18 de janeiro de 2005
Responsabilidade Eleitoral
Por Vital Moreira
Mesmo não sendo inesperados nem muito diferentes dos que se conhecem de outros países, nem por isso deixam de ser inquietantes os dados do inquérito de opinião ontem vindos a lume no PÚBLICO sobre o grande desinteresse dos cidadãos pela política e o pouco crédito que merecem os partidos políticos e a política em geral. Saber que metade das pessoas se interessam pouco ou nada pela política, que quase três quartos pensam que os políticos só interessam pelo seu voto e não pelas suas opiniões, que mais de dois terços consideram que as eleições são relativamente irrelevantes para as suas vidas e que uma esmagadora maioria não conhece nem nunca contactou um deputado -, eis um quadro de alheamento e desencanto que não pode deixar indiferente quem tenha da democracia uma ideia mais exigente do que a noção reducionista de uma competição periódica dos partidos políticos pelo voto dos cidadãos interessados. A circunstância de o inquérito ter sido realizado em vésperas de eleições legislativas, quando as alternativas eleitorais já estão suficientemente definidas e o ambiente está cheio de mensagens políticas, só agrava o significado dos dados que ele revela.
Numa democracia representativa, que é sobretudo uma democracia eleitoral, as eleições são o teste decisivo do estado de saúde do sistema e da sua capacidade de suscitar a adesão e o interesse dos cidadãos. Elas são, por um lado, um momento de prestação de contas e de julgamento político do governo cessante, sobretudo quando os seus principais protagonistas se submetem de novo a sufrágio, como é o caso nas presente eleições. Elas constituem, por outro lado, o mecanismo pelo qual outras forças políticas se apresentam como alternativa e competem pela preferência dos eleitores. Ora é no pouco crédito normalmente associado aos programas e compromissos eleitorais que está um dos maiores factores do desprestígio da política e do desinteresse e desmobilização eleitoral dos cidadãos. Um já razoável experiência de programas eleitorais patentemente demagógicos e irrealizáveis e de compromissos incumpridos ou rotundamente violados por parte dos partidos vencedores, uma vez no Governo, constitui o principal ingrediente do alheamento e desconfiança de um crescente número de cidadãos.
O factor fulcral para suster e inverter o plano inclinado da crise de confiança popular nas instituições e na acção política em geral está seguramente na restauração da confiança nas eleições, como momentos de "accountability" democrática e de escolha de orientações políticas e de protagonistas políticos. Sem que os cidadãos confiem na seriedade dos partidos, na consistência e praticabilidade dos programas e na disposição dos partidos vencedores para os levar a cabo, nenhum progresso se realizará nessa direcção. Torna-se necessário atacar decididamente os factores que levam uma parte considerável (e crescente) da opinião pública a estar persuadida de que os partidos "são todos iguais", que "andam todos ao mesmo" (ou seja, à "caça de votos"), sem olhar a meios, que todos prometem antes das eleições o que sabem que os eleitores esperam ouvir mas que não contam cumprir depois delas, que as eleições pouco ou nada valem para solucionar os problemas do país e das pessoas, etc.
Se houvesse que elaborar um "código de conduta para a responsabilidade eleitoral", que todos os partidos, designadamente os mais prováveis candidatos ao Governo, deveriam observar em eleições, nele deveriam figurar (para além da exigência de lisura de procedimentos no combate eleitoral) pelo menos as seguintes regras imperativas: um diagnóstico suficientemente elaborado e sustentado sobre a situação do país, tal como cada partido a vê; uma avaliação do governo cessante, com um juízo sobre as principais medidas consideradas positivas e negativas; uma exposição minimamente densificada das linhas de orientação política que propõem e das principais soluções políticas a adoptar, caso venham a formar governo; uma indicação pelo menos genérica da equipa de protagonistas com que cada força política conta para levar a cabo o seu programa (para além das indicações que decorrem das listas de deputados); um esclarecimento sobre as alianças políticas em que apostam, ou ao menos as que excluem, caso elas venham a tornar-se necessárias para viabilizar soluções de governo.
