19 de agosto de 2004
Jogos inúteis
Os jogos têm dominado o nosso verão. Na política, no desporto e na economia, temos vivido emoções invulgarmente fortes para os nossos hábitos estivais, normalmente limitados aos incêndios. Em Junho e Julho tivemos o Euro 2004, a fuga de Durão Barroso e a ascensão de Santana Lopes. Em pleno mês de Agosto, são os dramas olímpicos e a crise petrolífera a baterem-nos diariamente à porta. Toda esta actividade tem-me feito pensar na natureza de alguns jogos e na lógica das suas regras. Façamos um breve exercício contraditório sobre dois deles, o preço do petróleo e as olimpíadas.
1 A racionalidade do mercado dos petróleos não pára de nos surpreender. Até domingo, a probabilidade de vitória de Hugo Chavez no referendo venezuelano era considerada um dos três factores explicativos da alta de preços; na terça-feira, os mesmos analistas atribuíam à vitória do ?não? a (leve) descida de preços verificada nas cotações spot. Antes das intervenções militares americanas no Kuweit, em 1991, e no Iraque, em curso, os peritos sustentavam que o uso das armas iria beneficiar os preços do brent; sucedeu precisamente o contrário, como os leigos previam. A OPEP é um órgão inútil, os ?mecanismos estabilizadores? não funcionam ou só funcionam no interesse das companhias petrolíferas e até a velha lei da oferta e da procura sofre a bom sofrer por manifesta falta de aderência ao terreno dos combustíveis. O clube da especulação e da intermediação financeira é o grande vencedor deste jogo bondosamente apelidado de mercado. À cotação actual, arrecada mais de dez dólares por barril.
Que mais poderá ainda acontecer aos preços do petróleo, face à instabilidade política nos principais países produtores? Como reagirá a economia mundial se a escalada prosseguir? E o que farão os governos nacionais, sobretudo os dos países mais dependentes de combustíveis fósseis, como Portugal, se a barreira dos cinquenta dólares for ultrapassada? E a dos sessenta ou dos setenta? Até quando se poderá continuar a laborar na tese de que os preços finais devem reflectir ?livremente? as flutuações do mercado? Será racional que o preço do gasóleo ande a cavalo dos episódios diários da política internacional e das conjugações caóticas de interesses instantâneos? É isso um mercado perfeito?
Face às incertezas petrolíferas, não há como encarar de frente o recurso às energias alternativas, verdes de preferência, nucleares se necessário. Mãos à obra enquanto nos resta sol, vento e biomassa.
2 Por cansaço de eventos desportivos, por traumas helénicos recentes ou por desencanto do olimpismo, os Jogos de Atenas não têm despertado a atenção de outras edições. É certo que o frustrante desempenho dos nossos atletas contribui em muito para a atmosfera de desinteresse generalizado a que assistimos, mas suspeito que o fenómeno não é só português. Patriotismos à parte, o formato das modernas olimpíadas está obsoleto, quer no seu modelo económico quer no desportivo.
Sobre os critérios de escolha dos países anfitriões, começámos finalmente a perceber que as razões venais calam mais fundo nos membros do Comité Olímpico do que as desportivas ou as organizativas. A menos que as instituições olímpicas passem por uma cura de transparência, não voltarei a acreditar na isenção das suas decisões. Sobre o cardápio de modalidades, a dúvida não é menor. São tantas e tão desinteressantes que o público ignora-as. A assistência na maioria das provas tem sido confrangedoramente pobre, fazendo-nos pensar se terá valido a pena tamanho sacrifício às finanças gregas para erigir infra-estruturas de que pouco ou nenhum aproveitamento futuro poderão retirar.
Que interesse suscita para o grande público a sucessão de provas de qualificação para modalidades tão maçadoras como o tiro, o remo ou a vela? Que critérios determinaram a inclusão do softball ou do mergulho sincronizado nos jogos? Por que se atribuem tantas medalhas na natação, no halterofilismo, ou nas artes marciais? Se o objectivo é multiplicar os heróis, por que não existem então, no atletismo, corridas às arrecuas ou ao pé-coxinho e diferentes categorias de peso no lançamento do martelo ou, no basquetebol, títulos diferenciados por escalões de alturas? Com que novas modalidades seremos presenteados nos jogos de Pequim? Tiro à nuca?
