esse país fora já poderem começar a procurar casa em Lisboa, sem esperar pelo veredicto popular. Engana-se. A maior parte deles já têm casa em Lisboa - a sua. Do que muitos precisam é de alojamento temporário nos círculos em que são "candidatos acidentais".
Esta ocupação lisboeta não é inteiramente uma consequência directa da enorme concentração do pessoal político e "parapolítico" em Lisboa, associada à centralização dos partidos políticos, à acumulação das elites económicas, sociais e culturais (bem como dos principais "media") na capital, à escassez e falta de visibilidade das elites locais e regionais, à "inexistência" dos distritos como colectividade local com que os cidadãos se identifiquem. Trata-se de um círculo vicioso, que a existência de círculos territoriais deveria ajudar a quebrar, mas que a generalização do "pára-quedismo" eleitoral só ajuda a agravar.
Ora a principal razão para a lógica dos círculos eleitorais consiste justamente em criar uma adequada repartição e "representação" territorial do país e em alcançar uma certa desconcentração da "classe política". De outro modo, bastaria um círculo eleitoral nacional único, sem a complicação dos círculos distritais. A atenuação da proporcionalidade do sistema eleitoral, que a existência de círculos pequenos também provoca, deve ser considerada um "efeito colateral" dos mesmos e não um objectivo central. Por isso, a "colonização" dos círculos locais/regionais por candidatos de Lisboa introduz um factor de perversão da lógica constitucional do sistema eleitoral.
Diz a Constituição que "os deputados representam todo o país e não os círculos por que são eleitos". Mas essa representação geral do país é feita necessariamente através de "olhos territoriais". Problemas nacionais não são somente os que são sentidos como tais em Lisboa. Para mais, num Estado ainda tão centralizado como o nosso - desde logo pela falta de descentralização regional no continente - cabe aos órgãos do Estado, a começar pela Assembleia da República, ocupar-se de inúmeros problemas de incidência local/regional, desde os centros de saúde às escolas do ensino básico. A tendencial "lisboetização" do Parlamento, e derivadamente do Governo, permite consolidar acriticamente os privilégios da capital em todos os aspectos, nomeadamente nos investimentos públicos e dos serviços públicos. Por exemplo, como é que o Parlamento pode ter uma atitude crítica em relação ao privilégio do financiamento dos transportes públicos locais de Lisboa (Metro, Carris) pelo Orçamento do Estado (ou seja, pelos contribuintes de todo o país), se grande parte dos deputados são de Lisboa?
Há quem julgue que a solução contra os "candidatos adventícios" nos círculos eleitorais fora de Lisboa está na adopção de círculos uninominais, à maneira britânica ou francesa. Nestas alturas, aliás, revela-se sempre um estranho fascínio pelo sufrágio uninominal. Sucede que só uma grande dose de desconhecimento desse sistema é que pode justificar a crença de que ele é panaceia para todos os males políticos da pátria, incluindo as longas peregrinações dos candidatos lisboetas. Mas não é verdade. Lá os dirigentes partidários e os favoritos dos líderes partidários também procuram o aconchego de longínquos círculos eleitorais seguros ("safe seats"), com os quais nada têm a ver. A visão mitológica de que nesses países existe uma competição de resultado imprevisível entre candidatos locais só tem uma fraca correspondência na realidade. A maior aparte dos círculos tem vencedor previsível desde há décadas, seja quem for o candidato do partido neles dominante.
Sem uma solução alternativa que garanta a "colocação" no Parlamento dos dirigentes partidários e a constituição de um núcleo seguro dos futuros grupos parlamentares, a exportação de candidatos lisboetas para os círculos da "província" não pode ser travada. Ora existe um mecanismo adequado para isso, que aliás está previsto na nossa Constituição. Trata-se da criação de um círculo nacional, a par dos círculos territoriais (plurinominais ou uninominais, pouco importa para este efeito), podendo os eleitores ter dois votos, um para o círculo nacional e outro para o seu círculo territorial, ou ter só um voto, válido para ambos os apuramentos. Tal círculo nacional, de dimensão suficiente para cumprir as aludidas funções (30-40 deputados), seria "coutada" do líder partidário ou da direcção nacional dos partidos; a indicação dos candidatos nos círculos territoriais ficaria porém reservada para as estruturas locais, sem interferência da direcção nacional (quando muito com um poder de veto limitado). A previsão adicional de mecanismos transparentes de selecção de candidatos a nível local - preferivelmente por meio de "eleições primárias" - permitiria obviar às principais críticas que o actual sistema de designação dos candidatos suscita.
