25 de janeiro de 2005
O Modo da Política
Por Vital Moreira
É de esperar que um partido, chegado ao governo, anule todas as decisões do anterior que tiveram a sua oposição? A resposta é obviamente não. Isto sucede com todos os governos. Qualquer investigação mostrará que os novos governos só revogam uma pequena parte das medidas que combateram no mandato do Governo anterior.
Podem ser variadas as razões para isso: (i) a questão pode não ser tão importante que valha a pena reabri-la, com os "custos de transacção" e os "custos de oportunidade política" que toda a mudança implica; (ii) a medida em causa pode afinal ter-se revelado menos negativa do que parecia anteriormente; (iii) voltar à situação anterior pode revelar-se excessivamente oneroso, quer em termos financeiros, quer em termos políticos (por exemplo, por causa de situações juridicamente irreversíveis); (iv) o novo partido governamental pode ter entretanto mudado de orientação sobre a matéria em causa.
Por isso, não podem surpreender as declarações do líder do PS de que, caso ganhe as eleições e venha a formar governo, não vai fazer tábua rasa do que foi feito nestes três anos pelos governos PSD-CDS, sem excluir algumas medidas que tiveram a sua oposição. O que é surpreendente é ser tão pouco usual assumir frontalmente tal atitude. O que importa não é a quantidade das mudanças prometidas, mas sim as mudanças que contam e tornam justificada a substituição do governo, desde logo as relativas à competência, à seriedade e à responsabilidade política. Isto nada em a ver com a ideia de que os partidos são "todos iguais" e que, uma vez chegados ao governo, defendem "todos o mesmo".
É certo que as diferenças entre os partidos já não são o que eram antigamente. Por um lado, os partidos políticos de hoje, sobretudo os de vocação governamental, à direita ou à esquerda do centro político, são hoje muito menos ideológicos do que eram na origem e a sua base social de apoio já não se distingue tão marcadamente em termos sociológicos como antes. Em vez de "partidos de classe", temos hoje partidos mais ou menos interclassistas, aliás, de acordo com a sociedade complexa dos nossos dias, onde as antigas classes sociais perderam homogeneidade e sentido de auto-identificação. Mas a verdade é que cada partido continua a ter alvos sociais preferenciais, que continuam a dar-lhes uma marca própria.
Por outro lado, também, é certo que se estreitou consideravelmente a banda de variação das opções políticas. O triunfo indiscutível da economia de mercado deixou inexoravelmente para trás as distinções com base no sistema económico e a crise do "Estado fiscal" e finanças públicas estreitou também a margem de escolha em matérias sociais.
No entanto, as diferenças entre a esquerda e a direita e entre progressismo e conservadorismo estão longe de estar canceladas nestas duas esferas, como pretendem alguns, normalmente situados à direita. Elas continuam a ser evidentes em muitas áreas, quanto à regulação da economia, ao sistema fiscal, aos serviços públicos, às políticas sociais, ao papel do Estado, etc., isto para não falar nas novas questões de valores sociais e da liberdade individual, ligadas à despenalização do aborto, às uniões homossexuais, etc. Pode mesmo dizer-se que, no que respeita às políticas económicas e sociais, existe hoje maior distância entre a social-democracia e o neoliberalismo do que antes existia entre aquela e a democracia cristã, e que no que respeita às novas questões de costumes e de liberdade individual existe hoje mais distância entre a direita liberal e a direita conservadora do que entre aquela e a esquerda.
Acresce que o que distingue os partidos políticos não é somente o seu programa e as suas políticas. Hoje não é menos importante o modo de fazer política e as qualidades dos líderes. A personalização crescente da vida política, em consequência da sua mediatização e da relativa perda de importância da substância das políticas, tem feio também avultar a importância da liderança política e do carácter e da ética dos governantes. Para o bem e para o mal, as eleições parlamentares tornaram-se de certo modo numa eleição do primeiro-ministro. Por isso, a diferenciação dos partidos políticos passa hoje crescentemente por valores ligados à competência, à seriedade, à autoridade, ao sentido de responsabilidade.
Assim, não admira que nas actuais eleições essas diferenças de estilo de governação e de carácter dos líderes assumam tanta importância. Na verdade, o que está em causa não são somente os meios para equilibrar as contas públicas e para restabelecer o crescimento económico, mas sim também, e talvez sobretudo, o resgate da competência, da seriedade e da responsabilidade política. De facto, nos últimos meses tem havido um grande défice desses valores, ao mesmo tempo que tem sobrado a demagogia, o populismo, a imprevisibilidade política, as intrigas intestinas, a ingerência nos "media", o favoritismo político, o triunfo dos interesses sectoriais, o assalto partidário ao aparelho do Estado, e, por último, o abuso de poder (como mostra a vertigem governativa do Governo depois de demitido). O desastre do Governo Santana Lopes não foi sobretudo o das políticas, mas sim o do primeiro-ministro e do seu estilo de governo. Entre os estragos a consertar, a prioridade só pode ir para o resgate da competência, da seriedade e da responsabilidade da política.
