31 de agosto de 2004
A Questão dos Serviços Públicos
Por Vital Moreira
Retomo, a propósito do debate em curso no PS, a questão dos serviços públicos - ou seja, as prestações asseguradas pelo Estado aos cidadãos -, que me parece essencial no contexto de uma política de esquerda, não somente por estarem na base mesma do conceito de "Estado social", mas também pelos problemas que eles hoje enfrentam.
Num sentido amplo, a noção de serviços públicos abrange os de natureza "comercial e industrial" (água, electricidade, serviços postais, telecomunicações, transportes públicos, etc.), pagos pelos utentes segundo tarifas administrativamente fixadas, podendo ser prestados por empresas públicas ou concessionados a empresas privadas, bem como os chamados serviços públicos "não mercantis" (educação, cuidados de saúde, diversas prestações sociais), normalmente gratuitos e prestados directamente por serviços ou estabelecimentos públicos, fora de qualquer lógica de mercado. Embora sem desvalorizar a importância dos primeiros para o "modelo social europeu" - e nisso a França constitui o paradigma de uma cultura dos serviços públicos -, foram os serviços públicos não económicos que mais contribuíram para caracterizar o modelo social-democrata ao longo do século passado. E isto, por duas razões fundamentais, a saber: a ampla extensão das prestações asseguradas e, sobretudo, o facto de terem sido concebidas não somente como uma questão de políticas públicas, mas sim como uma garantia de verdadeiros direitos sociais das pessoas, estando no cerne da chamada "segunda geração" de direitos humanos.
No modelo social-democrata tradicional, esses serviços públicos eram uma responsabilidade directa do Estado, a nível central ou local, sendo em geral gratuitos e universais, acessíveis que eram a todos os cidadãos independentemente da sua condição económica. O seu financiamento era assegurado pelo orçamento do Estado, sem prejuízo dos casos de seguro universal obrigatório (seguro social, seguro de saúde, etc.). A lógica do modelo assentava naturalmente num sistema fiscal de natureza progressiva, com uma fiscalidade muito elevada. Só dessa maneira era financeiramente sustentável a tendencial gratuitidade universal das referidas prestações públicas, abrangendo inclusive os mais abastados. Os ricos pagavam para todos. A não discriminação no acesso tinha a vantagem adicional de evitar o risco de uma divisão social, entre os serviços públicos, destinados às classes populares, e as actividades privadas, reservadas para os ricos. Os serviços e prestações sociais públicos universais e gratuitos foram por isso também um elemento essencial de integração e inclusão social (com especial relevo para a escola pública).
O que é que veio abalar e fazer questionar esse modelo? Fundamentalmente três razões: primeiro, o crescente aumento de custos desses serviços, não somente pela ampliação das prestações mas também, no caso da saúde e da segurança social, pelo aumento considerável da idade média das pessoas; segundo, a contestação da eficiência do modelo tradicional de gestão pública, bem como do monopólio público, dessas actividades; terceiro, o fim do modelo fiscal em que o sistema assentava, por efeito de vários factores, entre eles, a perda de importância relativa dos impostos directos, a contestação da progressividade fiscal, a competitividade fiscal internacional, que levou à baixa da carga fiscal, designadamente nos impostos sobre os rendimentos de capital e sobre as empresas, etc.
Em consequência disso, todos os pilares do modelo tradicional dos serviços públicos foram postos em causa, desde a sua universalidade à sua gratuitidade, desde os modos da sua gestão pública até à sua exclusiva prestação directa pelo Estado. É nesse contexto que devem ser compreendidas as recentes linhas de evolução, designadamente a discriminação social dos beneficiários, excluindo os não necessitados ou discriminando em favor dos mais carenciados (por exemplo em matéria de prestações familiares); a criação de taxas mais ou menos relevantes pelo acesso a certas prestações (por exemplo, as taxas moderadoras na saúde, as propinas no ensino superior), muitas vezes diferenciadas de acordo com os rendimentos; a reforma da gestão dos serviços públicos, no sentido de melhorar o seu desempenho e aumentar a sua eficiência, mediante a introdução de formas de gestão empresarial e de "mecanismos de tipo mercado" no âmbito da própria gestão pública; finalmente, a crescente participação de entidades privadas nesse sector, incluindo as de natureza lucrativa, seja em cooperação com entidades públicas ("parcerias público-privadas"), quer inclusive como substitutos do Estado na prestação de cuidados e prestações sociais, mediante financiamento público.
