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27 de maio de 2004

O livro branco dos SIEG  

Vital Moreira

A Comissão Europeia acaba de tornar público um Livro Branco sobre os "serviços de interesse económico geral" (SIEG) (COM(2004)374), no seguimento da discussão pública sobre o "livro verde" publicado há cerca de um ano (COM(2003)270).
Trata-se de um documento de grande importância, não somente pelas conclusões tomadas pela Comissão mas também pelo calendário anunciado quanto a um vasto programa de políticas a seguir e medidas legislativas a adoptar no futuro próximo.
Como se sabe, os SIEG são denominação comunitária dos tradicionais serviços públicos, ou seja, os serviços essenciais prestados aos cidadãos e às empresas pelas entidades públicas ou sob sua responsabilidade, tais como a água e o saneamento, a energia (electricidade e gás natural), os transportes colectivos, as telecomunicações, os serviços postais, etc.. Os serviços públicos fazem parte do modelo social e político europeu e o actual art. 16º do Tratado CE veio dar uma protecção reforçada aos SIEG, considerando-os como garantia da "coesão social e territorial", na medida em que impedem a exclusão de grupos sociais ou de regiões da fruição desses serviços.
Desde os anos 80 do século passado, os serviços públicos passaram por uma verdadeira revolução, em grande parte promovida pela Comissão Europeia, apostada em fazer aplicar os princípios do Tratado de Roma a esses sectores da actividade económica, nomeadamente em matéria de abertura ao mercado, contratos públicos, concorrência e ajudas de Estado. Assim, a maior parte desses sectores foram liberalizados progressivamente, estando hoje abertos à concorrência ou em vias de o serem, no contexto do "mercado único" a nível europeu. Por outro lado, os Estados e outras entidades públicas territoriais promoveram processos de empresarialização e, em muitos casos, privatização das empresas encarregadas da prestação desses serviços.
O principal problema suscitado respeita ao modo de conciliar a abertura à concorrência com os princípios tradicionais do serviço público, designadamente a segurança no abastecimento, o serviço universal, a continuidade no fornecimento, a qualidade do serviço, a acessibilidade tarifária, a protecção dos utentes e consumidores. Essa conciliação passou normalmente pela definição de um conjunto de "obrigações de serviço público", das quais fica encarregada uma ou mais empresas, sendo elas compensadas financeiramente pelos encargos adicionais daí resultantes. O Tratado de Roma fornecia desde o início uma base para essa conciliação (art. 86º-2), ao referir que os SIEG não ficam sujeitos às regras da concorrência na medida em que isso prejudique a realização da sua missão específica.
Uma das ideias em discussão desde há muito tempo era a vantagem de uma directiva-quadro comunitária sobre os SIEG, estabelecendo os princípios gerais para todos os sectores a nível da UE, pois até agora a questão tem sido abordada em instrumentos sectoriais (telecomunicações, electricidade, gás natural, transportes ferroviários, serviços postais, etc.). Defendia-se a vantagem de uma perspectiva transversal, comum aos vários sectores. Neste seu Livro Branco a Comissão conclui porém que não se justifica, por ora, uma tal iniciativa, que encontrou resistências em alguns países, devendo a questão se reexaminada porventura depois da entrada em vigor da futura Constituição europeia.
O mais delicado dos muitos problemas levantados pelos SIEG é a questão da compensação das obrigações de serviço público às empresas delas encarregadas (públicas ou privadas). A recente decisão Altmark do TJCE, de 24 de Julho de 2003, veio estatuir que o financiamento público, a título de compensação de obrigações de serviço público, não constitui ajuda de Estado proibida desde que haja prévia definição dessas obrigações e previsão do valor dos encargos adicionais por elas acarretados, não podendo o financiamento público ultrapassar esse valor. Neste ponto há novidades no Livro Branco, na medida em que se admite a definição, até Julho de 2005, de um quadro jurídico geral, incluindo o estabelecimento de isenções globais de notificação à Comissão das compensações abaixo de determinado montante, designadamente nos serviços de âmbito local.
Em geral, o Livro Branco testemunha a renovada atenção que a Comissão presta aos SIEG e a sua preocupação em não os sacrificar excessivamente no contexto da abertura à concorrência e da criação do mercado único europeu, que tem sido o seu objectivo principal. Por isso não pode ser ignorado nem pelos governos e entidades reguladoras nem pelas empresas interessadas.

(Diário Económico, 27 de Maio de 2004)

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