13 de janeiro de 2015
Combate-se o terrorismo com mais democracia e mais Europa
Por Ana Gomes
Cheguei ontem de uma visita de quatro dias ao Curdistão iraquiano, combinada com mais 3 deputados europeus desde Dezembro. Não sabia que iria com o terror em França como pano de fundo.
Comoveu-me a admirável reacção dos franceses e dos homens e mulheres de todas as idades, cores e credos que encheram as praças de França, da Europa e do mundo, recusando ceder à chantagem do terrorismo e ocupando o espaço público para o desafiar e derrotar ideologicamente, em defesa das liberdades e da democracia.
Mas não concordo com a capa da edição de hoje do Charlie Hebdo a representar o Profeta Maomé, o que se sabe ser profundamente ofensivo para os muçulmanos. É uma provocação desnecessária, insensível e perigosa que pode desencadear reacções que, por sua vez, irão alimentar manifestações xenófobas e islamofóbicas que culpam os árabes, os muçulmanos, os refugiados, os estrangeiros, os emigrantes...
Temo o caldo de incultura, medo e desespero que a direita extremista e populista já começou a insuflar. E a falta de capacidade e de visão dos governos europeus, manietados pelo fanatismo austeritário, para fazer o que é preciso para derrotar este inimigo. Sob a batuta da Sra. Le Pen, alguns querem embarcar numa deriva securitária, à la George Bush post 11 de Setembro. Ora violar direitos e liberdades fundamentais faz, de facto, o jogo dos terroristas: fornece-lhes mais recrutas e mais narrativa. Os terroristas querem destruir a democracia. Só se combatem com mais democracia.
Ao longo destes anos, trabalhando no Parlamento Europeu na área da defesa e segurança, não vi os governos europeus fazer o que se impunha e era recomendado pelo Coordenador Anti Terrorismo da UE, Gilles de Kerkhove.
Vi uma perigosa falta de Europa: o cada um por si, polícias consumidas em rivalidades internas, serviços de informação que não a partilham com os congéneres e sem meios para investir em "inteligência humana" - que falhou totalmente em França. Por exemplo, quantos agentes formámos para falar e ler árabe e seguir as redes sociais em que operam os terroristas?
Vi magistraturas lentas, sem recursos e pouco cooperantes entre si. Vi governos a competirem para bajular financiadores sauditas, qataris e turcos do dito "Estado Islâmico", ou da Frente Al Nusra, ou de outras declinações da hidra Al Qaeda, na mira de negócios. Vi governos em conversa fiada sobre Gaza, a Palestina, a guerra na Siria, o Iraque, a Líbia, Guantanamo.
Não vi investimento em programas de prevenção da radicalização de jovens e de desradicalização: pelo contrário, vejo a sociedade sem valores - sem outra referência senão o dinheiro, como denuncia o Papa Francisco a quem os fanáticos da austeridade, embora se digam crentes, fazem ouvidos de mercador. Vejo desemprego, desinvestimento na escolarização, na qualificação, no modelo social europeu, na responsabilidade social dos Estados. Tudo factores que fomentam a desestruturação familiar, marginalização social e a alienação que transforma demasiados jovens europeus - como os franceses perpetradores destas chacinas - em ardorosos jihado-nihilistas.
No Iraque, a ninguém escapa a relação entre a tragédia de Paris e a que cruamente golpeia as martirizadas populações iraquianas e da vizinha Síria, á mercê dos salafistas do chamado Estado Islâmico que ambicionam estabelecer-se do Afeganistão ao Andalus, abarcando a Península Ibérica.
Pelo Curdistão iraquiano, como certamente também pela Nigéria a braços com os facínoras do Boko Haram, passam hoje as frente do combate a esta banda de cruéis e desvairados criminosos.
As condições em que vivem refugiados e deslocados no Iraque são más e só podem convencer aldeias inteiras vítimas de perseguição e massacre às mãos dos terroristas do chamado Estado Islâmico que não têm mais futuro no Iraque: todos anseiam por emigrar para a Europa.
A mesma Europa que não faz o suficiente, nem o que é preciso, para os ajudar a ter condições para ficar. Antes de mais, condições de segurança - derrotar e eliminar militarmente o Estado Islâmico é possível, indispensável e urgente.
Mais uma vez, falta-nos Europa - nem sequer os fornecimentos de armas aos peshmerga, que lutam no terreno, os governos europeus coordenam entre si... nem sequer a ajuda humanitária prestada por alguns Estados Membros é coordenada com a da UE. Para não falar da coordenação da acção humanitária com ajuda de desenvolvimento...
Nenhum país pode combater o terrorismo sozinho. Esperemos que os governos ouçam a voz unida dos povos nas praças da Europa: finalmente fazendo o que é preciso fazer e exige mais solidariedade e políticas, internas e externas, mais coordenadas, mais inteligentes e mais estratégicas.
Ou, então, preparemo-nos para o pior: esta barbárie pode ainda só ter começado.
(Notas de base para minha intervenção esta manhã no Conselho Superior, Antena 1)