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4 de janeiro de 2005

Aritmética Pós-eleitoral  

Por Vital Moreira

Se o voto tem alguma racionalidade, então não é difícil antecipar a vitória do PS nas próximas eleições. Nelas está em causa, desde logo, um julgamento sobre a coligação PSD-CDS e, em especial, sobre a governação de Santana Lopes. O mínimo que se pode esperar é a punição e a rejeição da continuidade do Executivo cujo festival de desorientação e incompetência levou Jorge Sampaio a convocar eleições antecipadas. Nada de mais razoável, aliás, visto que numa democracia representativa as eleições começam por ser um exercício de responsabilização democrática, tanto mais assim quanto os governantes cessantes se apresentam ao eleitorado para renovar o mandato de que tão mal deram conta.

Mas se a rejeição do Governo cessante poderá bastar para assegurar ao PS uma vitória eleitoral, a dimensão da sua vitória já depende em grande parte da qualidade da sua alternativa política. Ora é justamente da dimensão política do triunfo eleitoral, medida pelo número de deputados eleitos, que vai depender a solução governamental posterior. Aritmeticamente, uma vitória eleitoral socialista pode revestir quatro versões quantitativas, a saber: (i) uma maioria absoluta, ou seja, mais de metade dos deputados (116 ou mais); (ii) uma maioria relativa com um número de deputados superior à soma dos do PSD e do CDS; (iii) uma maioria relativa com um número de deputados inferior à soma dos dois partidos da direita, mas sem que estes tenham maioria absoluta; (iv) uma maioria relativa, porém com uma maioria absoluta da coligação de direita. Sendo esta última hipótese altamente improvável - pois isso pressuporia uma escassa vantagem do PS sobre o PSD e uma considerável vantagem do CDS sobre a soma do PCP e do BE -, restam as outras três possibilidades.

Na maior parte dos países, a saída normal para uma vitória eleitoral sem maioria absoluta é a constituição de uma coligação de governo que assegure um apoio maioritário no Parlamento. Só que em Portugal, enquanto as coligações de direita têm proporcionando a formação de vários governos, ainda que de duração efémera, já as coligações à esquerda têm-se revelado politicamente impossíveis, embora as vitórias eleitorais do PS, sempre aquém da maioria absoluta, tenham sempre sido acompanhadas de uma maioria aritmética de esquerda. Ora as dificuldades políticas e ideológicas que desde a origem têm impedido a formação de coligações à esquerda não parecem ter diminuído. No caso do PCP, provavelmente aumentou em vez de diminuir o fosso que o separa do PS, já porque aquele não dá mostras de atenuar o seu dogmatismo "marxista-leninista", já porque o PS acentuou a sua abertura ao centro, tornando-se um alvo ainda maior da condenação comunista. O PCP diz-se sempre disponível para a criação de uma "maioria de esquerda", mas sob condição de adopção de políticas que ele mesmo considere de esquerda, o que quer dizer as suas próprias políticas. No caso do BE, as declarações oficiais dos seus dirigentes não podem ser mais claras quanto à recusa de compromissos governamentais com o PS, assumindo deliberadamente uma postura oposicionista.

Há dois factores que dificultam ainda mais a hipótese de coligações à esquerda neste momento. Um tem a ver com a disciplina orçamental num contexto de recessão económica ou de muito débil crescimento, como continua a ser a situação do país nos tempos mais próximos. As restrições orçamentais não estão para terminar. O irresponsável Orçamento para 2005 incorpora à partida uma previsão de défice bem acima do limite dos três por cento, o qual poderá disparar para muito mais (há mesmo quem fale em 6-7 por cento!), considerando a irrealista meta do crescimento económico em que assentam as previsões de receita e despesa. Impõe-se desde logo um orçamento rectificativo, para cortar despesa e porventura para realizar receitas adicionais. Ora tanto o PCP como o BE nem querem ouvir falar nisso. A maior parte das suas propostas políticas implicam aumento de despesas ou diminuição de receitas (ou ambos).

