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24 de agosto de 2004

Debates Socialistas, Por Vital Moreira  

Não existe grande tradição de debate ideológico de fundo dentro dos partidos políticos portugueses, e o PS não é excepção, diferentemente do que sucede com os principais partidos socialistas europeus, nomeadamente o SPD alemão, o PS francês e o Labour britânico. O seu nascimento tardio, a falta de ligação ao movimento sindical e às classes trabalhadoras, o confronto com o PCP em 1974-76, a rápida depuração da pequena facção trotskista e a sua rápida transformação num partido de poder, entre outros factores, dispensaram em geral o PS de se confrontar detidamente com os problemas de adaptação doutrinária e política que se depararam aos partidos da II Internacional, no que respeita à sua identificação sociológica (como "partidos dos trabalhadores") e à sua relação com o marxismo, com o movimento sindical, com a economia de mercado.
Contrastando com outros partidos socialistas, que dedicam às questões doutrinárias uma grande atenção, dotando-se de fundações, "think tanks" ou centros de estudos e mantêm uma considerável produção editorial dedicada às questões teóricas e doutrinárias, no caso do PS português quase nada se passa nesta área. As suas fundações não passaram em geral de meios de financiamento exterior ou de ocupação de lugares de influência intrapartidária. Os gabinetes de estudos não deixam habitualmente traço visível do seu labor. A interessante experiência da revista "Finisterra" (dirigida por Eduardo Lourenço) ocupa um lugar marginal na vida do partido, sendo a sua influência seguramente escassa (se alguma).

A divisória essencial que tem pautado os debates socialistas na Europa nas últimas décadas tem passado notoriamente entre, por um lado, os defensores da tradição operária e sindicalista, colocando a ênfase nos direitos dos trabalhadores, nos direitos sociais, no papel do Estado na condução da economia, na gestão dos sectores essenciais e na prestação directa dos serviços públicos básicos (energia, transportes, comunicações, etc.) e, por outro lado, os defensores de modernização e da adaptação dos partidos socialistas e sociais-democratas, que passa pelo abandono da caracterização sociologicamente classista, pela aceitação incondicional da economia de mercado, com redução do papel do Estado-empresário e prestador directo de serviços, substituindo-o pelo Estado financiador e regulador, pela liberalização controlada dos serviços públicos (embora garantido as correspondentes obrigações de serviço público, nomeadamente de "serviço universal"), pela reforma dos sistemas públicos de segurança social, de saúde e de educação, de modo a conferir-lhes maior eficiência e a torná-los financeiramente sustentáveis.
Ora, chegou o momento em que também em Portugal têm de ser encarados de frente os factores que abalaram os fundamentos do modelo socialista e social-democrata tradicional, nomeadamente a globalização económica, a integração europeia e a criação do mercado interno, o movimento neoliberal, com a liberalização dos serviços públicos económicos até há pouco assegurados directamente pelo Estado, a crise da administração pública e o impacte das reformas da "nova gestão pública", o envelhecimento da população e a sobrecarga dos sistemas públicos de segurança social e de saúde, a competitividade fiscal internacional e o esgotamento do "Estado fiscal" do passado, as regras de disciplina financeira da UE, nomeadamente quanto ao limite da dívida pública e dos défices das contas públicas, as novas tarefas do Estado no domínio da segurança, nos seus mais variados aspectos, os efeitos da imigração sobre a coesão social, a primazia da preocupação ambiental, etc.
Seria erróneo supor que tudo se passa, no que respeita às duas principais candidaturas (as de José Sócrates e de Manuel Alegre, sem menosprezar a de João Soares), entre optar por um projecto conservador da esquerda tradicional do partido e um projecto liberal que abandone profundamente o carácter primitivo do partido. Afinal, trata-se de um debate dentro do PS, sendo de supor que não está em causa conservar ou mudar de partido, mas sim de optar entre duas orientações diferentes para o mesmo partido. Nem a candidatura de Alegre pode permitir-se ignorar e deixar de responder aos novos desafios que as mudanças económicas, sociais e políticas das última década, em Portugal, na Europa e no mundo, trouxeram a uma perspectiva socialista (incluindo a competência na governação económica, a disciplina financeira, e a eficiência da gestão pública, velhas pechas dos governos socialistas), nem a candidatura de Sócrates pode dar-se ao luxo de comprometer gratuitamente as marcas indeléveis de uma perspectiva socialista em matéria de luta pela igualdade e pela justiça social, de direitos dos trabalhadores, de coesão social e territorial, de separação entre o poder político e o poder económico, do papel do Estado na garantia dos serviços públicos essenciais e na orientação estratégica da economia, etc.
A moção da candidatura de Manuel Alegre, a primeira a ser conhecida, traz boas perspectivas para um debate fecundo. Em vez de se entrincheirar numa simples posição de resistência à mudança - embora com posições pouco abertas em alguns sectores, por exemplo, na reforma da administração pública, do Serviço Nacional de Saúde, dos serviço públicos económicos e das relações laborais -, ela procede a uma propositada cooptação da linguagem da "modernização" e insiste várias vezes numa visão "cosmopolita" do socialismo democrático. Mantendo-se fiel aos valores característicos da cultura socialista - desde a preocupação essencial com a justiça social até ao papel insubstituível do Estado ("Estado estratega", tal é o novo conceito proposto), incluindo as suas aquisições mais recentes, como a inclusividade social, a luta contra as discriminações de base sexual, a "igualdade de género", a cidadania participativa, a ética e a responsabilidade pública, a qualidade da democracia, etc. -, a moção de Alegre não deixa de abordar de forma inovadora, por exemplo, as questões da globalização, do mercado e da concorrência, da cultura da inovação e do risco, da disciplina financeira, os novos desafios da segurança, etc.
É de esperar, por sua vez, que a moção de Sócrates, sem se afastar, pelo menos ostensivamente, do património básico do PS, coloque a ênfase numa maior abertura social do partido, em busca de um partido sociologicamente transversal e ideologicamente menos caracterizado, no crescimento económico como solução imprescindível para a criação de emprego e para a solução dos problemas financeiros do Estado, no valor do mercado e da concorrência e da iniciativa privada, no papel regulador e garantidor do Estado, em vez de operador económico e prestador directo de serviços públicos, na eficiência da gestão pública e na reforma da administração pública, na contribuição das parcerias público-privadas na provisão de infra-estruturas e serviços públicos, nas virtudes da inovação tecnológica (o célebre "plano tecnológico" em que Sócrates tem insistido), nas potencialidades da integração europeia e do mercado único, na reforma do "modelo social europeu", como condição da sua sobrevivência, etc.
Sendo assim, os militantes socialistas vão ter excelente oportunidade de avaliar e escolher não somente entre personalidades, mas também entre visões diferentes sobre o futuro do seu partido e sobre a orientação e as políticas que se propõe quando voltar ao governo (sem esquecer a questão quente das possíveis alianças de governo). É por isso que o debate socialista interessa também a todos os que se identificam com ideias e posições de esquerda e a toda a opinião pública em geral. A discussão em curso, se decorrer com elevação e transparência, pode ser uma mais-valia para o PS perante a opinião pública, seja quem for que triunfe nas eleições e no congresso de finais de Setembro e princípio de Outubro.

Público, Terça-feira, 24 de Agosto de 2004

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