Só quem não quer ver é que não percebe que as várias alternativas ao modelo tradicional dos serviços públicos não são equivalentes. Há, por um lado, a alternativa neoliberal mais estreme, que exalta o sistema norte-americano, considera os serviços públicos universais e gratuitos de tipo europeu uma coisa do passado e uma irracionalidade económica, não reconhece direitos sociais, quer libertar o Estado da prestação directa dos mesmos, exalta a liberalização e o financiamento ao utente mediante o sistema de "voucher", preconiza uma drástica desoneração fiscal, sobretudo das empresas e dos ricos, deseja entregar tudo isso ao mercado e eliminar o papel do Estado, reduzindo-o tendencialmente ao financiamento de serviços mínimos destinados aos grupos mais carenciados, como medida de política social "benévola". Mas há, por outro lado, uma alternativa ainda fiel aos postulados básicos do modelo social europeu no que respeita à garantia universal de direitos sociais por parte do Estado, pondo porém em causa os modelos da sua organização e gestão pública e admitindo inclusive, dentro de certos limites, confiar a sua prestação a entidades privadas, mediante financiamento e controlo público, passando o Estado a ser financiador em vez de prestador. Ao contrário do que frequentemente sucede nas análises de alguma esquerda mais dogmática, existe uma distinção abissal entre estes dois modelos, visto que o primeiro desresponsabiliza generalizadamente o Estado na garantia de serviços públicos, reduzidos ao mínimo, enquanto o segundo continua a basear-se nas noções de direitos sociais e de responsabilidade pública pela sua satisfação, em geral pela sua prestação, no mínimo pelo seu financiamento.
As considerações financeiras estão na raiz da problemática actual dos serviços públicos. Por um lado, não é possível continuar a ignorar o desafio que a chamada "nova gestão pública" veio trazer no que respeita ao desempenho da gestão pública tradicional, baseada no regime da função pública, na falta de autonomia e de avaliação e responsabilização das unidades prestadoras, etc. O desperdício e a ineficiência são o melhor argumento contra os serviços públicos. Por outro lado, há um problema de limite dos recursos financeiros para enfrentar as crescentes exigências dos serviços públicos. Não se vê, por exemplo, como é que se pode evitar o aumento das despesas de saúde, face ao envelhecimento da população, aos riscos acrescidos (acidentes de viação, efeitos do tabaco, droga, sida, etc.) e ao encarecimento dos meios de diagnóstico e de tratamento. Ao contrário do que se julga e por vezes se escreve, o sucesso da política de Blair no que respeita aos serviços públicos - que seria injusto não reconhecer - não foi feito somente pela adopção de novas formas de organização e gestão mas também por substanciais aumentos das dotações orçamentais, designadamente no serviço nacional de saúde. E isto supõe obviamente uma economia forte e um sistema fiscal eficaz e justo. Não podem ignorar-se essas dimensões na discussão dos serviços públicos.
Seria conveniente que no PS se discutisse um pouco mais sobre estes assuntos. A meu ver, nenhuma das propostas dos candidatos à liderança socialista os aborda com a profundidade e clareza necessárias.
(Público, Terça-feira, 31 de Agosto de 2004)
Retomo, a propósito do debate em curso no PS, a questão dos serviços públicos - ou seja, as prestações asseguradas pelo Estado aos cidadãos -, que me parece essencial no contexto de uma política de esquerda, não somente por estarem na base mesma do conceito de "Estado social", mas também pelos problemas que eles hoje enfrentam.
Num sentido amplo, a noção de serviços públicos abrange os de natureza "comercial e industrial" (água, electricidade, serviços postais, telecomunicações, transportes públicos, etc.), pagos pelos utentes segundo tarifas administrativamente fixadas, podendo ser prestados por empresas públicas ou concessionados a empresas privadas, bem como os chamados serviços públicos "não mercantis" (educação, cuidados de saúde, diversas prestações sociais), normalmente gratuitos e prestados directamente por serviços ou estabelecimentos públicos, fora de qualquer lógica de mercado. Embora sem desvalorizar a importância dos primeiros para o "modelo social europeu" - e nisso a França constitui o paradigma de uma cultura dos serviços públicos -, foram os serviços públicos não económicos que mais contribuíram para caracterizar o modelo social-democrata ao longo do século passado. E isto, por duas razões fundamentais, a saber: a ampla extensão das prestações asseguradas e, sobretudo, o facto de terem sido concebidas não somente como uma questão de políticas públicas, mas sim como uma garantia de verdadeiros direitos sociais das pessoas, estando no cerne da chamada "segunda geração" de direitos humanos.
No modelo social-democrata tradicional, esses serviços públicos eram uma responsabilidade directa do Estado, a nível central ou local, sendo em geral gratuitos e universais, acessíveis que eram a todos os cidadãos independentemente da sua condição económica. O seu financiamento era assegurado pelo orçamento do Estado, sem prejuízo dos casos de seguro universal obrigatório (seguro social, seguro de saúde, etc.). A lógica do modelo assentava naturalmente num sistema fiscal de natureza progressiva, com uma fiscalidade muito elevada. Só dessa maneira era financeiramente sustentável a tendencial gratuitidade universal das referidas prestações públicas, abrangendo inclusive os mais abastados. Os ricos pagavam para todos. A não discriminação no acesso tinha a vantagem adicional de evitar o risco de uma divisão social, entre os serviços públicos, destinados às classes populares, e as actividades privadas, reservadas para os ricos. Os serviços e prestações sociais públicos universais e gratuitos foram por isso também um elemento essencial de integração e inclusão social (com especial relevo para a escola pública).
