6 de julho de 2004
A Carreira da Pampilhosa, por Vital Moreira
A notícia veio há dias escondida no suplemento regional de um jornal nacional: a empresa concessionária do serviço público de transportes rodoviários que serve a Pampilhosa da Serra anunciou ao município que cessará brevemente as carreiras para esse destino, a não ser que o município lhe passe a pagar uma avultada compensação pelas perdas que aquela alega ter com tal serviço. Situado no centro interior do território nacional, na zona do pinhal, o referido município é um dos mais pobres e isolados do país. As carreiras em questão são a única ligação com o exterior para quem não dispõe de viatura própria. A sua suspensão importará portanto um dramático prejuízo para aquela região. Segundo veio esclarecer poucos dias depois o director-geral dos transportes terrestres, o mesmo problema tem-se colocado noutras regiões. Ele testemunha lamentavelmente a degradação dos conceitos de serviço público e de coesão territorial entre nós.
Desde que Napoleão criou há cerca de dois séculos o serviço postal nacional em França, garantindo a circulação de cartas em todo o território mediante uma tarifa uniforme, a noção de "serviço público" ganhou um significado muito preciso, como responsabilidade dos poderes públicos (Estado, municípios) pela prestação de certos bens ou serviços básicos a todos os cidadãos, a título gratuito ou oneroso, como condição essencial do bem-estar colectivo. Depois do serviço postal haveriam de entrar nessa categoria os transportes públicos (a começar pelo caminho-de-ferro), a energia (gás e electricidade), a água e o saneamento, as telecomunicações (telégrafo e telefone), etc., a que se devem juntar os serviços públicos de educação, de saúde, de segurança social, etc. Foi também em França que se definiram mais cedo os princípios clássicos do "serviço público", designadamente a universalidade (ou seja, serviço posto à disposição de todos, independentemente do lugar de residência), continuidade (não interrupção do fornecimento), igualdade (não discriminação entre os cidadãos), acessibilidade de tarifas (incluindo tarifas sociais para as pessoas com menores possibilidades económicas), qualidade e segurança do fornecimento.
Durante todo o século passado os serviços públicos, no sentido assinalado, tornaram-se parte essencial do modelo económico e social europeu. Mas as suas formas de organização e prestação sempre foram diversificadas, desde a prestação directa pelos poderes públicos (estabelecimentos ou empresas públicas) até à concessão a empresas privadas. Porém, independentemente da forma pública ou privada, uma das características muito difundidas dos serviços públicas era a organização sob regime de exclusivo, sem sujeição às regras da concorrência e do mercado. Desde há duas décadas, porém, os serviços públicos têm vindo a passar por uma revolução quanto às formas de organização e de prestação, que consiste principalmente na liberalização dessas actividades, na privatização de muitas das empresas públicas prestadores de serviços públicos e na sua abertura ao mercado e à concorrência. No entanto, não se perdeu em geral a ideia da responsabilidade pública pela garantia do fornecimento de tais serviços. Mesmo nos casos de total abertura ao mercado, estabelecem-se mecanismos pelos quais uma ou mais das empresas são encarregadas das correspondentes "obrigações de serviço público", sendo compensadas financeiramente pelos encargos adicionais que elas implicam.
A ideia de serviço público consta também dos tratados da Comunidade/União Europeia, sob o nome de "serviços de interesse económico geral" (SIEG), sendo considerados como garantia da coesão social e territorial. O tratado de Roma consente desde o início as derrogações às regras da concorrência necessárias para permitir que tais serviços possam cumprir as suas missões. Entre essas derrogações conta-se naturalmente a admissão de concessões exclusivas, bem como a compensação financeira pública às empresas encarregadas da prestação desses serviços. Ainda recentemente a Comissão Europeia publicou um "Livro Branco" sobre os serviços de interesse geral, onde reafirma a sua importância. E de facto, nos diplomas comunitários que têm procedido à liberalização e abertura ao mercado dos serviços públicos tradicionais (telecomunicações, transportes, energia, etc.), a Comissão tem-se preocupado em definir, ou permitir aos Estados-membros que definam, as obrigações de serviço público, bem como a forma de as financiar.