Entre estes pontos, avulta naturalmente o programa eleitoral de cada partido ou coligação eleitoral, com os princípios e as medidas políticas que cada concorrente defende para os diferentes problemas políticos, de acordo com a orientação ideológica e a "agenda" política de cada um. É aqui que a demagogia, o facilitismo e o oportunismo tendem a sacrificar a seriedade e a credibilidade das eleições. Orientações e propostas inconsistentes ou rotundamente contraditórias, compromissos irrealizáveis ou financeiramente insustentáveis, prevalência de visões sectoriais sobre a coerência política global, tentação para agradar a todos os grupos de interesse, prometendo tudo a toda a gente, em prejuízo do interesse geral -, eis alguns dos mais recorrentes ingredientes que podem fazer das eleições uma "receita para o desastre" em termos de descrédito das instituições e de desconfiança política dos cidadãos.
O problema está obviamente nas soluções para contrariar essa situação. A simples lógica do "mercado eleitoral" não dá para corrigir só por si as deficiências do sistema. A ideia de que, uma vez enganados, os "consumidores-eleitores" não voltarão a "comprar" do mesmo "produto" nas eleições seguintes não chega como antídoto contra a demagogia eleitoral e a fraude política. A situação só pode melhorar com um aumento da exigência de uma parte relevante da opinião pública mais qualificada no que respeita à consistência e sustentabilidade política e financeira dos programas eleitorais, tornando politicamente penalizadora a apresentação de políticas incoerentes ou contraditórias, ou a falta de rigor no que respeita ao impacte financeiro de cada proposta, quer no aumento de gastos públicos (aumento de pensões, remunerações, subsídios, etc.), quer na diminuição de receitas públicas (reduções ou isenções de impostos, de taxas de serviços públicos, etc.). A existência de centros independentes de escrutínio e análise dos programas eleitorais poderia constituir uma valiosa alavanca de garantia da responsabilidade eleitoral.
Olhando a campanha eleitoral já em curso para as próximas eleições parlamentares, parece que alguma coisa está a mudar no que respeita à seriedade e credibilidade das propostas eleitorais e à penalização das forças políticas que insistirem em recorrer à demagogia ou à manipulação eleitoral. Por um lado, uma parte significativa da opinião pública (e, bem entendido, os "media") tornou-se mais exigente do que era tradicional quanto à demonstração da consistência e sustentação financeira das propostas políticas. Hoje já não é tão fácil defender uma baixa de impostos sem dizer onde é que vai haver corte das despesas públicas; e também já não são tantos os que se entusiasmam com promessas de aumento de pensões ou de subsídios, sem perguntar quanto é que isso custa e como é que se vão reunir os necessários recursos financeiros.
Além disso, é também notório que os partidos mais bem colocados para vencerem as eleições começam a sopesar mais cuidadosamente os seus compromissos eleitorais. Se nas últimas eleições o PSD pareceu ainda tirar partido de promessas mais do que duvidosas, por falta de sustentação financeira - por exemplo, a promessa de baixa da carga fiscal (logo rotundamente contrariada pela subida do IVA, no início do Governo) ou a promessa de convergência das pensões mínimas com o salário mínimo nacional -, desta vez é de registar que o PS, que é à partida quem está em melhores condições para vencer as eleições, tem adoptado uma postura assinalavelmente responsável em tudo o que tem impacte financeiro. As declarações do líder do PS nesta área, abstendo-se por exemplo de prometer descidas de impostos ou mesmo a reposição das isenções fiscais que o orçamento em vigor retirou, são o contrário do eleitoralismo vulgar, tanto mais de assinalar e de louvar quanto o PSD insiste de novo em prometer novas reduções miríficas da carga fiscal.