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 19 de Agosto de 2004
1 A racionalidade do mercado dos petróleos não pára de nos surpreender. Até domingo, a probabilidade de vitória de Hugo Chavez no referendo venezuelano era considerada um dos três factores explicativos da alta de preços; na terça-feira, os mesmos analistas atribuíam à vitória do ?não? a (leve) descida de preços verificada nas cotações spot. Antes das intervenções militares americanas no Kuweit, em 1991, e no Iraque, em curso, os peritos sustentavam que o uso das armas iria beneficiar os preços do brent; sucedeu precisamente o contrário, como os leigos previam. A OPEP é um órgão inútil, os ?mecanismos estabilizadores? não funcionam ou só funcionam no interesse das companhias petrolíferas e até a velha lei da oferta e da procura sofre a bom sofrer por manifesta falta de aderência ao terreno dos combustíveis. O clube da especulação e da intermediação financeira é o grande vencedor deste jogo bondosamente apelidado de mercado. À cotação actual, arrecada mais de dez dólares por barril.
Que mais poderá ainda acontecer aos preços do petróleo, face à instabilidade política nos principais países produtores? Como reagirá a economia mundial se a escalada prosseguir? E o que farão os governos nacionais, sobretudo os dos países mais dependentes de combustíveis fósseis, como Portugal, se a barreira dos cinquenta dólares for ultrapassada? E a dos sessenta ou dos setenta? Até quando se poderá continuar a laborar na tese de que os preços finais devem reflectir ?livremente? as flutuações do mercado? Será racional que o preço do gasóleo ande a cavalo dos episódios diários da política internacional e das conjugações caóticas de interesses instantâneos? É isso um mercado perfeito?
Face às incertezas petrolíferas, não há como encarar de frente o recurso às energias alternativas, verdes de preferência, nucleares se necessário. Mãos à obra enquanto nos resta sol, vento e biomassa.
2 Por cansaço de eventos desportivos, por traumas helénicos recentes ou por desencanto do olimpismo, os Jogos de Atenas não têm despertado a atenção de outras edições. É certo que o frustrante desempenho dos nossos atletas contribui em muito para a atmosfera de desinteresse generalizado a que assistimos, mas suspeito que o fenómeno não é só português. Patriotismos à parte, o formato das modernas olimpíadas está obsoleto, quer no seu modelo económico quer no desportivo.
Sobre os critérios de escolha dos países anfitriões, começámos finalmente a perceber que as razões venais calam mais fundo nos membros do Comité Olímpico do que as desportivas ou as organizativas. A menos que as instituições olímpicas passem por uma cura de transparência, não voltarei a acreditar na isenção das suas decisões. Sobre o cardápio de modalidades, a dúvida não é menor. São tantas e tão desinteressantes que o público ignora-as. A assistência na maioria das provas tem sido confrangedoramente pobre, fazendo-nos pensar se terá valido a pena tamanho sacrifício às finanças gregas para erigir infra-estruturas de que pouco ou nenhum aproveitamento futuro poderão retirar.
Que interesse suscita para o grande público a sucessão de provas de qualificação para modalidades tão maçadoras como o tiro, o remo ou a vela? Que critérios determinaram a inclusão do softball ou do mergulho sincronizado nos jogos? Por que se atribuem tantas medalhas na natação, no halterofilismo, ou nas artes marciais? Se o objectivo é multiplicar os heróis, por que não existem então, no atletismo, corridas às arrecuas ou ao pé-coxinho e diferentes categorias de peso no lançamento do martelo ou, no basquetebol, títulos diferenciados por escalões de alturas? Com que novas modalidades seremos presenteados nos jogos de Pequim? Tiro à nuca?
Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 19 de Agosto de 2004