Os transportes públicos de passageiros sempre se contaram entre os serviços públicos (ou agora SIEG), por serem essenciais à mobilidade das pessoas. A "democratização" da viatura individual não suprimiu a necessidade do transporte colectivo de passageiros, nem no âmbito urbano nem no âmbito interurbano, primeiro porque continua a haver uma considerável parte da população que não dispõe de automóvel, depois pela vantagem ambiental e social na utilização dos transportes colectivos. Comparada com a rede ferroviária, existe uma muito maior densidade da rede de transportes rodoviários, sendo estes portanto uma necessidade imprescindível da mobilidade em largas zonas do território.
Entre nós, com a privatização dos transportes rodoviários (que tinham sido nacionalizados em 1975), o serviço público de transportes rodoviários de passageiros interurbano voltou a ser prestado por empresas privadas em regime de concessão. Diferentemente do que sucede com os transportes urbanos - que entram na esfera dos municípios respectivos (salvo no caso de Lisboa e do Porto, onde cabem ao Estado) -, o serviço público interurbano pertence à responsabilidade do Estado. Isto quer dizer que compete ao Estado definir as necessidades de serviço público e efectuar as concessões necessárias, incluindo a definição das correspondentes obrigações de serviço público.
Por conseguinte, não constitui obrigação dos municípios beneficiários, mas sim do Estado, arcar com a compensação eventualmente devida às empresas concessionárias. O mesmo sucede aliás com as indemnizações compensatórias pelos transportes ferroviários, bem como pelas ligações aéreas em regime de serviço público com alguns destinos das regiões autónomas e de certas regiões periféricas do Continente (Trás-os-Montes). A verdade porém é que, por falta de recursos financeiros ou por outra razão desconhecida, o Estado tem vindo a descurar as concessões rodoviárias, levando as empresas concessionárias, como se viu, a chantagearem abusivamente os municípios para pagarem aquilo que o Estado não se mostra disposto a pagar.
Considerando que se trata das regiões mais pobres e isolados do país, é indesmentível que o Governo está a violar escandalosamente o seu dever de velar pela coesão social e territorial, contribuindo assim para a desertificação humana daquelas regiões. Além disso, se se tiver em conta que o Estado suporta anualmente enormes somas de dinheiro com indemnizações compensatórias para as empresas públicas e empresas concessionárias dos transportes urbanos e suburbanos de Lisboa e do Porto (que aliás no resto do país são suportados pelos municípios respectivos...), é inegável que o Governo está a prejudicar ostensivamente as regiões mais carenciadas em favor das regiões mais favorecidas. Os habitantes de Pampilhosa da Serra, que estão em risco de perder as suas escassas carreiras de transportes rodoviários de passageiros, por o Estado não assumir as suas responsabilidades, pagam porém os transportes de Lisboa e do Porto. Ou seja, os pobres pagam para os ricos.
Dificilmente se poderia imaginar tamanha injustiça social e territorial.
(Publicado no Público, 6 de Julho de 2004)
Desde que Napoleão criou há cerca de dois séculos o serviço postal nacional em França, garantindo a circulação de cartas em todo o território mediante uma tarifa uniforme, a noção de "serviço público" ganhou um significado muito preciso, como responsabilidade dos poderes públicos (Estado, municípios) pela prestação de certos bens ou serviços básicos a todos os cidadãos, a título gratuito ou oneroso, como condição essencial do bem-estar colectivo. Depois do serviço postal haveriam de entrar nessa categoria os transportes públicos (a começar pelo caminho-de-ferro), a energia (gás e electricidade), a água e o saneamento, as telecomunicações (telégrafo e telefone), etc., a que se devem juntar os serviços públicos de educação, de saúde, de segurança social, etc. Foi também em França que se definiram mais cedo os princípios clássicos do "serviço público", designadamente a universalidade (ou seja, serviço posto à disposição de todos, independentemente do lugar de residência), continuidade (não interrupção do fornecimento), igualdade (não discriminação entre os cidadãos), acessibilidade de tarifas (incluindo tarifas sociais para as pessoas com menores possibilidades económicas), qualidade e segurança do fornecimento.
Durante todo o século passado os serviços públicos, no sentido assinalado, tornaram-se parte essencial do modelo económico e social europeu. Mas as suas formas de organização e prestação sempre foram diversificadas, desde a prestação directa pelos poderes públicos (estabelecimentos ou empresas públicas) até à concessão a empresas privadas. Porém, independentemente da forma pública ou privada, uma das características muito difundidas dos serviços públicas era a organização sob regime de exclusivo, sem sujeição às regras da concorrência e do mercado. Desde há duas décadas, porém, os serviços públicos têm vindo a passar por uma revolução quanto às formas de organização e de prestação, que consiste principalmente na liberalização dessas actividades, na privatização de muitas das empresas públicas prestadores de serviços públicos e na sua abertura ao mercado e à concorrência. No entanto, não se perdeu em geral a ideia da responsabilidade pública pela garantia do fornecimento de tais serviços. Mesmo nos casos de total abertura ao mercado, estabelecem-se mecanismos pelos quais uma ou mais das empresas são encarregadas das correspondentes "obrigações de serviço público", sendo compensadas financeiramente pelos encargos adicionais que elas implicam.