(Público, Terça-feira, 18 de Janeiro de 2005)
Mesmo não sendo inesperados nem muito diferentes dos que se conhecem de outros países, nem por isso deixam de ser inquietantes os dados do inquérito de opinião ontem vindos a lume no PÚBLICO sobre o grande desinteresse dos cidadãos pela política e o pouco crédito que merecem os partidos políticos e a política em geral. Saber que metade das pessoas se interessam pouco ou nada pela política, que quase três quartos pensam que os políticos só interessam pelo seu voto e não pelas suas opiniões, que mais de dois terços consideram que as eleições são relativamente irrelevantes para as suas vidas e que uma esmagadora maioria não conhece nem nunca contactou um deputado -, eis um quadro de alheamento e desencanto que não pode deixar indiferente quem tenha da democracia uma ideia mais exigente do que a noção reducionista de uma competição periódica dos partidos políticos pelo voto dos cidadãos interessados. A circunstância de o inquérito ter sido realizado em vésperas de eleições legislativas, quando as alternativas eleitorais já estão suficientemente definidas e o ambiente está cheio de mensagens políticas, só agrava o significado dos dados que ele revela.
Numa democracia representativa, que é sobretudo uma democracia eleitoral, as eleições são o teste decisivo do estado de saúde do sistema e da sua capacidade de suscitar a adesão e o interesse dos cidadãos. Elas são, por um lado, um momento de prestação de contas e de julgamento político do governo cessante, sobretudo quando os seus principais protagonistas se submetem de novo a sufrágio, como é o caso nas presente eleições. Elas constituem, por outro lado, o mecanismo pelo qual outras forças políticas se apresentam como alternativa e competem pela preferência dos eleitores. Ora é no pouco crédito normalmente associado aos programas e compromissos eleitorais que está um dos maiores factores do desprestígio da política e do desinteresse e desmobilização eleitoral dos cidadãos. Um já razoável experiência de programas eleitorais patentemente demagógicos e irrealizáveis e de compromissos incumpridos ou rotundamente violados por parte dos partidos vencedores, uma vez no Governo, constitui o principal ingrediente do alheamento e desconfiança de um crescente número de cidadãos.
O factor fulcral para suster e inverter o plano inclinado da crise de confiança popular nas instituições e na acção política em geral está seguramente na restauração da confiança nas eleições, como momentos de "accountability" democrática e de escolha de orientações políticas e de protagonistas políticos. Sem que os cidadãos confiem na seriedade dos partidos, na consistência e praticabilidade dos programas e na disposição dos partidos vencedores para os levar a cabo, nenhum progresso se realizará nessa direcção. Torna-se necessário atacar decididamente os factores que levam uma parte considerável (e crescente) da opinião pública a estar persuadida de que os partidos "são todos iguais", que "andam todos ao mesmo" (ou seja, à "caça de votos"), sem olhar a meios, que todos prometem antes das eleições o que sabem que os eleitores esperam ouvir mas que não contam cumprir depois delas, que as eleições pouco ou nada valem para solucionar os problemas do país e das pessoas, etc.
Se houvesse que elaborar um "código de conduta para a responsabilidade eleitoral", que todos os partidos, designadamente os mais prováveis candidatos ao Governo, deveriam observar em eleições, nele deveriam figurar (para além da exigência de lisura de procedimentos no combate eleitoral) pelo menos as seguintes regras imperativas: um diagnóstico suficientemente elaborado e sustentado sobre a situação do país, tal como cada partido a vê; uma avaliação do governo cessante, com um juízo sobre as principais medidas consideradas positivas e negativas; uma exposição minimamente densificada das linhas de orientação política que propõem e das principais soluções políticas a adoptar, caso venham a formar governo; uma indicação pelo menos genérica da equipa de protagonistas com que cada força política conta para levar a cabo o seu programa (para além das indicações que decorrem das listas de deputados); um esclarecimento sobre as alianças políticas em que apostam, ou ao menos as que excluem, caso elas venham a tornar-se necessárias para viabilizar soluções de governo.