Outro desafio essencial na actualidade consiste em restaurar a dignidade e a eminência do Estado e do poder público democrático, tanto face à deriva anarco-capitalista que endeusa o mercado contra o Estado, como perante a sua "captura" pelos interesses organizados. Quanto maior for a erosão da autoridade do Estado, menor é a sua capacidade para cumprir as funções de que está constitucionalmente incumbido, maior é a margem de domínio e influência dos grupos de interesse e das corporações, e mais fundo é o sentimento de desamparo e de insegurança dos cidadãos comuns, em especial dos mais débeis e desprotegidos.
Sem uma indiscutível respeitabilidade e autoridade do poder público e sem a reabilitação da esfera pública, o Estado democrático não está em condições de preencher as suas incontornáveis missões de garante das instituições democráticas, de responsável pela justiça e pela segurança, de regulador de mercado e da "auto-regulação privada", de esteio dos serviços públicos essenciais, como a educação, a saúde e os demais serviços básicos e de participação condigna nas instituições europeias e na cena internacional.
Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)
1. A contratação de Marcelo Rebelo de Sousa pela RTP para reatar as suas sessões dominicais não condiz com os deveres da concessionária do serviço público de televisão em matéria de isenção e imparcialidade política e de equilíbrio no tratamento das opiniões político-partidárias. M. R. S. é um militante partidário naturalmente empenhado em favorecer os interesses do seu partido e/ou a sua própria agenda política pessoal (no que, aliás, é brilhante). Nenhuma objecção haveria à intervenção de M. R. S. enquanto opinião política, no quadro do equilibrado pluralismo político que a estação pública deve garantir. Mas a sua contratação como supercomentador a solo, num espaço privilegiado, traduz-se obviamente num inaceitável privilégio para as ideias políticas que ele representa (como se não bastasse o predomínio de comentadores de direita que nela já têm tribuna...).
2. A não ser que haja uma contradição directa e insanável entre as suas posições políticas e a sua prática pessoal, os políticos têm direito à protecção da sua vida privada como qualquer outra pessoa. Por isso, não merece aplauso, pelo contrário, o ataque de Francisco Louça (e do BE) a Paulo Portas com base numa presumida contradição (aliás, não especificada) entre a radical condenação que ele faz do aborto e a sua vida privada. A pretensa "superioridade moral da esquerda" pode passar por explorar as incoerências morais da direita, mas deve parar à porta da esfera de privacidade das pessoas.
(Publico, Terça-feira, 25 de Janeiro de 2005)
É de esperar que um partido, chegado ao governo, anule todas as decisões do anterior que tiveram a sua oposição? A resposta é obviamente não. Isto sucede com todos os governos. Qualquer investigação mostrará que os novos governos só revogam uma pequena parte das medidas que combateram no mandato do Governo anterior.
Podem ser variadas as razões para isso: (i) a questão pode não ser tão importante que valha a pena reabri-la, com os "custos de transacção" e os "custos de oportunidade política" que toda a mudança implica; (ii) a medida em causa pode afinal ter-se revelado menos negativa do que parecia anteriormente; (iii) voltar à situação anterior pode revelar-se excessivamente oneroso, quer em termos financeiros, quer em termos políticos (por exemplo, por causa de situações juridicamente irreversíveis); (iv) o novo partido governamental pode ter entretanto mudado de orientação sobre a matéria em causa.
Por isso, não podem surpreender as declarações do líder do PS de que, caso ganhe as eleições e venha a formar governo, não vai fazer tábua rasa do que foi feito nestes três anos pelos governos PSD-CDS, sem excluir algumas medidas que tiveram a sua oposição. O que é surpreendente é ser tão pouco usual assumir frontalmente tal atitude. O que importa não é a quantidade das mudanças prometidas, mas sim as mudanças que contam e tornam justificada a substituição do governo, desde logo as relativas à competência, à seriedade e à responsabilidade política. Isto nada em a ver com a ideia de que os partidos são "todos iguais" e que, uma vez chegados ao governo, defendem "todos o mesmo".
É certo que as diferenças entre os partidos já não são o que eram antigamente. Por um lado, os partidos políticos de hoje, sobretudo os de vocação governamental, à direita ou à esquerda do centro político, são hoje muito menos ideológicos do que eram na origem e a sua base social de apoio já não se distingue tão marcadamente em termos sociológicos como antes. Em vez de "partidos de classe", temos hoje partidos mais ou menos interclassistas, aliás, de acordo com a sociedade complexa dos nossos dias, onde as antigas classes sociais perderam homogeneidade e sentido de auto-identificação. Mas a verdade é que cada partido continua a ter alvos sociais preferenciais, que continuam a dar-lhes uma marca própria.
Por outro lado, também, é certo que se estreitou consideravelmente a banda de variação das opções políticas. O triunfo indiscutível da economia de mercado deixou inexoravelmente para trás as distinções com base no sistema económico e a crise do "Estado fiscal" e finanças públicas estreitou também a margem de escolha em matérias sociais.