É certo que a criação de um círculo nacional, sem aumento do número de deputados (que ninguém aceitaria) e sem alteração dos actuais círculos distritais, implicaria necessariamente uma diminuição correlativa do número de deputados por círculo, com uma previsível atenuação da proporcionalidade geral do sistema eleitoral (que é influenciada pelo número médio de deputados por círculo). Mas a redução do número de candidatos seria mais do que compensada pela "reserva" de candidaturas locais. E também seria fácil reparar a pequena perda de proporcionalidade, por exemplo com a fusão dos círculos distritais mais pequenos. De resto, os que preconizam medidas para facilitar a obtenção de maiorias parlamentares podem ver nessa consequência um motivo adicional para apoiar a criação de um círculo nacional.
Resta dizer que a proposta de reforma eleitoral defendida pelo PS desde 1997-98, que prevê a combinação de círculos uninominais com círculos distritais e um círculo nacional, só é relevante para combater o "pára-quedismo" eleitoral, se ela compreender também a "localização" das candidaturas nos círculos uninominais e distritais/regionais.
Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)
1. Se há uma força política que não pode censurar o Presidente da República, por este ter defendido mudanças no sistema eleitoral para facilitar a formação de maiorias parlamentares monopartidárias, é justamente o PSD, que foi desde sempre o campeão dessa posição, tendo proposto todas as medidas possíveis nesse sentido (diminuição do número de deputados, redução da dimensão dos círculos eleitorais, etc.). O PSD condena o Presidente por apoiar as suas próprias posições! Haja pudor!
2. De todo em todo inesperada foi a sugestão de Jorge Sampaio relativamente ao alargamento da duração dos mandatos, quer da Assembleia da República e do Governo, quer do Presidente da República. Não se vislumbra nem o sentido de oportunidade, nem a lógica de tal ideia. Aliás, o melhor caminho para não mudar nada no sistema político é questionar tudo, incluindo o que ninguém tinha questionado.
(Público, Terça-feira, 11 de Janeiro de 2005)
Há momentos em que Lisboa descobre de bom grado o resto do país. É quando o seu pessoal político excedentário, que não cabe nas listas eleitorais da capital, invade "a província" à procura de um lugar que lhes garanta uma cadeira em São Bento. Lisboa elege só por si 48 dos 230 deputados da Assembleia da República. No final, provavelmente mais de uma centena dos parlamentares são de Lisboa.
O "assalto" começa naturalmente pelos lugares cimeiros dos círculos eleitorais "periféricos". Há círculos em que os cabeças de lista vêm quase todos de Lisboa. Mas a ocupação raramente se fica por aí. O importante é ocupar um "lugar elegível". Por vezes os forasteiros invocam uma ligação remota ao círculo eleitoral cooptado, como o lugar do nascimento ou uma passagem algures na vida profissional. Mas na maior parte dos casos, nem isso. Na sua crónica de domingo passado, no PÚBLICO, António Barreto ironizava com o facto de os candidatos colocados em lugares elegíveis por esse país fora já poderem começar a procurar casa em Lisboa, sem esperar pelo veredicto popular. Engana-se. A maior parte deles já têm casa em Lisboa - a sua. Do que muitos precisam é de alojamento temporário nos círculos em que são "candidatos acidentais".
Esta ocupação lisboeta não é inteiramente uma consequência directa da enorme concentração do pessoal político e "parapolítico" em Lisboa, associada à centralização dos partidos políticos, à acumulação das elites económicas, sociais e culturais (bem como dos principais "media") na capital, à escassez e falta de visibilidade das elites locais e regionais, à "inexistência" dos distritos como colectividade local com que os cidadãos se identifiquem. Trata-se de um círculo vicioso, que a existência de círculos territoriais deveria ajudar a quebrar, mas que a generalização do "pára-quedismo" eleitoral só ajuda a agravar.
Ora a principal razão para a lógica dos círculos eleitorais consiste justamente em criar uma adequada repartição e "representação" territorial do país e em alcançar uma certa desconcentração da "classe política". De outro modo, bastaria um círculo eleitoral nacional único, sem a complicação dos círculos distritais. A atenuação da proporcionalidade do sistema eleitoral, que a existência de círculos pequenos também provoca, deve ser considerada um "efeito colateral" dos mesmos e não um objectivo central. Por isso, a "colonização" dos círculos locais/regionais por candidatos de Lisboa introduz um factor de perversão da lógica constitucional do sistema eleitoral.