Entre estes pontos, avulta naturalmente o programa eleitoral de cada partido ou coligação eleitoral, com os princípios e as medidas políticas que cada concorrente defende para os diferentes problemas políticos, de acordo com a orientação ideológica e a "agenda" política de cada um. É aqui que a demagogia, o facilitismo e o oportunismo tendem a sacrificar a seriedade e a credibilidade das eleições. Orientações e propostas inconsistentes ou rotundamente contraditórias, compromissos irrealizáveis ou financeiramente insustentáveis, prevalência de visões sectoriais sobre a coerência política global, tentação para agradar a todos os grupos de interesse, prometendo tudo a toda a gente, em prejuízo do interesse geral -, eis alguns dos mais recorrentes ingredientes que podem fazer das eleições uma "receita para o desastre" em termos de descrédito das instituições e de desconfiança política dos cidadãos.
O problema está obviamente nas soluções para contrariar essa situação. A simples lógica do "mercado eleitoral" não dá para corrigir só por si as deficiências do sistema. A ideia de que, uma vez enganados, os "consumidores-eleitores" não voltarão a "comprar" do mesmo "produto" nas eleições seguintes não chega como antídoto contra a demagogia eleitoral e a fraude política. A situação só pode melhorar com um aumento da exigência de uma parte relevante da opinião pública mais qualificada no que respeita à consistência e sustentabilidade política e financeira dos programas eleitorais, tornando politicamente penalizadora a apresentação de políticas incoerentes ou contraditórias, ou a falta de rigor no que respeita ao impacte financeiro de cada proposta, quer no aumento de gastos públicos (aumento de pensões, remunerações, subsídios, etc.), quer na diminuição de receitas públicas (reduções ou isenções de impostos, de taxas de serviços públicos, etc.). A existência de centros independentes de escrutínio e análise dos programas eleitorais poderia constituir uma valiosa alavanca de garantia da responsabilidade eleitoral.
Olhando a campanha eleitoral já em curso para as próximas eleições parlamentares, parece que alguma coisa está a mudar no que respeita à seriedade e credibilidade das propostas eleitorais e à penalização das forças políticas que insistirem em recorrer à demagogia ou à manipulação eleitoral. Por um lado, uma parte significativa da opinião pública (e, bem entendido, os "media") tornou-se mais exigente do que era tradicional quanto à demonstração da consistência e sustentação financeira das propostas políticas. Hoje já não é tão fácil defender uma baixa de impostos sem dizer onde é que vai haver corte das despesas públicas; e também já não são tantos os que se entusiasmam com promessas de aumento de pensões ou de subsídios, sem perguntar quanto é que isso custa e como é que se vão reunir os necessários recursos financeiros.
Além disso, é também notório que os partidos mais bem colocados para vencerem as eleições começam a sopesar mais cuidadosamente os seus compromissos eleitorais. Se nas últimas eleições o PSD pareceu ainda tirar partido de promessas mais do que duvidosas, por falta de sustentação financeira - por exemplo, a promessa de baixa da carga fiscal (logo rotundamente contrariada pela subida do IVA, no início do Governo) ou a promessa de convergência das pensões mínimas com o salário mínimo nacional -, desta vez é de registar que o PS, que é à partida quem está em melhores condições para vencer as eleições, tem adoptado uma postura assinalavelmente responsável em tudo o que tem impacte financeiro. As declarações do líder do PS nesta área, abstendo-se por exemplo de prometer descidas de impostos ou mesmo a reposição das isenções fiscais que o orçamento em vigor retirou, são o contrário do eleitoralismo vulgar, tanto mais de assinalar e de louvar quanto o PSD insiste de novo em prometer novas reduções miríficas da carga fiscal.
(Público, Terça-feira, 18 de Janeiro de 2005)