A ideia de serviço público consta também dos tratados da Comunidade/União Europeia, sob o nome de "serviços de interesse económico geral" (SIEG), sendo considerados como garantia da coesão social e territorial. O tratado de Roma consente desde o início as derrogações às regras da concorrência necessárias para permitir que tais serviços possam cumprir as suas missões. Entre essas derrogações conta-se naturalmente a admissão de concessões exclusivas, bem como a compensação financeira pública às empresas encarregadas da prestação desses serviços. Ainda recentemente a Comissão Europeia publicou um "Livro Branco" sobre os serviços de interesse geral, onde reafirma a sua importância. E de facto, nos diplomas comunitários que têm procedido à liberalização e abertura ao mercado dos serviços públicos tradicionais (telecomunicações, transportes, energia, etc.), a Comissão tem-se preocupado em definir, ou permitir aos Estados-membros que definam, as obrigações de serviço público, bem como a forma de as financiar.
Os transportes públicos de passageiros sempre se contaram entre os serviços públicos (ou agora SIEG), por serem essenciais à mobilidade das pessoas. A "democratização" da viatura individual não suprimiu a necessidade do transporte colectivo de passageiros, nem no âmbito urbano nem no âmbito interurbano, primeiro porque continua a haver uma considerável parte da população que não dispõe de automóvel, depois pela vantagem ambiental e social na utilização dos transportes colectivos. Comparada com a rede ferroviária, existe uma muito maior densidade da rede de transportes rodoviários, sendo estes portanto uma necessidade imprescindível da mobilidade em largas zonas do território.
Entre nós, com a privatização dos transportes rodoviários (que tinham sido nacionalizados em 1975), o serviço público de transportes rodoviários de passageiros interurbano voltou a ser prestado por empresas privadas em regime de concessão. Diferentemente do que sucede com os transportes urbanos - que entram na esfera dos municípios respectivos (salvo no caso de Lisboa e do Porto, onde cabem ao Estado) -, o serviço público interurbano pertence à responsabilidade do Estado. Isto quer dizer que compete ao Estado definir as necessidades de serviço público e efectuar as concessões necessárias, incluindo a definição das correspondentes obrigações de serviço público.
Por conseguinte, não constitui obrigação dos municípios beneficiários, mas sim do Estado, arcar com a compensação eventualmente devida às empresas concessionárias. O mesmo sucede aliás com as indemnizações compensatórias pelos transportes ferroviários, bem como pelas ligações aéreas em regime de serviço público com alguns destinos das regiões autónomas e de certas regiões periféricas do Continente (Trás-os-Montes). A verdade porém é que, por falta de recursos financeiros ou por outra razão desconhecida, o Estado tem vindo a descurar as concessões rodoviárias, levando as empresas concessionárias, como se viu, a chantagearem abusivamente os municípios para pagarem aquilo que o Estado não se mostra disposto a pagar.
Considerando que se trata das regiões mais pobres e isolados do país, é indesmentível que o Governo está a violar escandalosamente o seu dever de velar pela coesão social e territorial, contribuindo assim para a desertificação humana daquelas regiões. Além disso, se se tiver em conta que o Estado suporta anualmente enormes somas de dinheiro com indemnizações compensatórias para as empresas públicas e empresas concessionárias dos transportes urbanos e suburbanos de Lisboa e do Porto (que aliás no resto do país são suportados pelos municípios respectivos...), é inegável que o Governo está a prejudicar ostensivamente as regiões mais carenciadas em favor das regiões mais favorecidas. Os habitantes de Pampilhosa da Serra, que estão em risco de perder as suas escassas carreiras de transportes rodoviários de passageiros, por o Estado não assumir as suas responsabilidades, pagam porém os transportes de Lisboa e do Porto. Ou seja, os pobres pagam para os ricos.
Dificilmente se poderia imaginar tamanha injustiça social e territorial.
(Publicado no Público, 6 de Julho de 2004)