Diz a Constituição que "os deputados representam todo o país e não os círculos por que são eleitos". Mas essa representação geral do país é feita necessariamente através de "olhos territoriais". Problemas nacionais não são somente os que são sentidos como tais em Lisboa. Para mais, num Estado ainda tão centralizado como o nosso - desde logo pela falta de descentralização regional no continente - cabe aos órgãos do Estado, a começar pela Assembleia da República, ocupar-se de inúmeros problemas de incidência local/regional, desde os centros de saúde às escolas do ensino básico. A tendencial "lisboetização" do Parlamento, e derivadamente do Governo, permite consolidar acriticamente os privilégios da capital em todos os aspectos, nomeadamente nos investimentos públicos e dos serviços públicos. Por exemplo, como é que o Parlamento pode ter uma atitude crítica em relação ao privilégio do financiamento dos transportes públicos locais de Lisboa (Metro, Carris) pelo Orçamento do Estado (ou seja, pelos contribuintes de todo o país), se grande parte dos deputados são de Lisboa?
Há quem julgue que a solução contra os "candidatos adventícios" nos círculos eleitorais fora de Lisboa está na adopção de círculos uninominais, à maneira britânica ou francesa. Nestas alturas, aliás, revela-se sempre um estranho fascínio pelo sufrágio uninominal. Sucede que só uma grande dose de desconhecimento desse sistema é que pode justificar a crença de que ele é panaceia para todos os males políticos da pátria, incluindo as longas peregrinações dos candidatos lisboetas. Mas não é verdade. Lá os dirigentes partidários e os favoritos dos líderes partidários também procuram o aconchego de longínquos círculos eleitorais seguros ("safe seats"), com os quais nada têm a ver. A visão mitológica de que nesses países existe uma competição de resultado imprevisível entre candidatos locais só tem uma fraca correspondência na realidade. A maior aparte dos círculos tem vencedor previsível desde há décadas, seja quem for o candidato do partido neles dominante.
Sem uma solução alternativa que garanta a "colocação" no Parlamento dos dirigentes partidários e a constituição de um núcleo seguro dos futuros grupos parlamentares, a exportação de candidatos lisboetas para os círculos da "província" não pode ser travada. Ora existe um mecanismo adequado para isso, que aliás está previsto na nossa Constituição. Trata-se da criação de um círculo nacional, a par dos círculos territoriais (plurinominais ou uninominais, pouco importa para este efeito), podendo os eleitores ter dois votos, um para o círculo nacional e outro para o seu círculo territorial, ou ter só um voto, válido para ambos os apuramentos. Tal círculo nacional, de dimensão suficiente para cumprir as aludidas funções (30-40 deputados), seria "coutada" do líder partidário ou da direcção nacional dos partidos; a indicação dos candidatos nos círculos territoriais ficaria porém reservada para as estruturas locais, sem interferência da direcção nacional (quando muito com um poder de veto limitado). A previsão adicional de mecanismos transparentes de selecção de candidatos a nível local - preferivelmente por meio de "eleições primárias" - permitiria obviar às principais críticas que o actual sistema de designação dos candidatos suscita.
É certo que a criação de um círculo nacional, sem aumento do número de deputados (que ninguém aceitaria) e sem alteração dos actuais círculos distritais, implicaria necessariamente uma diminuição correlativa do número de deputados por círculo, com uma previsível atenuação da proporcionalidade geral do sistema eleitoral (que é influenciada pelo número médio de deputados por círculo). Mas a redução do número de candidatos seria mais do que compensada pela "reserva" de candidaturas locais. E também seria fácil reparar a pequena perda de proporcionalidade, por exemplo com a fusão dos círculos distritais mais pequenos. De resto, os que preconizam medidas para facilitar a obtenção de maiorias parlamentares podem ver nessa consequência um motivo adicional para apoiar a criação de um círculo nacional.
Resta dizer que a proposta de reforma eleitoral defendida pelo PS desde 1997-98, que prevê a combinação de círculos uninominais com círculos distritais e um círculo nacional, só é relevante para combater o "pára-quedismo" eleitoral, se ela compreender também a "localização" das candidaturas nos círculos uninominais e distritais/regionais.
Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)
1. Se há uma força política que não pode censurar o Presidente da República, por este ter defendido mudanças no sistema eleitoral para facilitar a formação de maiorias parlamentares monopartidárias, é justamente o PSD, que foi desde sempre o campeão dessa posição, tendo proposto todas as medidas possíveis nesse sentido (diminuição do número de deputados, redução da dimensão dos círculos eleitorais, etc.). O PSD condena o Presidente por apoiar as suas próprias posições! Haja pudor!
2. De todo em todo inesperada foi a sugestão de Jorge Sampaio relativamente ao alargamento da duração dos mandatos, quer da Assembleia da República e do Governo, quer do Presidente da República. Não se vislumbra nem o sentido de oportunidade, nem a lógica de tal ideia. Aliás, o melhor caminho para não mudar nada no sistema político é questionar tudo, incluindo o que ninguém tinha questionado.
(Público, Terça-feira, 11 de Janeiro de 2005)