O que é que veio abalar e fazer questionar esse modelo? Fundamentalmente três razões: primeiro, o crescente aumento de custos desses serviços, não somente pela ampliação das prestações mas também, no caso da saúde e da segurança social, pelo aumento considerável da idade média das pessoas; segundo, a contestação da eficiência do modelo tradicional de gestão pública, bem como do monopólio público, dessas actividades; terceiro, o fim do modelo fiscal em que o sistema assentava, por efeito de vários factores, entre eles, a perda de importância relativa dos impostos directos, a contestação da progressividade fiscal, a competitividade fiscal internacional, que levou à baixa da carga fiscal, designadamente nos impostos sobre os rendimentos de capital e sobre as empresas, etc.
Em consequência disso, todos os pilares do modelo tradicional dos serviços públicos foram postos em causa, desde a sua universalidade à sua gratuitidade, desde os modos da sua gestão pública até à sua exclusiva prestação directa pelo Estado. É nesse contexto que devem ser compreendidas as recentes linhas de evolução, designadamente a discriminação social dos beneficiários, excluindo os não necessitados ou discriminando em favor dos mais carenciados (por exemplo em matéria de prestações familiares); a criação de taxas mais ou menos relevantes pelo acesso a certas prestações (por exemplo, as taxas moderadoras na saúde, as propinas no ensino superior), muitas vezes diferenciadas de acordo com os rendimentos; a reforma da gestão dos serviços públicos, no sentido de melhorar o seu desempenho e aumentar a sua eficiência, mediante a introdução de formas de gestão empresarial e de "mecanismos de tipo mercado" no âmbito da própria gestão pública; finalmente, a crescente participação de entidades privadas nesse sector, incluindo as de natureza lucrativa, seja em cooperação com entidades públicas ("parcerias público-privadas"), quer inclusive como substitutos do Estado na prestação de cuidados e prestações sociais, mediante financiamento público.
Só quem não quer ver é que não percebe que as várias alternativas ao modelo tradicional dos serviços públicos não são equivalentes. Há, por um lado, a alternativa neoliberal mais estreme, que exalta o sistema norte-americano, considera os serviços públicos universais e gratuitos de tipo europeu uma coisa do passado e uma irracionalidade económica, não reconhece direitos sociais, quer libertar o Estado da prestação directa dos mesmos, exalta a liberalização e o financiamento ao utente mediante o sistema de "voucher", preconiza uma drástica desoneração fiscal, sobretudo das empresas e dos ricos, deseja entregar tudo isso ao mercado e eliminar o papel do Estado, reduzindo-o tendencialmente ao financiamento de serviços mínimos destinados aos grupos mais carenciados, como medida de política social "benévola". Mas há, por outro lado, uma alternativa ainda fiel aos postulados básicos do modelo social europeu no que respeita à garantia universal de direitos sociais por parte do Estado, pondo porém em causa os modelos da sua organização e gestão pública e admitindo inclusive, dentro de certos limites, confiar a sua prestação a entidades privadas, mediante financiamento e controlo público, passando o Estado a ser financiador em vez de prestador. Ao contrário do que frequentemente sucede nas análises de alguma esquerda mais dogmática, existe uma distinção abissal entre estes dois modelos, visto que o primeiro desresponsabiliza generalizadamente o Estado na garantia de serviços públicos, reduzidos ao mínimo, enquanto o segundo continua a basear-se nas noções de direitos sociais e de responsabilidade pública pela sua satisfação, em geral pela sua prestação, no mínimo pelo seu financiamento.
As considerações financeiras estão na raiz da problemática actual dos serviços públicos. Por um lado, não é possível continuar a ignorar o desafio que a chamada "nova gestão pública" veio trazer no que respeita ao desempenho da gestão pública tradicional, baseada no regime da função pública, na falta de autonomia e de avaliação e responsabilização das unidades prestadoras, etc. O desperdício e a ineficiência são o melhor argumento contra os serviços públicos. Por outro lado, há um problema de limite dos recursos financeiros para enfrentar as crescentes exigências dos serviços públicos. Não se vê, por exemplo, como é que se pode evitar o aumento das despesas de saúde, face ao envelhecimento da população, aos riscos acrescidos (acidentes de viação, efeitos do tabaco, droga, sida, etc.) e ao encarecimento dos meios de diagnóstico e de tratamento. Ao contrário do que se julga e por vezes se escreve, o sucesso da política de Blair no que respeita aos serviços públicos - que seria injusto não reconhecer - não foi feito somente pela adopção de novas formas de organização e gestão mas também por substanciais aumentos das dotações orçamentais, designadamente no serviço nacional de saúde. E isto supõe obviamente uma economia forte e um sistema fiscal eficaz e justo. Não podem ignorar-se essas dimensões na discussão dos serviços públicos.
Seria conveniente que no PS se discutisse um pouco mais sobre estes assuntos. A meu ver, nenhuma das propostas dos candidatos à liderança socialista os aborda com a profundidade e clareza necessárias.
(Público, Terça-feira, 31 de Agosto de 2004)