27 de agosto de 2004
Alegre e Sócrates: para além das palavras, por Vicente Jorge Silva
Ainda não tive oportunidade de conhecer as moções que Manuel Alegre e José Sócrates apresentaram esta semana ao Congresso do PS. No entanto, sem prejuízo de uma futura reflexão sobre essas moções, o significado político das duas candidaturas não depende da natureza dos textos apresentados.
Prezo muito o valor das palavras, mas a verdade é que os compromissos escritos em política se encontram cada vez mais condicionados pela personalidade de quem os assume. É uma das consequências da crise das ideologias que se acentuou depois da queda do muro de Berlim e de que os partidos de esquerda, especialmente na Europa, estão longe de conseguir superar.
Não desvalorizo a importância das moções e dos programas políticos num debate democrático (por muito pouco participado que este seja). Limito-me a constatar apenas que, no estado actual das democracias, a fidelidade política implica uma relação de confiança pessoal (que pode ser genuína ou meramente interesseira) entre os candidatos a uma eleição e os respectivos eleitores. A personalização das preferências políticas funciona, é certo, para o melhor e para o pior (sem esquecer, neste ponto, as derivas populistas e demagógicas). Mas seria hipócrita pretender que esse factor não é cada vez mais determinante nas escolhas eleitorais.
Ainda há pouco tempo, discutiu-se vivamente em Portugal a legitimidade da substituição de Durão Barroso por Santana Lopes na chefia do Governo. Embora apoiado numa mesma maioria parlamentar e respeitando formalmente as bases programáticas do anterior Executivo, Santana não se submetera a uma eleição ?personalizada? para o cargo que viria a ocupar. Estava, pois, em causa o protagonismo do candidato a primeiro-ministro nas eleições legislativas (apesar de nestas se votarem em partidos e não em personalidades).
É evidente que as preferências e opções políticas (dentro de um partido ou numa disputa envolvendo vários partidos) não são estranhas a pressupostos ideológicos e programáticos com que os eleitores se identificam. Com excepção do eleitorado flutuante do centro - que, todavia, acaba por ser a chave do poder nos sufrágios mais disputados -, as fidelidades e fixações político-partidárias continuam a desempenhar um papel decisivo nas escolhas eleitorais. Só que a influência do factor pessoal, acentuada pela mediatização intensa da vida política, tem vindo a remeter os compromissos escritos, chamem-se eles moções ou programas, a uma função puramente instrumental e quase retórica num debate democrático que, por via disso, se converteu, sobretudo, em duelos de personalidades (e de imagens). É o que acontece também agora no PS.
Para além das moções, o que conta sobretudo é a imagem que cada personalidade se propõe representar e o modo como a representa. Não por acaso, uma parte substancial do debate tem vindo a centrar-se na forma como cada um dos dois candidatos principais se posiciona face ao exercício do poder dentro do partido e na chefia de um futuro governo socialista. Esse é, à partida, um dos trunfos de José Sócrates e um dos pontos mais vulneráveis da candidatura de Manuel Alegre. Sócrates não esconde que o primeiro objectivo (a liderança partidária) é fundamentalmente um meio para alcançar o segundo (a chefia do governo), enquanto Alegre insiste em separá-los, de forma não verdadeiramente convincente.
Sócrates subordina tudo ao seu projecto de poder, propondo-se mesmo desafiar a quadratura do círculo: diz querer um partido renovado e aberto ao exterior, embora não tenha hesitado em negociar os seus principais apoios no interior de um aparelho partidário que, ao longo dos tempos, tem frustrado qualquer veleidade de renovação e abertura. É contra esse aparelho que Alegre declara a sua "insubmissão", apostando num sobressalto dos militantes anónimos que, segundo ele, constituem a alma do PS.
Mas Alegre é um candidato reservado e relutante na sua relação com o poder e é sobretudo isso que o leva a separar as candidaturas a secretário-geral e a primeiro-ministro. Ei-lo condenado, assim, a representar o papel de combatente romântico e guardião do templo dos princípios socialistas, face ao "realismo" pragmático e voraz do seu adversário, disposto a todas as convergências e convivências para atingir o seu objectivo. Para José Sócrates, não há meios que não justifiquem os fins.
A atracção voluptuosa do poder fez concentrar na candidatura de Sócrates um autêntico albergue espanhol de tendências e personalidades vindas dos mais diversos quadrantes. O antigo "enfant-terrible" Sérgio Sousa Pinto, que tantas dores de cabeça deu a António Guterres, aparece como principal "maître-à-penser" do mais dilecto herdeiro do guterrismo e autor da sua moção. Contraditório? Inverosímil? Quem cuida disso? Sousa Pinto convive, sem aparentes estados de alma, com as personagens mais castiças do aparelho partidário, sem esquecer alguns dos seus adversários mais ferozes na já esquecida (ou puramente instrumental?) polémica sobre o aborto. Quem se recorda do protagonismo que então assumiu - e lhe valeu, de resto, um passaporte dourado para o Parlamento Europeu?
