27 de maio de 2004
O preço da ética
Luis Nazaré
I. No seu estado mais puro, é sinónimo de santidade. Zero conflitos de interesses, zero influências, zero subordinações, zero suspeitas, zero tentações, zero cobiças, zero materialidades. São estes os sete atributos éticos da perfeição para os dirigentes públicos. À luz do crivo moral vigente, normalizado pelos media e pelos critérios básicos da populaça, nem os apóstolos se safavam, pecadores confessos como eram. A ética transformou-se numa pastosa arma de arremesso onde tudo vale porque é fácil encontrar alguém que viole um dos sete critérios santos. Relativismo moral? Vamos por partes.
As democracias europeias elegeram um modelo de probidade pública inspirado em valores dificilmente compatíveis com os tempos actuais. A moral do Velho Continente continua a exigir o melhor dos mundos aos agentes públicos - rigor, competência e espírito de sacrifício - sem lhes garantir a compensação adequada. Para o comum dos portugueses, o modelo miserabilista é o paradigma da elevação ética, desde que só se aplique aos outros. Honestos, competentes e mal pagos - eis como se querem os dirigentes da nação. Espertos, incumpridores e volúveis - assim devem ser os cidadãos e os agentes económicos.
A ética, tal como a qualidade, tem um preço. Se as democracias pretendem banir todo o tipo de incursões de políticos ou ex-políticos na esfera empresarial, para eliminar qualquer suspeita de tráfico de influências, terão de ponderar seriamente sobre as inevitáveis consequências. De duas uma, ou a classe dirigente fica reservada a políticos profissionais e altos funcionários de carreira, ou o Tesouro terá de abrir os cordões à bolsa e remunerar capazmente os detentores de cargos públicos, quer durante, quer após o termo dos mandatos. É certo que os governantes já dispõem de um subsídio de reintegração (na sociedade civil, presume-se) para os seis meses seguintes à cessação de funções, desde que não aufiram qualquer outra remuneração. Só que o seu alcance não é o da ética, mas sim o da assistência social. Creio, aliás, que o número de beneficiários e ex-beneficiários se contará pelos dedos de uma só mão.
Uma aproximação interessante é a que tem vindo a ser seguida nos novos estatutos das entidades reguladoras, impondo um período de nojo de dois anos após o termo do mandato, durante o qual o ex-administrador fica impedido de estabelecer relações profissionais com empresas do sector regulado. Em contrapartida, aufere 2/3 do vencimento anterior, desde que se limite a actividades académicas. Ao que julgo saber, Portugal é, nesta matéria, um caso exemplar de transparência (para o que muito contribuiu Vital Moreira no domínio jurídico-legislativo).
Por outras paragens europeias, os condicionalismos da ética pública não são muito diversos dos portugueses. É nos Estados Unidos que algumas práticas nos parecem estranhas, pouco habituados que estamos à exposição pública de interesses e intenções. O trânsito entre cargos públicos, empresas, sociedades de lobbying e de advocacia é uma realidade com que os americanos aparentemente convivem sem se colocarem grandes questões de ética, talvez porque tenham a noção (errada) de que tudo é feito às claras. Em favor dessa percepção milita o sistema de financiamento dos partidos políticos, pelo menos na sua parte visível, no qual se permite todo o tipo de donativos, pessoais ou empresariais, desde que identificados e publicitados. O sistema português, como se sabe, é outro. Por isso temos de passar pelo incómodo de ver ministros a gerir tesourarias partidárias.
II. A contratação do novo Director-Geral dos Impostos por cinco mil contos mensais não me aflige. Bem sei que os tempos são de crise (mas não foi a própria ministra das Finanças quem o recrutou?), que os governantes ganham cerca de um quinto e que os colegas directores-gerais vencem menos de um sexto. Mas se há função onde o Estado deve procurar o que de melhor há na praça, suportando preços demercado, são os Impostos. Deixemo-nos de igualitarismos. É do interesse colectivo que estamos a falar.