No entanto, as diferenças entre a esquerda e a direita e entre progressismo e conservadorismo estão longe de estar canceladas nestas duas esferas, como pretendem alguns, normalmente situados à direita. Elas continuam a ser evidentes em muitas áreas, quanto à regulação da economia, ao sistema fiscal, aos serviços públicos, às políticas sociais, ao papel do Estado, etc., isto para não falar nas novas questões de valores sociais e da liberdade individual, ligadas à despenalização do aborto, às uniões homossexuais, etc. Pode mesmo dizer-se que, no que respeita às políticas económicas e sociais, existe hoje maior distância entre a social-democracia e o neoliberalismo do que antes existia entre aquela e a democracia cristã, e que no que respeita às novas questões de costumes e de liberdade individual existe hoje mais distância entre a direita liberal e a direita conservadora do que entre aquela e a esquerda.
Acresce que o que distingue os partidos políticos não é somente o seu programa e as suas políticas. Hoje não é menos importante o modo de fazer política e as qualidades dos líderes. A personalização crescente da vida política, em consequência da sua mediatização e da relativa perda de importância da substância das políticas, tem feio também avultar a importância da liderança política e do carácter e da ética dos governantes. Para o bem e para o mal, as eleições parlamentares tornaram-se de certo modo numa eleição do primeiro-ministro. Por isso, a diferenciação dos partidos políticos passa hoje crescentemente por valores ligados à competência, à seriedade, à autoridade, ao sentido de responsabilidade.
Assim, não admira que nas actuais eleições essas diferenças de estilo de governação e de carácter dos líderes assumam tanta importância. Na verdade, o que está em causa não são somente os meios para equilibrar as contas públicas e para restabelecer o crescimento económico, mas sim também, e talvez sobretudo, o resgate da competência, da seriedade e da responsabilidade política. De facto, nos últimos meses tem havido um grande défice desses valores, ao mesmo tempo que tem sobrado a demagogia, o populismo, a imprevisibilidade política, as intrigas intestinas, a ingerência nos "media", o favoritismo político, o triunfo dos interesses sectoriais, o assalto partidário ao aparelho do Estado, e, por último, o abuso de poder (como mostra a vertigem governativa do Governo depois de demitido). O desastre do Governo Santana Lopes não foi sobretudo o das políticas, mas sim o do primeiro-ministro e do seu estilo de governo. Entre os estragos a consertar, a prioridade só pode ir para o resgate da competência, da seriedade e da responsabilidade da política.
Outro desafio essencial na actualidade consiste em restaurar a dignidade e a eminência do Estado e do poder público democrático, tanto face à deriva anarco-capitalista que endeusa o mercado contra o Estado, como perante a sua "captura" pelos interesses organizados. Quanto maior for a erosão da autoridade do Estado, menor é a sua capacidade para cumprir as funções de que está constitucionalmente incumbido, maior é a margem de domínio e influência dos grupos de interesse e das corporações, e mais fundo é o sentimento de desamparo e de insegurança dos cidadãos comuns, em especial dos mais débeis e desprotegidos.
Sem uma indiscutível respeitabilidade e autoridade do poder público e sem a reabilitação da esfera pública, o Estado democrático não está em condições de preencher as suas incontornáveis missões de garante das instituições democráticas, de responsável pela justiça e pela segurança, de regulador de mercado e da "auto-regulação privada", de esteio dos serviços públicos essenciais, como a educação, a saúde e os demais serviços básicos e de participação condigna nas instituições europeias e na cena internacional.
Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)
1. A contratação de Marcelo Rebelo de Sousa pela RTP para reatar as suas sessões dominicais não condiz com os deveres da concessionária do serviço público de televisão em matéria de isenção e imparcialidade política e de equilíbrio no tratamento das opiniões político-partidárias. M. R. S. é um militante partidário naturalmente empenhado em favorecer os interesses do seu partido e/ou a sua própria agenda política pessoal (no que, aliás, é brilhante). Nenhuma objecção haveria à intervenção de M. R. S. enquanto opinião política, no quadro do equilibrado pluralismo político que a estação pública deve garantir. Mas a sua contratação como supercomentador a solo, num espaço privilegiado, traduz-se obviamente num inaceitável privilégio para as ideias políticas que ele representa (como se não bastasse o predomínio de comentadores de direita que nela já têm tribuna...).
2. A não ser que haja uma contradição directa e insanável entre as suas posições políticas e a sua prática pessoal, os políticos têm direito à protecção da sua vida privada como qualquer outra pessoa. Por isso, não merece aplauso, pelo contrário, o ataque de Francisco Louça (e do BE) a Paulo Portas com base numa presumida contradição (aliás, não especificada) entre a radical condenação que ele faz do aborto e a sua vida privada. A pretensa "superioridade moral da esquerda" pode passar por explorar as incoerências morais da direita, mas deve parar à porta da esfera de privacidade das pessoas.
(Publico, Terça-feira, 25 de Janeiro de 2005)