Evidentemente, pouco importa o conteúdo da moção que Sousa Pinto escreveu para José Sócrates. Ou importa apenas na medida em que a sua marca "de esquerda" e a sua alegada "modernidade" funcionam como álibi para quem dele precisava para compensar eventuais problemas de consciência. O verdadeiro pólo de atracção da candidatura de Sócrates é a maior solidez das garantias que aparentemente fornece aos aspirantes ao exercício do poder. Tem com ele o aparelho do partido e o favor da exposição mdiática - por mais artificial e plastificada que seja a sua imagem -, além de ter sido lançado por Emídio Rangel como reverso de Santana Lopes. Mais do que isso: corresponde ao perfil "bloco central" que melhor se adequa ao rotativismo do sistema partidário. O jogo dos interesses que circulam dentro desse sistema está assim assegurado.
Ora, Manuel Alegre oferece como contraponto a esta imagem uma outra consistência ética e uma personalidade de muito maior envergadura cívica. Mas tem desde logo contra si o facto de aparecer como representando sobretudo isso - e a já referida relutância em assumir pessoalmente um projecto alternativo de poder. Em Alegre, o que fundamentalmente conta é a atitude reactiva ao arrivismo socrático, o simbolismo de um gesto de inconformidade perante as "combines" inconfessáveis do aparelho partidário, o romantismo da atitude dos que não se rendem à fatalidade dos vencedores anunciados antes do combate. Alegre, aliás, pareceu dar-se por satisfeito quando afirmou, durante a entrega da sua moção, que "esta candidatura já cumpriu o seu papel" e "já ganhou", ao despertar um partido "que estava adormecido". Bastará isso, porém, para compensar a efectiva relação de forças entre "realismo" e "romantismo" dentro do PS - e dar sentido positivo, prático e ofensivo à candidatura de Alegre?
A questão, com Manuel Alegre, é de vontade e ambição efectivas para ser algo mais do que a representação simbólica de um protesto moral. Percebo perfeitamente que ele não se sinta vocacionado para assumir uma alternativa de poder consequente no PS e admiro o garbo quixotesco com que entrou num combate em defesa de princípios e valores do socialismo democrático (combate para o qual, recorde-se, não existiam outros candidatos disponíveis). Mas não deixa de ser um sinal melancólico dos actuais tempos políticos que quem se mostra mais merecedor da nossa confiança não nos apresente um motivo mais substantivo para apoiá-lo do que uma última trincheira de resistência aristocrática ao oportunismo sem princípios dos "parvenus" do poder.
(Diário Económico, 6ª feira, 27 de Agosto)
Prezo muito o valor das palavras, mas a verdade é que os compromissos escritos em política se encontram cada vez mais condicionados pela personalidade de quem os assume. É uma das consequências da crise das ideologias que se acentuou depois da queda do muro de Berlim e de que os partidos de esquerda, especialmente na Europa, estão longe de conseguir superar.
Não desvalorizo a importância das moções e dos programas políticos num debate democrático (por muito pouco participado que este seja). Limito-me a constatar apenas que, no estado actual das democracias, a fidelidade política implica uma relação de confiança pessoal (que pode ser genuína ou meramente interesseira) entre os candidatos a uma eleição e os respectivos eleitores. A personalização das preferências políticas funciona, é certo, para o melhor e para o pior (sem esquecer, neste ponto, as derivas populistas e demagógicas). Mas seria hipócrita pretender que esse factor não é cada vez mais determinante nas escolhas eleitorais.
Ainda há pouco tempo, discutiu-se vivamente em Portugal a legitimidade da substituição de Durão Barroso por Santana Lopes na chefia do Governo. Embora apoiado numa mesma maioria parlamentar e respeitando formalmente as bases programáticas do anterior Executivo, Santana não se submetera a uma eleição ?personalizada? para o cargo que viria a ocupar. Estava, pois, em causa o protagonismo do candidato a primeiro-ministro nas eleições legislativas (apesar de nestas se votarem em partidos e não em personalidades).
É evidente que as preferências e opções políticas (dentro de um partido ou numa disputa envolvendo vários partidos) não são estranhas a pressupostos ideológicos e programáticos com que os eleitores se identificam. Com excepção do eleitorado flutuante do centro - que, todavia, acaba por ser a chave do poder nos sufrágios mais disputados -, as fidelidades e fixações político-partidárias continuam a desempenhar um papel decisivo nas escolhas eleitorais. Só que a influência do factor pessoal, acentuada pela mediatização intensa da vida política, tem vindo a remeter os compromissos escritos, chamem-se eles moções ou programas, a uma função puramente instrumental e quase retórica num debate democrático que, por via disso, se converteu, sobretudo, em duelos de personalidades (e de imagens). É o que acontece também agora no PS.