A segunda dificuldade suplementar para entendimentos à esquerda relaciona-se com a UE. Tanto o PCP como o BE são contra a integração europeia, sendo ambos resolutamente contrários à ratificação da Constituição Europeia. Ora, tendo o PS um dos pontos de honra na integração europeia, em geral, e na ratificação do Tratado Constitucional, em especial - incluindo a promoção de um referendo nesse sentido -, não se afigura fácil um acordo de governo com forças políticas que divergem dele numa área tão essencial. Se o CDS, muito pragmaticamente, foi capaz de pôr debaixo do tapete o seu eurocepticismo, em prol da coligação com o PSD, não parece previsível uma idêntica atitude por parte do PCP ou do BE.

Por tudo isto, mesmo que o PS não exclua em absoluto outras possibilidades à partida, o mais plausível é que ele só possa contar consigo para formar governo, mesmo que não obtenha maioria absoluta. Se não a obtiver, estando excluída a reedição do "bloco central" e verificada a improbabilidade de "acordos de regime" em matéria financeira (tal como sugeridos pelo Presidente da República), resta a solução dos governos minoritários.

Numa das hipóteses acima referidas - ou seja, vitória relativa do PS sem mais deputados do que os da coligação PSD-CDS -, o governo minoritário daí resultante seria muito frágil, sem condições para vingar. Poderia passar no Parlamento, resistindo a uma provável moção de rejeição do programa do Governo, mercê da abstenção do PCP e do BE, mas a constatação da sua debilidade originária (mais votos contra do que a favor) ditaria a sua sorte a curto prazo. Ainda que uma hipotética abstenção do PSD permitisse viabilizar o subsequente orçamento rectificativo, logo viria no final do ano o escolho do orçamento para 2006.

A outra hipótese de governo minoritário - com vantagem do PS sobre o conjunto PSD-CDS - seria, em princípio, menos frágil, permitindo repetir a experiência dos dois governos Guterres (1995 e 1999). Todavia, as condições económico-financeiras e políticas serão ainda menos favoráveis do que em 1999-2001, dada a gravidade da situação financeira vigente, sendo muito incertas as perspectivas de vida governamental. Um governo desses estaria aritmeticamente mais protegido, pois só seria derrotado em caso de coligação das várias oposições contra si. Mas é justamente isso que não está excluído, desde logo em matéria orçamental e financeira, sendo muito provável uma coligação "oportunista" na rejeição do orçamento. Estando excluídas soluções do tipo orçamento "limiano", que desgraçaram o crédito e a honorabilidade política do segundo Governo de Guterres, a rejeição do orçamento só poderia resultar numa moção de confiança e, em caso de derrota, numa nova crise política. Se isso sucedesse já na votação do orçamento para 2006, haveria a agravante suplementar de que nem sequer poderia haver convocação imediata de novas eleições, dada a impossibilidade de dissolução parlamentar no último semestre do actual mandato presidencial nem no primeiro semestre do mandato do novo Presidente a eleger daqui a um ano, o que significaria um prolongado arrastamento da crise política, com os inerentes custos em todos os planos.

Em qualquer dos casos, nas actuais condições, dificilmente um governo minoritário duraria mais de um ano. Em termos de estabilidade política e governativa, só resta portanto a solução da maioria absoluta. O PS faz bem em colocá-la como objectivo central do seu empenho eleitoral (o que já faz uma diferença importante para Guterres, que em 1999 receou reivindicá-la) e como pressuposto de uma alternativa de governo duradouro e responsável. Essa frontalidade responsabiliza também os cidadãos, que, se não lha derem, não poderão depois exigir-lhe o impossível. Mas não basta querer uma maioria absoluta. É preciso lutar por ela e merecê-la. É esse o desafio que o PS de José Sócrates tem à sua frente nas próximas semanas.

(Público, Terça-feira, 04 de Janeiro de 2005)

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