Conheço Paulo Macedo e sei que é um homem sério e competente. Vale certamente o que ganha, mas terá agora de o demonstrar ao serviço do Estado. Para provar que o mérito e a ética não têm preço
(Diário de Negócios, 27 de Maio, 2004)
I. No seu estado mais puro, é sinónimo de santidade. Zero conflitos de interesses, zero influências, zero subordinações, zero suspeitas, zero tentações, zero cobiças, zero materialidades. São estes os sete atributos éticos da perfeição para os dirigentes públicos. À luz do crivo moral vigente, normalizado pelos media e pelos critérios básicos da populaça, nem os apóstolos se safavam, pecadores confessos como eram. A ética transformou-se numa pastosa arma de arremesso onde tudo vale porque é fácil encontrar alguém que viole um dos sete critérios santos. Relativismo moral? Vamos por partes.
As democracias europeias elegeram um modelo de probidade pública inspirado em valores dificilmente compatíveis com os tempos actuais. A moral do Velho Continente continua a exigir o melhor dos mundos aos agentes públicos - rigor, competência e espírito de sacrifício - sem lhes garantir a compensação adequada. Para o comum dos portugueses, o modelo miserabilista é o paradigma da elevação ética, desde que só se aplique aos outros. Honestos, competentes e mal pagos - eis como se querem os dirigentes da nação. Espertos, incumpridores e volúveis - assim devem ser os cidadãos e os agentes económicos.
A ética, tal como a qualidade, tem um preço. Se as democracias pretendem banir todo o tipo de incursões de políticos ou ex-políticos na esfera empresarial, para eliminar qualquer suspeita de tráfico de influências, terão de ponderar seriamente sobre as inevitáveis consequências. De duas uma, ou a classe dirigente fica reservada a políticos profissionais e altos funcionários de carreira, ou o Tesouro terá de abrir os cordões à bolsa e remunerar capazmente os detentores de cargos públicos, quer durante, quer após o termo dos mandatos. É certo que os governantes já dispõem de um subsídio de reintegração (na sociedade civil, presume-se) para os seis meses seguintes à cessação de funções, desde que não aufiram qualquer outra remuneração. Só que o seu alcance não é o da ética, mas sim o da assistência social. Creio, aliás, que o número de beneficiários e ex-beneficiários se contará pelos dedos de uma só mão.
Uma aproximação interessante é a que tem vindo a ser seguida nos novos estatutos das entidades reguladoras, impondo um período de nojo de dois anos após o termo do mandato, durante o qual o ex-administrador fica impedido de estabelecer relações profissionais com empresas do sector regulado. Em contrapartida, aufere 2/3 do vencimento anterior, desde que se limite a actividades académicas. Ao que julgo saber, Portugal é, nesta matéria, um caso exemplar de transparência (para o que muito contribuiu Vital Moreira no domínio jurídico-legislativo).
Por outras paragens europeias, os condicionalismos da ética pública não são muito diversos dos portugueses. É nos Estados Unidos que algumas práticas nos parecem estranhas, pouco habituados que estamos à exposição pública de interesses e intenções. O trânsito entre cargos públicos, empresas, sociedades de lobbying e de advocacia é uma realidade com que os americanos aparentemente convivem sem se colocarem grandes questões de ética, talvez porque tenham a noção (errada) de que tudo é feito às claras. Em favor dessa percepção milita o sistema de financiamento dos partidos políticos, pelo menos na sua parte visível, no qual se permite todo o tipo de donativos, pessoais ou empresariais, desde que identificados e publicitados. O sistema português, como se sabe, é outro. Por isso temos de passar pelo incómodo de ver ministros a gerir tesourarias partidárias.
II. A contratação do novo Director-Geral dos Impostos por cinco mil contos mensais não me aflige. Bem sei que os tempos são de crise (mas não foi a própria ministra das Finanças quem o recrutou?), que os governantes ganham cerca de um quinto e que os colegas directores-gerais vencem menos de um sexto. Mas se há função onde o Estado deve procurar o que de melhor há na praça, suportando preços demercado, são os Impostos. Deixemo-nos de igualitarismos. É do interesse colectivo que estamos a falar.
Conheço Paulo Macedo e sei que é um homem sério e competente. Vale certamente o que ganha, mas terá agora de o demonstrar ao serviço do Estado. Para provar que o mérito e a ética não têm preço
(Diário de Negócios, 27 de Maio, 2004)