Para além das moções, o que conta sobretudo é a imagem que cada personalidade se propõe representar e o modo como a representa. Não por acaso, uma parte substancial do debate tem vindo a centrar-se na forma como cada um dos dois candidatos principais se posiciona face ao exercício do poder dentro do partido e na chefia de um futuro governo socialista. Esse é, à partida, um dos trunfos de José Sócrates e um dos pontos mais vulneráveis da candidatura de Manuel Alegre. Sócrates não esconde que o primeiro objectivo (a liderança partidária) é fundamentalmente um meio para alcançar o segundo (a chefia do governo), enquanto Alegre insiste em separá-los, de forma não verdadeiramente convincente.
Sócrates subordina tudo ao seu projecto de poder, propondo-se mesmo desafiar a quadratura do círculo: diz querer um partido renovado e aberto ao exterior, embora não tenha hesitado em negociar os seus principais apoios no interior de um aparelho partidário que, ao longo dos tempos, tem frustrado qualquer veleidade de renovação e abertura. É contra esse aparelho que Alegre declara a sua "insubmissão", apostando num sobressalto dos militantes anónimos que, segundo ele, constituem a alma do PS.
Mas Alegre é um candidato reservado e relutante na sua relação com o poder e é sobretudo isso que o leva a separar as candidaturas a secretário-geral e a primeiro-ministro. Ei-lo condenado, assim, a representar o papel de combatente romântico e guardião do templo dos princípios socialistas, face ao "realismo" pragmático e voraz do seu adversário, disposto a todas as convergências e convivências para atingir o seu objectivo. Para José Sócrates, não há meios que não justifiquem os fins.
A atracção voluptuosa do poder fez concentrar na candidatura de Sócrates um autêntico albergue espanhol de tendências e personalidades vindas dos mais diversos quadrantes. O antigo "enfant-terrible" Sérgio Sousa Pinto, que tantas dores de cabeça deu a António Guterres, aparece como principal "maître-à-penser" do mais dilecto herdeiro do guterrismo e autor da sua moção. Contraditório? Inverosímil? Quem cuida disso? Sousa Pinto convive, sem aparentes estados de alma, com as personagens mais castiças do aparelho partidário, sem esquecer alguns dos seus adversários mais ferozes na já esquecida (ou puramente instrumental?) polémica sobre o aborto. Quem se recorda do protagonismo que então assumiu - e lhe valeu, de resto, um passaporte dourado para o Parlamento Europeu?
Evidentemente, pouco importa o conteúdo da moção que Sousa Pinto escreveu para José Sócrates. Ou importa apenas na medida em que a sua marca "de esquerda" e a sua alegada "modernidade" funcionam como álibi para quem dele precisava para compensar eventuais problemas de consciência. O verdadeiro pólo de atracção da candidatura de Sócrates é a maior solidez das garantias que aparentemente fornece aos aspirantes ao exercício do poder. Tem com ele o aparelho do partido e o favor da exposição mdiática - por mais artificial e plastificada que seja a sua imagem -, além de ter sido lançado por Emídio Rangel como reverso de Santana Lopes. Mais do que isso: corresponde ao perfil "bloco central" que melhor se adequa ao rotativismo do sistema partidário. O jogo dos interesses que circulam dentro desse sistema está assim assegurado.
Ora, Manuel Alegre oferece como contraponto a esta imagem uma outra consistência ética e uma personalidade de muito maior envergadura cívica. Mas tem desde logo contra si o facto de aparecer como representando sobretudo isso - e a já referida relutância em assumir pessoalmente um projecto alternativo de poder. Em Alegre, o que fundamentalmente conta é a atitude reactiva ao arrivismo socrático, o simbolismo de um gesto de inconformidade perante as "combines" inconfessáveis do aparelho partidário, o romantismo da atitude dos que não se rendem à fatalidade dos vencedores anunciados antes do combate. Alegre, aliás, pareceu dar-se por satisfeito quando afirmou, durante a entrega da sua moção, que "esta candidatura já cumpriu o seu papel" e "já ganhou", ao despertar um partido "que estava adormecido". Bastará isso, porém, para compensar a efectiva relação de forças entre "realismo" e "romantismo" dentro do PS - e dar sentido positivo, prático e ofensivo à candidatura de Alegre?
A questão, com Manuel Alegre, é de vontade e ambição efectivas para ser algo mais do que a representação simbólica de um protesto moral. Percebo perfeitamente que ele não se sinta vocacionado para assumir uma alternativa de poder consequente no PS e admiro o garbo quixotesco com que entrou num combate em defesa de princípios e valores do socialismo democrático (combate para o qual, recorde-se, não existiam outros candidatos disponíveis). Mas não deixa de ser um sinal melancólico dos actuais tempos políticos que quem se mostra mais merecedor da nossa confiança não nos apresente um motivo mais substantivo para apoiá-lo do que uma última trincheira de resistência aristocrática ao oportunismo sem princípios dos "parvenus" do poder.
(Diário Económico, 6ª feira, 27 de Agosto)