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14 de julho de 2004

O Governo Sob Tutela Presidencial? por Vital Moreira 

De entre as várias saídas que se ofereciam para a crise política aberta pela inesperada transferência de Durão Barroso para Bruxelas, o Presidente da República optou, depois de muita consulta e hesitação, pela solução mais favorável ao "infractor", embora sob condições e limites mais fictícios do que reais.
A sua primeira inclinação foi naturalmente a de aceitar a solução adiantada pelo primeiro-ministro cessante, mediante a formação de um novo Governo da coligação PSD/CDS-PP chefiado pelo "número dois" do partido maioritário. Seria a solução normal num sistema de natureza essencialmente parlamentar como o nosso, se a situação não fosse assaz anormal, na medida em que se conjugava a deserção de um primeiro-ministro que se comprometera a levar até ao fim um governo de legislatura, a severa derrota da coligação nas recentes eleições europeias, testemunhando um inequívoco divórcio com o eleitorado, e a dificuldade em aceitar como chefe do novo Governo uma personalidade altamente controversa, conhecida pelas suas tendências populistas.
Nessa circunstâncias e num sistema como o nosso, onde o Presidente da República goza de amplos poderes discricionários de dissolução parlamentar e de antecipação de eleições, podendo fazê-lo justamente contra a maioria existente para proporcionar o aparecimento de outra, compreende-se que se tenha levantado imediatamente um coro de protestos nos partidos de oposição e na opinião pública, exigindo que a interrupção do mandato governamental por iniciativa do próprio primeiro-ministro desse lugar a eleições.
Sendo a solução "normal" um problema, Sampaio tinha mais duas alternativas disponíveis, a saber: convocar eleições, encerrando a actual legislatura, ou aceitar um novo Governo da actual maioria, mas rejeitando o primeiro-ministro proposto, obrigando à apresentação de outra personalidade.
Sampaio acabou por afastar a primeira opção, preferindo um novo Governo da coligação existente, em nome da estabilidade política. Não explicou porquê na sua comunicação ao país, apesar de teoricamente as eleições poderem proporcionar um governo para quatro anos, em vez de dois anos, sendo esta uma das omissões mais notórias. Imaginando que ele tenha efectivamente equacionado essa opção, é possível que tenha sido motivado pelas seguintes considerações: o risco, ainda que improvável, de uma vitória da direita, o que o colocaria a si mesmo em dificuldades; a pequena probabilidade de uma maioria absoluta do PS; a fragilidade de um governo minoritário do PS nas actuais circunstâncias políticas (mau estado da economia, necessidade de rigor orçamental, etc.); a inconsistência e ou curta duração de um governo de coligação do PS com um dos partidos à esquerda. Uma vez que o Presidente não revelou as razões por que descartou a solução, só resta margem para especulação.
A outra alternativa era a aceitação de um novo Governo da actual maioria parlamentar, rejeitando, porém, o candidato indicado, que era o principal motivo da discórdia. Uma tal solução teria duas razões a seu favor: provocaria muito menos reacção negativa por parte da esquerda e da opinião pública em geral e teria o apoio de um sector politicamente muito importante no próprio PSD. Havia um terceiro argumento, este de natureza substantiva: Santana representaria à partida uma mudança de políticas, pelo que perderia força o argumento da estabilidade e da continuidade governativa. Na sua comunicação, o Presidente não refere sequer essa hipótese, como se ela não tivesse sido considerada, Não é crível que o não tenha sido. Ela cabe perfeitamente nos seus poderes, sobretudo tratando-se de formação de um novo Governo, depois do afastamento do primeiro-ministro originário, que tinha encabeçado a vitória eleitoral de 2002, bem como a criação da coligação.
Não tendo tomado essa posição atempadamente (e isso quer dizer logo quando do anúncio da saída de Barroso), é provável que o Presidente se tenha depois deixado submeter a alguma ameaça do PSD de que não aceitaria formar governo com outra pessoa, pelo que o PR seria forçado, "malgré lui", a ceder ou a convocar eleições. Mesmo assim, esta hipótese era obviamente diferente da primeira, podendo sempre o Presidente invocar que as eleições só eram devidas ao PSD.
Recusando eleições antecipadas, receando o seu resultado aleatório, sem força para recusar o proposto primeiro-ministro, mas também receoso de um governo Santana Lopes & Portas em roda livre, Sampaio optou por uma aceitar a solução mais fácil, mas sob condição de garantia de continuidade quanto às políticas em alguns sectores considerados essenciais pelo próprio Presidente e sob compromisso próprio de vigilância apertada sobre a acção governativa. É caso para dizer, porém, que a emenda é pior que o soneto.
Trata-se de uma solução contraditória, equívoca, fruste e arriscada. Contraditória, porque o Presidente trocou um passivismo presidencial na questão da dissolução parlamentar e na convocação de novas eleições, onde a sua discricionariedade constitucional é muito grande, por um intervencionismo presidencial forte na definição das políticas governamentais, numa esfera onde ele é assaz controverso e constitucionalmente problemático. É uma solução equívoca, porque significa tanto uma limitação da acção governativa como uma forma de comprometer nela o próprio Presidente, tornando-o corresponsável por ela. É uma solução fruste, porque o Presidente não goza de grandes meios de controlo sobre um Governo que dispõe de maioria parlamentar absoluta, visto que o principal instrumento de obstrução presidencial, o veto legislativo, pode ser em geral superado por uma segunda votação parlamentar e porque doravante a ameaça de dissolução parlamentar não é para levar a sério. Por último, é uma solução arriscada, porque pode dar ao Governo um capital de queixa contra os eventuais bloqueios presidenciais na implementação das suas políticas, podendo gerar um conflito institucional entre o Presidente e o Governo, cujo vencedor só pode ser o segundo.
A imposição presidencial de continuidade de políticas ao novo Governo é, em si mesma, surpreendente, visto que era evidente que o Governo cessante estava ele mesmo em vias de mudar pelo menos a política de rigor financeiro. Em segundo lugar, não é líquido que caiba ao Presidente da República impor a um governo, mesmo que seja o executivo da mesma coligação, as mesmas políticas, vedando-lhe a possibilidade de as mudar de acordo com as circunstâncias. Em terceiro lugar, o Presidente torna-se desse modo corresponsável pelas políticas governamentais, incluindo as suas áreas mais impopulares (como a política de rigor financeiro) ou mais problemáticas (como a política de justiça).
Tão inesperada como esta deriva para o activismo presidencial sobre a acção governativa é a disposição do indigitado primeiro-ministro para aceitar as "orientações de Belém" (como declarou ontem). É certo que isso está de acordo com a sua conhecida doutrina acerca do reforço dos poderes presidenciais. Só não se esperava era a cumplicidade do actual inquilino de Belém - que foi quem mais teorizou a autocontenção presidencial na esfera governamental - em assumir o papel de tutor e "orientador" de um governo de Santana Lopes.
Com esta infeliz decisão - que só o receio de correr os riscos de novas eleições ou o temor de deixar rédea livre à dupla Santana-Portas justificam -, Sampaio não macula somente a doutrina presidencial que laboriosamente veio construindo ao longo destes anos; criou também uma situação de "parceria conflitual" com um Governo que nada fará para lhe facilitar o papel de controleiro que definiu para si mesmo. A menos de dois anos do final do seu mandato, não era propriamente esta a herança que se esperava da passagem de Jorge Sampaio pelo Palácio de Belém.

(Público, terça-feira, 13 de Julho de 2004)

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